Há mais de 16 anos, precisamente em 22 de junho de 2004, era publicada pelo Conselho Nacional de Educação a Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
As Diretrizes foram editadas em concretização ao texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, cujo texto final, advindo da Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, torna obrigatória a inserção no currículo “o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.” Vale frisar que essa lei, em 2003, incluiu no calendário escolar o “Dia da Consciência Negra” a ser celebrado em 20 de novembro.
Por ocasião da apresentação da Resolução, o então Ministro da Educação, Tarso Genro, registrou que o objetivo daquelas diretrizes, compreendidas dentro de um conjunto de ações afirmativas do governo, era “corrigir injustiças, eliminar discriminações e promover a inclusão social e a cidadania para todos no sistema educacional brasileiro.”
Outras ações afirmativas como o ProUni e o Fies também são importantes aliados na democratização do acesso à educação superior. Em 2014, 48% dos contratos do Fies e 52% das bolsas do ProUni atendiam a estudantes negros e pardos.[1]
O que conquistamos desde então? Dados recentes do Censo da Educação Superior analisados pela Quero Educação indicaram que a quantidade de alunos negros no ensino superior saltou quase 75% entre 2014 e 2018[2]. Mas o que estamos fazendo para continuar avançando ou mesmo para evitar retrocessos?
Tatiana Dias Silva em Texto para discussão nº 2569 – Ação afirmativa e população negra na educação superior: acesso e perfil discente[3] analisou que:
Na rede privada, programas como o Fies, por sua vez, contaram com ampla expansão, especialmente de 2010 até 2014, período em que as regras foram alteradas e houve redução drástica dos beneficiários. Juntamente com o ProUni, que prevê bolsas integrais e parciais com critério de renda e subcota racial, os beneficiários desses dois programas representavam quase 58% dos ingressantes na educação superior privada em 2014 (19,4% em 2010). Nessa ocasião, Norte, Nordeste e Centro-Oeste passam a ter maior percentual na relação entre contratos Fies/vagas ofertadas por IES privadas (Corbucci et al., 2016; Matijascic e Corbucci, 2017). No entanto, Matijascic e Corbucci (2017, p. 34) ressaltam que “ao longo da última década, o crescimento das matrículas na rede privada não teve o mesmo dinamismo verificado no período 1995-2005, em que pese o aumento expressivo na concessão de bolsas do ProUni e de contratos de financiamentos junto ao Fies”.
Há muito conforto em atribuir à pandemia diversos fracassos atualmente experimentados e que ainda serão, mas não podemos ignorar que há muito tempo, bem antes da Covid-19, Fies e ProUni foram abandonados pelo Estado brasileiro, inclusive com alguns acenos de que suas mortes por inanição são favas contadas. O crescimento do acesso à educação superior da comunidade negra foi impulsionado por essas políticas sem as quais haverá retrocesso. A verificação dele é só questão aguardar pesquisas futuras.
Em 2018, estudos do IBGE apontaram que o rendimento médio mensal dos profissionais com faculdade foi de R$ 5.110, enquanto os que completaram apenas o ensino médio ganharam R$ 1.727 em média por mês. Naquele mesmo ano, informações sobre questões salariais se mantiveram. Os pardos ganhavam o equivalente a 57% do salário dos brancos. Entre os pretos, a distância era ainda maior: eles ganhavam somente 55,8% do salário do branco. Em 2019 o instituto publicou um informativo sintetizando alguns estudos intitulado Desigualdades Sociai por cor ou raça no Brasil[4]. A propósito alguns dados:
Incontestável a premente necessidade, inclusive impulsionados pelo desafio imenso que a crise legada pela pandemia irá nos impor em razão do aumento da desigualdade social, de revisitarmos algumas balizas utilizadas na construção das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana para que possamos acertar mais do que errar. Superar os indicadores sociais que escancaram nossa realidade depende de um enorme trabalho em diversas frentes.
Estou convicto de que a educação é o caminho mais efetivo para construção de uma consciência que reforce a igualdade básica de pessoa humana como sujeito de direitos de modo possamos superar a indiferença, a injustiça e a desqualificação com que os negros, os povos indígenas e também as classes populares às quais os negros, no geral, pertencem, são comumente tratados.[5] Não priorizar a educação por meio de ações afirmativas, seguir nessa trilha de desinvestimento em políticas de incentivo ao acesso à educação superior não é outra coisa senão racismo velado, e a história irá nos cobrar.
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[1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2014-09/fies-83-dos-estudantes-tem-renda-ate-15-salario-minimo#:~:text=Ministro%20diz%20que%2048%25%20dos,negros%20e%20pardos%20%7C%20Ag%C3%AAncia%20Brasil – Acessado em 10/11/20
[2] https://educacao.uol.com.br/noticias/2020/10/05/n-de-alunos-negros-na-universidade-explode-entre-docentes-alta-e-timida.htm – Acessado em 10/11/20
[3] 1.Brasil. 2.Aspectos Econômicos. 3.Aspectos Sociais. I. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. CDD 330.908 – ISSN 1415-4765. 2020, p. 14. (https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2569.pdf )
[4] Estudos e Pesquisas • Informação Demográfi ca e Socioeconômica • n.41 – ISBN 978-85-240-4513-4 – 2019 (https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf )
[5] Excertos extraído do voto condutor do Parecer CNE/CP nº 3/2004, aprovado em 10/3/2004 (Processo nº 23001000215/2002-96)