Max Damas
Assessor da Presidência da ABMES e do SEMERJ
Assessor da Presidência da FOA (Fundação Oswaldo Aranha)
Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido (1996), criticou o modelo de ensino tradicional ao cunhar o termo "educação bancária", no qual o professor é visto como o único detentor do conhecimento, enquanto o estudante assume um papel passivo, apenas "recebendo depósitos" de informação. Esse modelo, ainda presente na educação superior, ignora a necessidade de uma aprendizagem ativa e crítica, essencial para a formação de profissionais que precisam tomar decisões autônomas e resolver problemas complexos.
Na universidade, essa concepção de ensino expositivo e hierárquico ainda prevalece, especialmente em cursos que tradicionalmente valorizam a memorização de conteúdos e a reprodução de normas, como o Direito e a Medicina. No entanto, com as mudanças sociais, tecnológicas e culturais do século XXI, essa abordagem começa a ser questionada. O acesso à informação já não depende exclusivamente da sala de aula, e os desafios profissionais exigem habilidades que vão além da simples retenção de conhecimento. Pensamento crítico, capacidade de adaptação, trabalho em equipe e ética profissional são fundamentais para o desempenho das novas gerações de advogados, médicos, engenheiros e outros profissionais. Para preparar os estudantes para esse novo cenário, a relação professor-estudante precisa ser reformulada, deslocando o foco do ensino para a aprendizagem.
Mas como essa mudança pode acontecer dentro de um sistema que há tanto tempo prioriza o ensino baseado na transmissão de conteúdos? Quais são os obstáculos que impedem o professor de transformar a maneira como conduz suas aulas? E, principalmente, como o estudante pode se tornar um agente ativo desse processo de aprendizagem?
Quais são os desafios?
A principal barreira para essa transformação é a cultura acadêmica tradicional. O ensino universitário, especialmente em cursos como Direito, ainda se baseia na transmissão de conteúdos de maneira hierárquica. No Brasil, essa abordagem se reflete na ênfase dada à memorização de doutrinas e leis, em vez da construção do raciocínio jurídico. No cotidiano das faculdades, muitos estudantes são treinados para repetir normas, sem o incentivo para analisar criticamente as aplicações do Direito em cenários concretos. Em um curso de Direito Constitucional, por exemplo, um professor pode passar todo o semestre ministrando aulas expositivas sobre o texto da Constituição, sem promover debates ou reflexões sobre como suas normas se aplicam em conflitos reais. Essa limitação se torna evidente quando os alunos, ao ingressarem no mercado de trabalho, encontram dificuldades em interpretar e aplicar o conhecimento jurídico em situações imprevistas.
Na Medicina, o problema se manifesta de outra forma. Desde os primeiros anos do curso, os estudantes são submetidos a um ensino predominantemente teórico, com pouca experiência prática antes dos estágios obrigatórios. A falta de contato precoce com a realidade clínica pode levar à insegurança quando os alunos precisam tomar decisões em atendimentos reais. Um exemplo disso ocorre nas disciplinas de Semiologia Médica, onde a abordagem tradicional muitas vezes se restringe à descrição teórica dos sintomas e diagnósticos, sem oferecer aos estudantes a oportunidade de simular a prática clínica. O resultado é que, ao chegarem ao internato, muitos ainda não se sentem preparados para interpretar sinais clínicos e conduzir exames físicos de maneira eficaz.
Além da cultura acadêmica tradicional, outro grande obstáculo para a mudança no ensino superior é a sobrecarga docente. A divisão do tempo dos professores entre ensino, pesquisa e extensão impõe dificuldades práticas para a implementação de metodologias que exijam maior personalização do ensino. A estrutura universitária incentiva a produção acadêmica e o desenvolvimento de pesquisas, mas nem sempre oferece suporte para que os docentes possam inovar no ensino. Em cursos como Medicina, onde os professores frequentemente acumulam funções em hospitais universitários, essa sobrecarga se torna ainda mais evidente. A falta de tempo para acompanhar os estudantes de maneira mais individualizada leva a um ensino muitas vezes mecanizado, baseado em materiais padronizados e avaliações massificadas.
Ao mesmo tempo, há uma preocupação crescente com a necessidade de preparar os estudantes para um mundo profissional em rápida transformação. No Direito, a digitalização dos processos judiciais e o crescimento das legaltechs exigem que os novos advogados tenham familiaridade com tecnologia e saibam lidar com ferramentas digitais. No entanto, muitas faculdades ainda baseiam o ensino jurídico na interpretação de textos legais, sem oferecer experiências que envolvam o uso da tecnologia aplicada ao Direito. Algo semelhante ocorre na Medicina, onde a telemedicina e a inteligência artificial já estão modificando a prática clínica, mas poucas universidades integram essas novas realidades em seus currículos.
Se os desafios são tão evidentes, por que a mudança ainda é tão lenta? Uma das razões é a dificuldade de romper com a ideia de que o professor deve ser a única referência de conhecimento na sala de aula. Durante séculos, esse modelo foi considerado o mais eficaz para garantir a formação de especialistas, mas hoje sabemos que o aprendizado acontece de maneira muito mais dinâmica. Um estudante que apenas escuta uma explicação e decora um conceito dificilmente conseguirá aplicá-lo de maneira criativa ou adaptá-lo a novas situações.
O que fazer?
A mudança para um ensino mais centrado no aprendizado do estudante não significa eliminar o papel do professor, mas ressignificá-lo. O docente deixa de ser um mero transmissor de informações e passa a atuar como mentor e facilitador da aprendizagem. Isso implica criar ambientes de ensino mais interativos, onde o estudante possa participar ativamente da construção do conhecimento. No Direito, isso pode significar substituir parte das aulas expositivas por estudos de caso e simulações de julgamentos, incentivando os alunos a desenvolverem sua argumentação jurídica de maneira prática. Na Medicina, a solução pode estar na incorporação de metodologias que antecipem a experiência clínica dos estudantes, permitindo que desenvolvam habilidades essenciais antes de lidarem com pacientes reais.
Essa transformação exige um esforço coletivo. Os professores precisam ser capacitados para atuar como mediadores do conhecimento, as instituições de ensino devem oferecer suporte para que novas abordagens pedagógicas sejam implementadas, e os próprios estudantes precisam assumir um papel mais ativo em seu processo de aprendizagem. Pequenos ajustes na maneira como as aulas são conduzidas já podem fazer uma grande diferença. Um professor que, em vez de simplesmente expor um conteúdo, faz perguntas e incentiva o debate entre os alunos está criando um ambiente mais propício para a construção do conhecimento. Um médico que permite que os alunos pratiquem a comunicação com os pacientes antes do internato está preparando profissionais mais confiantes e preparados para os desafios reais da profissão.
Mas como professores e estudantes podem dar o primeiro passo para transformar essa realidade? A resposta pode estar na valorização do diálogo, na flexibilidade dos currículos e na disposição de experimentar novas práticas pedagógicas. O aprendizado não acontece apenas quando o estudante absorve informações, mas sim quando ele interage, questiona e aplica o conhecimento de forma significativa.
No final das contas, o verdadeiro objetivo da universidade não deve ser apenas formar especialistas técnicos, mas sim preparar cidadãos capazes de pensar criticamente, de resolver problemas e de se adaptar às constantes transformações do mundo. O sucesso acadêmico não deve ser medido apenas pela quantidade de conteúdo que um estudante consegue memorizar, mas pela sua capacidade de aplicar esse conhecimento de maneira ética, criativa e eficiente. A educação superior precisa evoluir para acompanhar as necessidades da sociedade contemporânea – e essa mudança começa pela forma como professores e estudantes se relacionam dentro da
6