Gabriel Mario Rodrigues
Presidente do Conselho de Administração da ABMES
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“A inteligência artificial saiu do laboratório (e dos estúdios de cinema) e está em seu prédio. Em sua casa. Em seu escritório. Está permeando todas as instituições que orientam nossa economia global. Desde o Alexa até o Nest, a Siri, a Uber e o Waze, estamos cercados por máquinas inteligentes – executadas em plataformas de software –, que possuem uma capacidade incrível e que aprendem sozinhas. E isso é apenas o começo.” (Malcolm Frank, Paul Roehrig e Ben Pring)
Na década de 1970, assisti à peça teatral “Quando as Máquinas param”, do contravertido autor Plínio Marques de Barros (1935-1999). A história de grande repercussão que segue com reapresentações até os tempos atuais é sobre um jovem casal, Nina e José, moradores da periferia paulistana, que viviam os arroubos amorosos da juventude, com planos de ter filhos, carro e morar em condomínio. Porém, diferente do planejado, a felicidade desaba quando Zé é demitido e vai para o olho da rua. Mesmo depois, por mais que procurasse, não encontrava emprego, e, com as discussões diárias com Nina, o amor desaparece. Nessa situação de penúria, José revela um lado que a companheira não conhecia, o de desajustado para a vida e sem ânimo para nada. Seu consolo é a bebida.
Em tempos de recessão e desemprego, a atualidade da peça de Plínio Marcos (escrita em 1967) é o que mais assusta, porque todos sabem quantos desocupados temos no Brasil. E sem trabalho, além do desespero das famílias, toda a economia para, não há negócios, ninguém investe e no país não há desenvolvimento.
Concidentemente, citei em artigo anterior o livro com título parecido: “O que fazer quando as máquinas fazem tudo”, de Malcolm Frank, Paul Roehrig e Ben Pring, associados ao Center for the Future of Work, da Cognizant, que trata da questão do futuro que já está acontecendo, graças aos algoritmos, inteligência artificial, robôs, automação, big data e o mundo digital. A obra tem 12 capítulos distribuídos por 214 páginas, retratando tudo que está acontecendo e como devemos nos preparar para os desafios do futuro. O mais importante é que os autor4es passam uma mensagem otimista, de que os humanos, se “tiverem juízo”, vencerão os desafios da nova realidade de como funcionará o trabalho. O que faltou ao Zé, de “Quando as máquinas param”.
Para trazer à realidade dos anos 2020, o trio pesquisou muito. Ouviu estudiosos e especialistas e conversaram com diversas empresas e universidades. Tudo para entender como analistas, tecnólogos e economistas mundiais pensam sobre a grande mudança pela qual estamos passando, além de compreender como o trabalho será reinventado, reconfigurado e reestruturado nos próximos anos. Claro que modelado aos EUA. Por aqui as coisas são muito diferentes. Muito governo, muito discurso e falta de objetividade. Poucos têm a mínima ideia de que o futuro já começou e que o desafio maior será como promover trabalho para os milhões de Zés que circulam por aí.
O objetivo de toda essa pesquisa foi entender como a nova tecnologia modelará as oportunidades que hoje temos e as ameaças que enfrentamos (e enfrentaremos). Mas, sobretudo, prever como o homem e a máquina irão se relacionar e coexistir.
Assim, resolvi associar a “máquina do Plínio” às máquinas dos três autores que questionam se elas podem fazer tudo. O que restará para as pessoas quanto à sobrevivência? Como enfrentar um mundo onde a tecnologia precisa de menos gente para trabalhar?
A angústia do Zé é um tanto próxima do que sucederá com a atual ou futura geração, pois, se as máquinas param, não há como pagar o aluguel, fazer compras ou colocar comida na mesa. Drama do Zé, de Plínio.
Ainda que se tenha chegado a um ponto de sucesso na carreira, dando para se sentir seguro, isso pode mudar drasticamente de uma hora para a outra com o avanço de novas máquinas. Já pensaram nos filhos ou netos o que devem conhecer para serem bem-sucedidos e terem as ferramentas para superarem os desafios de uma nova realidade? Qual será o foco profissional deles, o que estudarão? E a grande pergunta: terão alguma chance de uma vida classe média quanto a que levamos hoje? É uma interrogação amedrontadora.
Para eles, tudo ficará bem se estivermos atentos, quando as novas máquinas substituírem as operações repetitivas das empresas atuais. Será mesmo? Quantos “Zés” precisarão ir aos estertores do sofrimento para aguentar tal proposta? Hoje, com ou sem máquina virtual, amargamos 14 milhões de desempregados no país. E o número vai crescer, por conta ou não dos bits, megabits ou gigabits, sem falar nos nanos.
Entretanto, devemos aceitar que a cada minuto as máquinas estão fazendo cada vez mais o trabalho que realizamos hoje. Essa é a premissa básica e central da discussão/exposição. Alguma dúvida?
De tudo, fica, entretanto, uma posição bastante otimista dos autores: “Quando as máquinas fizerem tudo, ainda haverá muito a ser feito. Vamos em frente”.
Se essas mudanças acabam com uma série de empregos, por outro lado fazem com que as empresas comecem a procurar profissionais que tenham bem desenvolvidas áreas de raciocínio lógico, competências cognitivas, criatividade e colaboração. O problema é que essas novas demandas do mercado não são atendidas pelos modelos tradicionais de educação.
A pesquisa “Tecnologias Digitais, Habilidades Ocupacionais e Emprego Formal no Brasil”, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), constatou que
"habilidades cognitivas, como as que envolvem raciocínio e domínio de linguagens, habilidades interpessoais, como o cuidado e o contato humano, habilidades gerenciais e habilidades ligadas às ciências, tanto as da natureza como as sociais ou aplicadas, terão maior importância no futuro".
O problema é que a qualificação para tais habilidades é baixa, ou nenhuma.
Para enfrentar os desafios, os pesquisadores apontam, em primeiro lugar, o aprimoramento dos sistemas de educação, com foco no ensino de competências e habilidades de valor cognitivo, analítico e socioemocionais. Depois, recomendam a criação de um amplo sistema de informações ocupacionais, com políticas integradas de recolocação e treinamento profissional, para melhor adaptação a um mercado em rápida mutação.
O que pouco se vê é o foco pela trabalhabilidade, pela instrumentalidade que leva o indivíduo a alguma profissionalização. É o desafio de todos que trabalham com educação é estarem preparados para formar gente em ocupações que ainda não existem. As realidades mudaram e não dá mais para pensar com a mente do século passado.