Por: Carmen Tavares*
A figura do pesquisador tem passado por uma transformação silenciosa e profunda. Longe da imagem clássica do cientista isolado em seu laboratório ou do acadêmico cercado de livros em uma biblioteca, o pesquisador contemporâneo é, cada vez mais, um profissional multidisciplinar, hiper conectado e tecnologicamente habilitado. Ele precisa dominar métodos, teorias e escrita científica, mas também precisa saber dialogar com dados em larga escala, inteligência artificial, ambientes colaborativos e redes globais de conhecimento.
No centro dessa transformação está uma questão simples, mas poderosa: o que significa ser um bom pesquisador hoje?
O bom pesquisador: entre a paixão e o método
Ser um bom pesquisador não é, essencialmente, sobre saber tudo — mas sim sobre saber perguntar. O ponto de partida da pesquisa não é o dado, nem o método, mas a curiosidade bem direcionada. Grandes investigações surgem de perguntas bem formuladas, baseadas em observações críticas e inquietações genuínas. Um bom pesquisador é, antes de tudo, alguém que cultiva o espanto diante do mundo, mas que é capaz de organizar esse espanto em um caminho metodológico confiável.
Isso exige mais do que inteligência: exige disciplina, resiliência, espírito crítico e compromisso ético. Saber lidar com a frustração dos dados que não confirmam a hipótese, ou com a revisão rigorosa de pares, é tão importante quanto a criatividade na hora de conceber um experimento ou analisar um fenômeno. A excelência na pesquisa está na junção entre método e sensibilidade investigativa.
Contudo, no século XXI, essa excelência passa por um novo ingrediente: o domínio da tecnologia como ferramenta epistemológica e operacional.
A tecnologia como Co pesquisadora
A tecnologia deixou de ser apenas um suporte logístico para se tornar uma verdadeira parceira no fazer científico. As ferramentas mais avançadas estão ampliando as capacidades humanas de analisar, visualizar, comunicar e até gerar conhecimento. Mas para compreender seu impacto real, é preciso ir além dos exemplos mais comuns como Mendeley, Google Scholar ou formulários digitais. O pesquisador contemporâneo pode — e deve — explorar tecnologias de ponta que estão redesenhando os contornos da própria investigação.
1. IA Generativa como ferramenta de síntese e prototipagem de ideias
Modelos de linguagem avançados como GPT-4 (OpenAI), Claude (Anthropic), Gemini (Google DeepMind) e LLaMA
(Meta) não servem apenas para revisar textos ou sugerir sinônimos. Eles são capazes de atuar como Co pesquisadores conceituais. É possível, por exemplo, pedir que a IA gere mapas conceituais com base em centenas de artigos, identifique lacunas em determinada área ou proponha experimentos com base em parâmetros definidos pelo pesquisador.
Mais do que economizar tempo, essa colaboração com a IA pode gerar novas perspectivas. Um exemplo é o uso de IA para simular argumentos filosóficos ou dialogar com modelos teóricos divergentes, o que tem sido explorado por pesquisadores em epistemologia e ciências sociais computacionais.
2. Ferramentas de mineração semântica e leitura aumentada
Softwares como Iris.ai, Scite.ai, Elicit.org e Semantic Scholar não apenas buscam artigos, mas interpretam seu conteúdo. Eles identificam afirmações centrais, extraem evidências, comparam abordagens e até avaliam a força dos argumentos com base em redes de citação.
Iris.ai, por exemplo, utiliza redes neurais para entender o conteúdo semântico de uma pergunta de pesquisa e sugerir artigos relevantes com base no “significado” e não apenas em palavras-chave. Isso permite que pesquisadores encontrem trabalhos que, embora usem terminologias diferentes, tratam da mesma problemática.
3. Plataformas de análise em larga escala e ciência de dados aplicada
Na era dos dados massivos, saber utilizar ferramentas como Google BigQuery, Databricks, Snowflake ou linguagens como Python e R com bibliotecas como Pandas, Matplotlib e Scikit-learn, é essencial para pesquisadores que lidam com grandes volumes de informação, mesmo nas ciências humanas.
Projetos interdisciplinares já estão integrando mineração de sentimentos em redes sociais, análise de discurso político em tempo real ou rastreamento de comportamentos online com uso de aprendizado de máquina. A ciência de dados se tornou um novo alfabeto para quem quer interpretar o mundo digital.
4. Laboratórios digitais e simulação computacional
Em áreas como biologia, engenharia, química ou climatologia, a simulação computacional já é considerada equivalente à experimentação física. Softwares como COMSOL Multiphysics, ANSYS, AutoDock, Simulink e até ambientes de realidade virtual são usados para testar hipóteses, simular condições impossíveis de replicar em laboratório ou acelerar a modelagem de novos materiais.
Na pesquisa farmacêutica, por exemplo, algoritmos de deep learning como AlphaFold (DeepMind) revolucionaram o entendimento da estrutura de proteínas, antecipando descobertas que antes exigiam anos de laboratório.
5. Plataformas de ciência aberta e reprodutibilidade
A ciência do futuro é colaborativa e aberta. Ferramentas como Open Science Framework (OSF), Protocol.io e Jupyter Notebooks estão democratizando o acesso aos dados, aos códigos, aos métodos e até aos erros das pesquisas. A lógica da “ciência reprodutível” exige que o pesquisador compartilhe seu processo completo, o que estimula a transparência e a confiança nos resultados.
Além disso, ambientes como Kaggle, voltados à ciência de dados, permitem que pesquisadores de diferentes partes do mundo testem soluções em conjuntos de dados abertos, criando uma verdadeira comunidade científica em tempo real.
6. Ambientes de escrita e publicação baseados em IA
A escrita científica também está passando por revoluções. Softwares como Writefull (que sugere reescritas com base em corpora de artigos científicos), Trinka AI (voltado para escrita acadêmica), e Overleaf com LaTeX + IA estão otimizando o processo de produção e submissão de artigos. Eles ajudam não só na clareza textual, mas na conformidade com normas, detecção de jargões excessivos e alinhamento com práticas editoriais.
Mais recentemente, editoras como Elsevier e Springer têm começado a integrar assistentes baseados em IA para recomendar revistas, otimizar resumos e até sugerir melhorias metodológicas com base em banco de dados de rejeições editoriais.
Ética e pensamento crítico: o insubstituível
Apesar de todo esse avanço, é preciso fazer uma advertência importante: a tecnologia é uma aliada, não um substituto da reflexão crítica. Nenhuma IA pode — ou deve — tomar decisões teóricas, epistemológicas ou metodológicas no lugar do pesquisador. O papel da tecnologia é expandir a mente humana, não suprimir seu julgamento.
Além disso, o uso ético dessas ferramentas é uma responsabilidade fundamental. O plágio automatizado, a manipulação de dados, a omissão de fontes ou o uso de IA sem transparência são práticas condenáveis que ferem a integridade científica. Um bom pesquisador do século XXI precisa ter não apenas domínio técnico, mas também consciência ética e responsabilidade pública.
Diante desse novo cenário, ser um bom pesquisador é também ser um bom navegador de complexidades: alguém capaz de unir sensibilidade e suor intelectual, rigor científico, domínio técnico e consciência ética para produzir conhecimento significativo. A tecnologia, quando usada com discernimento, potencializa a investigação humana, amplia horizontes e acelera descobertas — mas nunca substitui a responsabilidade de pensar, duvidar, interpretar e construir sentido. Mais do que adaptar-se a ferramentas, o pesquisador do século XXI deve cultivar uma mentalidade aberta ao novo, comprometida com a verdade e com o impacto social do saber. Afinal, a ciência continua sendo, acima de tudo, um ato humano — e agora, também, profundamente ampliado pelas mãos invisíveis da inteligência artificial.
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*Maria Carmen Tavares Christóvão é Mestre em Gestão da Inovação com área de pesquisa em Inovação Educacional. Diretora da Pro Innovare Consultoria de Inovação, atuou como Reitora, Pró Reitora e Diretora de Instituições de Ensino de diversos portes e regiões no Brasil.