Fernando Curado
Professor da Business School São Paulo e instrutor nos cursos de governança corporativa do IBGC
Preside a consultoria msci governança e estratégia, de São Paulo
***A leitura cuidadosa de “Raízes do Brasil”, do historiador Sergio Buarque de Hollanda, dá boas indicações sobre uma das grandes razões para o gap conceitual em nossa abordagem educacional. Temos uma “cultura do gentil-homem” impregnada nos currículos de todos os níveis educacionais brasileiros, a começar pelo ensino fundamental.
Na cultura do gentil-homem, o ideal de vida não é trabalhar, e, sim, fazer com que os outros trabalhem para nós. O viés vem das cortes ibéricas, nas quais o gentil-homem só devia usar suas mãos para tarefas “nobres", como escrever cartas, preparar discursos, tocar instrumentos. Nesse contexto, praticar medicina, que também exige o uso das mãos, constituía uma honrosa exceção.
Por mais que tenhamos evoluído nos últimos vinte anos, com maior número de alunos em todos os níveis no sistema educacional, aumento do uso de computadores em educação, uso de tecnologia de comunicação etc., o viés continua. A tese é que nosso atraso tecnológico deriva de uma escola básica discursiva e bacharelesca. Claro que existem exceções, mas a grande massa ainda tem um modelo de escola que não induz as crianças a “pôr a mão na graxa”. Mais ainda, não estou convencido de que “computerliteracy” vá resolver essa questão conceitual. Dar acesso mais amplo possível a computadores e internet é indispensável. Mas também é indispensável ter atividades que mostrem como a integração da cabeça com as mãos é fundamental. Impressoras de 3D podem fabricar objetos, mas a impressora em si é um objeto tecnológico que foi construído.
Reconheço que não seria possível a escola se atualizar “em tempo real”. Por mais esforço que se fizesse, o sistema educacional não conseguiria preparar profissionais para as necessidades imediatas do mercado. Para tanto seria necessário haver na escola uma "cópia" atualizada do ambiente da sociedade. O processo de mudança por que passa o mundo, associado ao permanente avanço tecnológico, faz com que a única possibilidade que as pessoas tenham para sobreviver tecnicamente seja aprender a aprender. Tecnologia se faz com as mãos. Ciência pode até se desenvolver só com a cabeça, mas tecnologia não pode ser feita apenas em tese. Logo, numa pegada mais realista, o sistema educacional tentaria montar uma forma de "educar as mãos pela cabeça", continuamente.
Educação e treinamento não são a mesma coisa. Educação procura preparar o indivíduo de uma forma geral, sem objetivos imediatos definidos. Treinamento procura satisfazer uma lacuna detectada de conhecimento ou habilidade, que precisa ser corrigida em tempo curto. Em certo aspecto, a educação deve preparar a pessoa para a vida profissional, qualquer que seja seu trabalho, enquanto o treinamento deve prepará-la para a função que ocupa ou vai ocupar. É uma questão concreta, aqui e agora. Precisamos ter os dois, nos seus devidos momentos e adequados às faixas etárias. Não estou convencido de que devamos dar treinamento a crianças: elas precisam de educação.
A antropóloga Margaret Mead já afirmava, décadas atrás, que os avanços tecnológicos nos campos da informação e da comunicação mostram que o ser humano é capaz de atingir qualquer objetivo tecnológico, que cada geração está sempre muito mais informada do que as anteriores e é obrigada, no seu cotidiano, a adaptações permanentes. A partir disso, podemos inferir que o melhor processo de aprendizagem é aquele centrado no aprendiz, pois as pessoas aprendem porque querem aprender. Elas aprendem fazendo -- e pensando sobre o que fazem. Estão de acordo com essa assertiva pensadores de estirpe como Piaget, Montessori, Dewey, Papert.
Voltando à realidade brasileira, temo que minha suspeita tenha se concretizado, felizmente apenas em parte. Existem, é claro, ilhas de excelência em nosso país. Há organizações em que a genialidade está diluída por todos os níveis, do fundador ao chão da fábrica. Mas resta uma multidão de analfabetos funcionais, que um dos paladinos da inovação e da produtividade, o empresário Jorge Gerdau Johannpeter, calcula em algo como 40% da população escolarizada. Em sua abalizada opinião, “A educação básica é a chave para resultados positivos. O conhecimento tem de estar dominado na gestão de processo para que se obtenham bons rendimentos. Sem educação, não funciona”. Para Gerdau, a inovação não está apenas no produto, mas também nos processos de administração de uma empresa. “É a soma desses conjuntos que garante o grau de competitividade das companhias”.
Gerdau, aliás, é um caso ainda raro no país de condutor de empreendimentos reconhecidos mundialmente pelo alto desempenho e pela capacidade de inovar, nos planos técnico e gerencial. A família Dedini, de Piracicaba, que está na raiz do desenvolvimento do etanol de álcool, também é outro caso. Uma lista desse tipo seria composta principalmente por sobrenomes de origem alemã, suíça, italiana e menos por originários de famílias ibéricas. Uma rara exceção é a família Ermírio de Moraes, responsável por avanços espetaculares principalmente na fabricação de cimento e determinados segmentos da mineração.
A economia brasileira fez grandes progressos nas duas últimas décadas. Porém, nosso sistema educacional estancou e está cada vez mais descasado do mercado de trabalho. Como menciona Don Tapscott, consultor e futurista especializado em cultura digital, se teleportarmos um professor de primeiro grau da década de 1930 para uma sala de aula de hoje, ele sairá dando aula. As mudanças na escola se tornaram ainda mais improrrogáveis do que há vinte anos, quando eu e colegas da Academia tratamos do tema pela primeira vez.




