Encontrar uma criança superdotada é tão importante quanto descobrir um poço de petróleo ou uma mina de diamante. (Clara Sodré [1])Início de ano gozando férias no litoral baiano, fui visitar amigos em Imbassai, à margem da Estrada do Coco. Na conversa de final de tarde, a menina Alzira, de seis anos, neta do caseiro, se intromete no que dizíamos e, por assombro nosso, falando sem parar, discorre sobre futebol, artistas de televisão e história do Brasil. Incomodada, a avó pede desculpas a todos e diz que a neta é assim mesmo “deseducada” e não sabe onde ela aprende “estas coisas”. Na realidade, uma criança com extraordinário talento verbal completamente desperdiçado. No Brasil, anualmente, perde-se 41 mil toneladas de alimentos, segundo Viviane Romeiro, coordenadora de Mudanças Climáticas do World Resources Institute (WRI) Brasil, uma instituição de pesquisa internacional. Isso coloca nosso país entre os dez que mais desperdiçam alimentos no mundo. Fosse só esse escandaloso desperdício, já poderíamos ser tachados de irresponsáveis. Mas a tragédia brasileira vai criminosamente além. Fala-se muito do desperdício de comida, desperdício de água e similares. Mas pouco se fala no desperdício de talentos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que entre 3% e 5% da população brasileira seja superdotada. Ou seja, os superdotados estão espalhados pelas salas de aula e por todas as classes sociais, independentemente de cor e gênero. Uma pessoa superdotada (o conceito mais apropriado é o de alta habilidade) é aquela que demonstra capacidade acima da média em uma disciplina específica ou em várias. Trata-se de estudantes com habilidades acima da média em artes, matemática, ciências, liderança, esportes ou português. Valorizam-se, assim, as mais diferentes habilidades, porque, na verdade, existem diferentes tipos de inteligência. Para definir os alunos com altas habilidades, não se considera apenas o teste de QI, criticado por boa parte dos especialistas da área de educação para superdotados por avaliar apenas a capacidade de raciocínio lógico e vocabulário acima da média. São levados em conta também os conceitos apontados pelo psicólogo americano Howard Gardner, da Universidade de Harvard, que considera oito tipos de inteligência: verbal, musical, matemática, espacial, corporal, intrapessoal, interpessoal e naturalista (capacidade de compreender os fenômenos naturais). A psicóloga Ângela Virgolim, professora do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento da Universidade de Brasília (UnB), elaborou este elucidativo infográfico sobre os diferentes perfis da superdotação, no qual se percebem alguns dos diferentes tipos de inteligência. (clique na imagem para ampliar) A escola, porém, não está preparada para lidar com esses indivíduos. Sem conhecimento adequado, proliferam mitos e preconceitos sobre as crianças com altas habilidades dentro das escolas brasileiras. Um deles é o de que esses meninos e meninas são casos raríssimos de prodígios ou gênios com grande conhecimento – o que não é necessariamente verdade. Trabalhar com alunos com altas habilidades requer, antes de tudo, derrubar alguns mitos. Por exemplo, o da famosa loira Jayne Mansfield, que na década de 1960 era só conhecida por seus exuberantes 102 centímetros de busto, mas tinha um QI de 163 (pessoas com QI mais alto do que 140 são consideradas geniais), tocava violino e piano, era comediante e sabia falar cinco línguas. Mas, esclarecendo, os chamados superdotados não são gênios com capacidades raras em tudo (só apresentam mais facilidade do que a maioria em determinadas áreas) e o fato de terem raciocínio rápido não diminui o trabalho dos professores que os instruem. Ao contrário, eles precisam de mais estímulo para manter o interesse pela escola e desenvolver seu talento. Caso contrário, podem até se evadir da escola ou serem cooptados pelo crime, como ocorre com inúmeros criminosos, cujas potencialidades não foram aproveitadas na escola. Por isso mesmo, alunos com altas habilidades também devem ser alvo de uma educação inclusiva na rede regular de ensino, precisam de uma flexibilização da aula para que suas necessidades particulares sejam atendidas. Hoje, nos contextos escolares, eles estão invisíveis, são pouco notados por seus educadores e, por conta dessa pouca percepção de suas habilidades, de seus interesses e de suas necessidades, têm pouco acesso aos serviços educacionais especializados. As escolas, especialmente as públicas, não sabem identificar os superdotados. Nem muito menos como ajudá-los. Como, muitas vezes, não suportam a rotina escolar, os alunos altamente habilidosos são desprezados e punidos. E, não raro, tratados com antidepressivos. Nosso maior desperdício é o de talentos em geral. Isso se torna ainda mais grave diante dessa multidão de indivíduos que nasceram com uma altíssima propensão ao talento. Se as estatísticas estiverem corretas, estamos falando de cerca de 10 milhões de estudantes. Jogamos fora o que temos de melhor – e, não raro, alguns deles acabam sendo recrutados pelo que existe de pior. Negligenciar o desenvolvimento desses talentos não é prejudicial apenas para eles. Ao agir dessa forma, o Brasil perde, no mínimo, boas oportunidades. Sem investir em programas para altas habilidades, perdem-se líderes, invenções, profissionais com potencial para se tornarem nomes de destaque em diversas áreas do conhecimento. E nós, gestores, dirigentes, coordenadores e professores de escolas, o que estamos fazendo para valorizar as habilidades e não desperdiçarmos nossos grandes talentos? _____________________ [1] Clara Sodré é doutora em educação especial pela Columbia University, de Nova York, e diretora do Instituto Lecca, do Rio de Janeiro, que cria oportunidades de desenvolvimento e inclusão para crianças, jovens e suas famílias.