A promulgação da nova política nacional de educação a distância (EAD), em maio de 2025, trouxe mudanças significativas para o ensino superior brasileiro. Ao impor novas regras, incluindo maior presencialidade, o novo marco regulatório impactou diversas áreas da formação acadêmica. Entre todas, a Enfermagem se destaca como o caso mais emblemático.
Com o fim da possibilidade de ingresso via EAD, a formação de novos enfermeiros, antes amplamente democratizada por essa modalidade, passa agora a depender exclusivamente da oferta presencial. Isso significa, na prática, a interrupção de uma trajetória de expansão que vinha garantindo acesso à formação em saúde para milhares de brasileiros, especialmente aqueles residentes em regiões remotas, com baixa cobertura educacional.
Segundo o Censo da Educação Superior, em 2023 o setor privado contabilizava 192.373 matrículas em graduações a distância de Enfermagem. Em relação aos ingressantes, dos 186.349 novos estudantes, 61% (113.616) optou pela formação a distância. Em 2017, esse percentual era de apenas 10%. Ou seja: em seis anos, a modalidade deixou de ser marginal para se tornar majoritária. Mais do que uma tendência, o dado revela uma necessidade.
Não foi o público da Enfermagem presencial que migrou para a modalidade a distância. Foram novos estudantes, com outras realidades, que encontraram na EAD a única chance de cursar uma graduação. Os números reforçam essa tese: o volume de matrículas presenciais permaneceu estável no período de 2017 a 2023, ao passo que a educação a distância alavancou o crescimento da área como um todo.
Dessa forma, com a mudança, quase 200 mil matrículas em Enfermagem deixarão de existir, pois não há garantia de absorção pelos cursos presenciais. Pelo contrário, a expectativa é de que uma migração em massa não ocorra. Isso porque, além da maior inflexibilidade da formação presencial, há outro fator central que faz da educação a distância uma modalidade mais democrática: o custo.
Levantamento divulgado na semana passada pela Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) e pela Hoper Educação mostra que a mediana da mensalidade dos cursos presenciais de Enfermagem é de R$ 841, enquanto na EAD é de R$ 366. Isso representa uma diferença de 2,3 vezes, um peso decisivo no orçamento de famílias de baixa renda. Em termos práticos, 100% das ofertas EAD têm mensalidades mais baixas que os 25% mais baratos do presencial.
Esse dado revela que o impacto da mudança regulatória não é apenas educacional, mas também social e econômico. A educação a distância atendia a um público-alvo com menor poder aquisitivo, geralmente trabalhadores, mães solo, pessoas mais velhas ou que vivem longe dos grandes centros urbanos.
O problema se acentua quando olhamos o recorte territorial. De acordo com o relatório, 768 municípios oferecem o curso de Enfermagem exclusivamente na modalidade a distância. Somente nas regiões Norte e Nordeste, são mais de 32 mil matrículas. A perda dessas vagas representa um colapso silencioso: menos estudantes, menos profissionais formados e, a médio prazo, menos enfermeiros nos postos de saúde, hospitais e unidades básicas.
Mas o cenário pode ser ainda mais desafiador. Ao todo, o Brasil conta com cerca de 2.200 municípios que possuem apenas educação a distância. Portanto, além dos 768 que deixarão ofertar Enfermagem, a nova regulamentação retira de mais de 1.400 cidades a possibilidade de virem a ter essa formação. A longo prazo, a medida pode gerar um déficit estrutural de mão de obra, justamente em um momento em que o Brasil enfrenta o desafio de interiorizar os serviços de saúde e ampliar a cobertura da atenção primária.
Segundo o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), o país conta com aproximadamente 3,2 milhões de profissionais da área, entre auxiliares, técnicos e enfermeiros. Apesar de o número parecer robusto, há uma desigualdade expressiva na distribuição territorial e a necessidade crescente de reposição e expansão, diante do envelhecimento da população, do aumento de doenças crônicas e da sobrecarga dos sistemas locais.
Além da realização de procedimentos, os profissionais de Enfermagem desempenham um papel estratégico na organização dos fluxos e na classificação de prioridades em centrais de regulação de internações hospitalares, ambulatorial e de urgência e emergência em todo o país. De acordo com o Centro Nacional de Informações do Trabalho na Saúde (CENITS), a Enfermagem é a maior categoria profissional no Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2024, ela representava 87,27% dos trabalhadores, entre enfermeiros, técnicos, auxiliares de enfermagem e parteiras.
Portanto, interromper o fluxo de formação desses profissionais significa enfraquecer a capacidade do sistema em responder às demandas da população. E mais: em um cenário de pandemia ou emergência sanitária, como o vivenciado recentemente, essa lacuna pode ser trágica.
Por fim, vale lembrar que, mesmo nas novas regras, o curso presencial de Enfermagem pode ter até 30% da sua carga horária virtualizada. No entanto, a exigência de maior presencialidade, com infraestrutura específica e corpo docente alocado, impõe um desafio logístico e financeiro para as instituições de educação superior, dificultando a abertura de novas turmas presenciais, especialmente em municípios menores.
Portanto, embora motivada por legítimas preocupações com a qualidade da formação, a medida precisa ser calibrada com critérios de acesso, equidade e impacto regional. O desafio é encontrar um equilíbrio entre a exigência pedagógica e a viabilidade social da formação em saúde.
Como apontado na pesquisa da ABMES e Hoper, o novo marco regulatório da EAD representa um “redesenho do produto educacional” no Brasil. No caso da Enfermagem, há o risco de afastar centenas de milhares de brasileiros do sonho de se tornarem profissionais da saúde e na carência de indivíduos capacitados para atuarem no sistema de saúde. Uma mudança que, se não for revista ou compensada por políticas públicas adequadas, pode representar um retrocesso social, sanitário e educacional de grandes proporções.
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