Qualquer um que fizer o mínimo esforço poderá ver o que nos espera no futuro. É como um “ovo de serpente”, metáfora usada por Hans Vergerus, personagem do filme de Bergman, para exprimir um mau prognóstico, porque é através das membranas finas da casca do ovo deste réptil que se pode distinguir a cobra monstruosa que está sendo gerada.O ovo da serpente (1977), filme produzido por Dino De Laurentiis, mostra a República de Weimar e o surgimento do nazismo na Alemanha. O roteiro foi escrito por Ingmar Bergman baseado numa meticulosa pesquisa histórica, que retrata, com muita propriedade, os primeiros passos de uma sociedade dividida que desembocaria nas mãos do nacional-socialismo alemão. Ele constrói com impecável riqueza de detalhes o mundo sangrento, paranóico e instável que era a Alemanha de 1923, ano em que se passa o filme. O Ovo da Serpente conta a história de um trapezista judeu que vê o seu mundo desmoronar, após o suicídio do irmão, e sua vida passar a se resumir na luta pela sobrevivência ao lado de sua cunhada, uma cantora de cabaré. É uma estranha realidade que mistura espetáculos musicais com a perseguição aos judeus e que prenuncia “a cobra monstruosa”, de que fala Vergerus – uma era de transtornos e guerra mundial. Ao tomar conhecimento da pesquisa do Semesp sobre a evasão do ensino superior fiquei perplexo e por essa razão enunciei o título deste artigo. Foi uma reação espontânea ao conhecer o incrível número de estudantes que se evadem anualmente do sistema universitário brasileiro. Este é um fato inquietante e que se mostrará mais grave ainda no futuro. O problema começa no ensino fundamental período em que um a cada quatro alunos que inicia abandona a escola antes de completar a última série. É o que indica o Relatório de Desenvolvimento 2012, divulgado no último mês de Março pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Com a taxa de 24,3%, o Brasil tem o terceiro maior percentual de abandono escolar entre os 100 países com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), só atrás da Bósnia Herzegovina (26,8%) e das ilhas de São Cristovam e Névis, no Caribe (26,5%). Na América Latina, só Guatemala (35,2%) e Nicarágua (51,6%) têm taxas de evasão superiores. Muito se tem escrito sobre o tema evasão e muitas palestras e seminários foram organizados, mas fora os comentários e as estatísticas de praxe, ninguém consegue dar pistas para solucionar a questão. Estamos diante, sim, de uma repetição esgotante de "achismos" sem que nada seja equacionado, a não ser o reconhecimento do apoio dado pelo governo para conter o problema, por meio do Fundo de Financiamento de Alunos (Fies), do Programa Universidade para Todos (ProUni) e do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). Ao lado da evasão, há um grande número de estudantes que perambulam como ciganos, de curso em curso, pulando de galho em galho, fazendo “gracinhas” com os investimentos alheios, como se fossem andarilhos educacionais sem rumo. O setor público e o setor privado não ignoram os males da evasão. No público, o governo deveria ser ressarcido pelo abandono de cursos estaduais ou federais. É inacreditável e inaceitável o número de vagas “ocupadas” para depois serem objeto de desistência por parte dos alunos. Prejuízo incalculável para a sociedade e irresponsabilidade gritante que não se pode mais suportar. É inaceitável a falta de percepção e de projetos pessoais da nossa juventude, “tão ligada”, quando se espera que essa conexão com o mundo exterior possa ajudar a definir condições suficientes para um posicionamento pessoal e profissional. As pesquisas sobre o assunto deveriam ser mais aprofundadas, especialmente para conhecer mais sobre os jovens como, por exemplo, se moram (ainda) com os pais, se promovem turnover profissional a toda hora e se trocam de amigos ao sabor dos ventos. É inadmissível que um adolescente do século XXI não tenha perspectivas de projeto de vida e continue a integrar o grupo dos “sem rumo” no mundo de inúmeras possibilidades. Segundo Giselle Beiguelman[1], O aumento da banda da telefonia móvel, a proliferação das redes sem fio e a multiplicação das plataformas dos chamados softwares sociais – blogs e redes de relacionamento, Facebook e outros – vêm produzindo mudanças sem precedentes nas formas de comunicação, produção e circulação de informações, de relacionamento e de visão do mundo. Como se explica então o comportamento indeciso, irresponsável, inconsequente e leviano dos nossos adolescentes em seus propósitos ou atitudes? Um estudo feito pela Public Agenda, organização de pesquisa, com mais de 600 pessoas entre 22 e 30 anos de idade revelou alguns mitos e realidades sobre a desistência dos estudantes antes de conseguirem o diploma de graduação. Os resultados do estudo intitulado With their whole lives ahead of them sobre a evasão dos universitários apontam:
Carga horária pesada. O primeiro mito indicado pelo estudo sugere que a maioria dos estudantes desiste da faculdade porque estão entediados com as aulas e não querem se esforçar. A pesquisa mostrou, no entanto, que os principais motivos para a desistência é a carga horária pesada daqueles universitários que precisam trabalhar para arcar com os custos dos materiais e das mensalidades.
Quem paga a universidade. O segundo mito sobre o mundo universitário é o fato de que a maioria dos estudantes é sustentada pelos pais e/ou recebe apoio financeiro, como bolsas de estudo. A realidade mostra que os jovens que não conseguem concluir a faculdade geralmente são os que pagam seus próprios estudos. O resultado mostrou que aproximadamente 6 entre 10 entrevistados que deixaram os estudos afirmaram pagar a graduação eles mesmos em vez de contarem com a ajuda de seus pais. Por outro lado, mais de 6 em 10 que obtiveram o diploma de graduação afirmaram ter recebido ajuda dos pais ou de outros parentes para arcar com os custos da faculdade.
Opções limitadas. O terceiro mito diz que os estudantes passam por um processo meticuloso para escolher a universidade onde vão estudar. Porém, a realidade mostra que a maioria dos estudantes tem opções limitadas e não conta com informações ou recursos suficientes para escolher a instituição de ensino. O resultado disso é que a escolha dos universitários tem grandes chances de ser baseada em fatores que estão na contramão da qualidade de ensino. O estudo aponta que a maioria dos estudantes que desiste do ensino superior escolhe a universidade devido à localização, ou seja, perto do local onde a pessoa trabalhava ou morava. Apenas 33% dos entrevistados afirmaram ter escolhido uma universidade pela sua reputação acadêmica.
As causas são múltiplas e não existem receitas específicas. O fundamental é não deixar que um aluno pare de estudar por falta de condições. Para além dos mitos, é importante saber como agem os gestores das nossas instituições de ensino superior para evitar o problema da evasão. Fazem cirurgia sem anestesia e quebram qualquer orçamento, prevalecendo a coitadice ou vitimização como: “Viram a quanto foi reduzido número de alunos?”. Se insistir em resgatar os prováveis motivos da evasão e/ou desistência, seria repetir o “já dito”, nos resta perguntar qual é o diferencial que se deve propor para abordar, por derradeiro, esse tema? Podemos fazer algumas conjecturas, que, por certo, indicam caminhos para se chegar perto da solução desse espinhoso problema:1) A evasão dos ingressantes tem algo a ver com o baixo rigor na seleção dos candidatos ao vestibular?
2) Seminários de carreiras, ao longo do semestre, para os vestibulandos, sobre cenários profissionais poderiam diminuir a evasão?
3) Plantões diários com atendimento especial para esclarecer vocações e mercados de trabalho/empregabilidade poderiam atenuar o problema?
4) Se a evasão, historicamente, alcança sempre o mesmo porcentual, onde afinal está o gargalo?
5) Por que os portais universitários não são mais esclarecedores, oferecendo um rol de profissões e informando sobre os respectivos mercados de trabalho bem como sobre as médias salariais?
6) O quadro docente do primeiro semestre deveria ser constituído de “cobras” performáticas para encantar os calouros. Tais docentes sabem da responsabilidade em manter o aluno/turma com os desdobramentos que acarretam nos semestres subsequentes, em prejuízo de todos?
7) Por que não propor um currículo mais flexível com menor tempo de integralização e, com isso, reduzir a mensalidade? É trabalhoso montar um currículo para tal, mas pode ser uma solução para os que têm problemas financeiros. Por que a pressa dos quatro anos? No passado existiam os cursos com oferta do regime de créditos. E nada de ruim consta sobre eles.
8) Seria falta de coragem desses alunos, ou seja, são dominados por medos de um percurso estudantil penoso, que não se deseja assumir e a primeira impressão é a de se estar diante de um “ovo de serpente”?
9) As IES estão atentas para o fato de que os nativos digitais já estão chegando à universidade e que não aguentam conversa fiada do professor?
10) Como as IES deverão proceder para motivar o aluno a permanecer em sala de aula sem que ele perca tempo com informações que ele tem na rede?
A sala de aula é, sim, um “ovo fecundo” – que prenuncia um futuro promissor – se qualifica recursos humanos para se realizarem como cidadãos e como profissionais, capazes de atuar de forma competente e ética no processo de transformação do país.