O impossível não existe. A abertura da Paraolimpíada do Rio foi uma celebração da mistura de assombrosa agilidade com férrea determinação que constrói atletas excepcionais.(Lizia Bydlowski – Revista Veja)As paralimpíadas nasceram com os mutilados de Segunda Guerra Mundial para incutir na sociedade que eles poderiam mostrar, pela disputa esportiva, que haviam se recuperado dos problemas psíquicos e físicos herdados nas batalhas. O certame progrediu de tal forma que tornou-se evento mundial realizado a cada quatro anos com participação de deficientes de todos os gêneros. Este ano o Brasil sedia as Paralimpíadas e é difícil saber o que destacar sobre a cerimônia de abertura da Rio 2016, em meio àquele Maracanã lotado, o público emocionado assistindo a cada delegação que surgia com uma comissão de frente formada por cadeirantes, cegos, amputados e atletas com outras deficiências. Risonhos, todos transmitiam alegria e entusiasmo, saudando o público que os aplaudia. Outro espetáculo foi o desfile das nove crianças que emocionaram a todos e deixaram muita gente às lágrimas. Eram meninas e meninos com limitação motora que deixaram suas cadeiras de rodas e, presos pelos pés a seus pais por botas e coletes especiais, desfilaram orgulhosas levando a bandeira paraolímpica. Foram aplaudidíssimas e roubavam a cena a cada momento por onde passavam. A garganta ficou entalada. Muita emoção transmitida por uma imagem que fica para a vida inteira. Mais um momento que tocou todo mundo foi quando a ex-paratleta Márcia Maisar perdeu o equilíbrio enquanto carregava a tocha e foi reverenciada como campeã quando recusou ajuda e se levantou para seguir o trajeto. Márcia entregou a chama à ex-velocista Ádria dos Santos, que teve seis participações em jogos paraolímpicos, 537 medalhas conquistadas no Brasil e outras 70 internacionais. Ádria, então, passou a tocha ao último condutor, Clodoaldo Silva, dono de 13 medalhas, sendo seis de ouro. O nadador seguiu rumo à pira, localizada em uma intransponível – para ele, cadeirante – escada. Eis que o caminho se transforma em rampa, o atleta avança, acende a chama e a ovação do público completa o espetáculo. Naquela noite chuvosa de quarta-feira, 7 de setembro, foi realizado um show inesquecível de criatividade, luzes, tecnologia e dança, que em alguns momentos, imprevisíveis, adicionaram brilho e emoção à cerimônia. O ápice foi quando a bela Amy Purdy, snowboarder americana, sambou com seus dois pés biônicos ao lado de um robô. Uma inspiração artística. O esporte tem muito a ensinar sobre como vencer desafios, por meio de treinamento contínuo, trabalho em equipe, superação, perseveração, busca de excelência, administração de resultados e focos em metas. O esporte indica como alcançar seus sonhos, mostrando a necessidade de se correr atrás e de ter força de vontade para atingir os objetivos, sem esmorecer quando se erra. É tarefa para superdotados. E o desafio deve ser centuplicado para aqueles que, por motivos genéticos, nasceram com deficiências físicas ou mentais e outros que, por acidentes ou doenças adquiridas ao longo da vida, tiveram algum tipo de limitação. Há necessidade de força mental incomum. Esses atletas precisam ter ainda mais determinação para superar os obstáculos e necessitam de apoio familiar e, quando possível, do público também. Minha filha relatou o que ouviu de filho de uma amiga que nasceu com problema na coluna e aos 20 anos veio participar dos jogos paralímpicos. Mãe brasileira e pai americano, teve a sorte de nascer nos EUA e de hoje morar no Canadá. Sim foi sua sorte. Lá ele tem toda a assistência médica que precisou e precisa para estar vivo e saudável. Sim, John é saudável. Não anda e nunca vai andar. É super tímido e fala pouco, mas é fluente no francês, inglês, espanhol e entende português muito bem. Seu irmão gêmeo, completamente sadio, estuda medicina e a irmã mais velha, velejadora, mora na França. Ele reside com a mãe em Montreal. Há dois anos começou a treinar sério para ser atleta e viu que precisava ter foco, disciplina e exercitar-se muito, sempre. Descobriu que alcançar um sonho demora, que leva tempo para processar, que precisa de muito empenho. E aprendeu que deve treinar sempre, todo dia, muitas horas e com treinador exigente, determinado, impaciente e cobrador incessante por resultados, independentemente das limitações. É certo que, com quatro mil e trezentos atletas participantes nessas paralimpíadas, há incríveis exemplos assemelhados. Mas para ilustrar o que é superação, exponho também a história do mesatenista Ibrahim Hamadtou, que, por não possuir braços, segura a raquete com a boca e levanta a bolinha com os pés. Foi derrotado na estreia, mas afirmou que ninguém tira dele a satisfação de ter participado da Rio 2016. [caption id="attachment_11456" align="aligncenter" width="300"] Ibrahim Hamadtou
Foto: Getty Images[/caption] Cada uma das histórias que ouvimos ao longo desses jogos paraolímpicos nos emociona. Desde a cerimônia de abertura – estádio lotado, corações pulsando forte, o cenário lembrava a todos que o gênero humano pode se sensibilizar com a vida de seus semelhantes. O escritor Marcelo Rubens Paiva, um dos criadores desse maravilhoso espetáculo, relatou: "Os atletas são hoje os grandes líderes dos deficientes físicos. Só pela existência deles, já são líderes". Duvido que alguém não tenha sido tocado pela emoção de algum desses momentos espetaculares que estamos acompanhando. Mas, passados esses 10 dias de duração dos jogos, vem o dia seguinte, cada um de nós segue a vida com seus problemas, e toda esta união de sentimento fraterno se esvai. A sensibilidade de todos nós está longe do cotidiano dos deficientes até nas pequenas coisas. Ninguém percebe porque o problema não é com ele. Não nos afeta o fato de os restaurantes, bares e botecos não terem uma rampa de acesso ou um cardápio em Braille. Não percebemos o quanto é importante cada calçada estar bem cuidada, sem buracos pelo caminho. A mobilidade urbana deveria ter uma agenda imediata em todas as cidades brasileiras, assim como deveria estar em pauta maior conforto nas residências, com suas escadas e banheiros inapropriados. Não nos damos conta de nada disso porque muitas vezes essas limitações não nos impactam e pensamos que nada disso nos diz respeito. No ensino superior, ainda é proporcionalmente pequeno o número de estudantes deficientes matriculados. Sabemos que existem dezenas de instituições particulares que, a duras penas, trabalham com iniciativas para apoiar os deficientes nos setores da saúde, educação e lazer. Mas a realidade é que não temos políticas públicas orientadas para administrar essas questões. Fora das quadras esportivas, estes jovens atletas precisam continuar a viver, tendo acesso a trabalho e educação. Precisamos fazer muito mais! E, para não ficar só em palavras, dou exemplo do nosso anacrônico sistema de ensino superior. Das centenas de milhares de trabalhos de conclusão de curso (TCC) destes últimos trinta anos, que vão ao lixo a cada início de ano, algum deles tocou de alguma forma em algum tema de como melhorar a vida de seu vizinho deficiente? Se tiver algum, ganha prêmio.