Candido Mendes* ***Não há unanimidade quanto à educação se não se elegerem as prioridades de um programa de mudança, como pede qualquer ideário de desenvolvimento. Da mesma forma, a sua abordagem, em termos de políticas públicas, passou por sucessivas e distintas tônicas. Da luta contra o analfabetismo à expansão compulsória do ensino secundário e ao esforço do investimento público na sua aceleração. A meta do terceiro grau chega tarde, mas na ênfase que assume no governo Lula, ao postular o acesso a todos os níveis de educação dos estratos desmunidos do país.
As urgências óbvias
São múltiplos as instâncias, os fóruns, os cenáculos em que se poderá partir para a implantação da reforma do terceiro grau. Esse desiderato brasileiro tem o lugar cativo da utopia na nossa cabeça e nele se instala como o seu próprio mito. É sua a rotina própria das tarefas inconclusas, em que se purgam uma visão ideal de políticas públicas, o voluntarismo das mudanças e seu permanente recomeço. Ela se agudiza, exatamente, quando a mudança, como agora, torna-se viável e se antecipa na perspectiva sem concessão de seus cenários. No cerne desse perene embate estarão as redefinições da autonomia universitária, das condições de decisão do seu corpus coletivo, do âmbito da universidade pública e do caráter gratuito da sua prestação. Ou do fomento aos turnos noturnos de seus campi.
Nas entrelinhas desse vastíssimo e repetido ementário, vão, entretanto, aflorar as questões da prática-prática do atual estado da arte do nosso ensino superior, numa agenda invisível, no atender dessas urgências, em medidas paralelas volta às reformas e à sua polêmica exaustiva. É hoje de 76% a dominância da universidade privada no quadro do desenvolvimento brasileiro, e 2/3 da frequência da universidade pública encontram-se nos grupos das classes A e B de detenção da renda nacional. Toda a atual política que tende ao regime de cotas para sobrepor-se à dita “elitização social” do campus dá-se conta de estar criando um sentimento de discriminação intracampus para os favorecidos.
As políticas públicas
Não sem razão, volta ao centro das políticas públicas de mudança o problema da reforma universitária. Nele se entrechocam o idealismo renitente e a fome do agora; a combinação paradoxal entre o indicador talvez mais largo da mudança e o que de imediato se requer – até em prazos mínimos – para dar vigência à tarefa. Retomamos, de década em década, o grande propósito. Não existirá, talvez, política pública em que o balanço do que se conquista se exponha à tentação de um recomeço e do querer fazê-lo cada vez melhor, num coeficiente utópico que se passe como um anel, de mão a mão, entre as gerações.
A margem ainda do verdadeiro imperativo da educação para a mudança só tem reforçado o padrão corporativo no seu controle e expansão. É, sobretudo, o caso da profissão de advogado e de sua longa manu crescente sobre a abertura dos cursos jurídicos no Brasil. A exigência da qualidade é já princípio constitucional, afeto ao próprio Ministério, e desnecessita de um bis in idem, na contenção do direito de ensinar, assegurado à família e à sociedade brasileiras. Na verdade, o surto corporativo clausula esta formação que exorbita, de muito, a especialização advocatícia, abrindo-se as vocações judiciárias no aparelho de Estado, sobretudo às carreiras políticas e do desempenho da sua representação. À margem deste horizonte, a preocupação, indeterminada e difusa, com a qualidade se afunila no impasse corporativo, imposto à mobilidade social garantida pelo direito generalizado de educar. Termina por dispor sobre “reservas de mercado”, no clássico efeito de inverter o ciclo das gerações, no avanço das oportunidades sociais do país.
Como continua a ser indissociável na universidade brasileira a relação entre o ensino e a pesquisa, não fugirá o governo à nova contradição, que é a de que, dependendo dessa mesma pesquisa, dos fundos setoriais, esses, via de regra, só contemplam os campi públicos. Vão as universidades privadas, na sua enorme maioria, ficar no padrão meramente da preleção, ou se assegura um acesso generalizado a esses recursos, inclusive, e de vez, distinguindo-se, para merecer o direito à autonomia, a verdadeira universidade dos atuais ditos centros universitários?
Esquecemo-nos de que hoje o âmbito da educação no mercado nacional chega aos seus 12 bilhões anuais envolvidos, a responder por 10% da atividade negocial do país. Trata-se de macroatividade que encontrou seus dinamismos próprios e que tem condição de, frente a uma política pública, ao mesmo tempo, confrontar, à tarefa da educação, o teor ainda muitas vezes mal definido da sua atividade negocial. Neles se incluem, ao lado de empreendimentos intrinsecamente comunitários e religiosos, a de uma zona necessitada do amadurecimento do seu perfil institucional, as ditas organizações filantrópicas, bem como das atividades privadas que não se pautem ostensivamente pelo lucro, ao lado das confessada e flagrantemente empresariais.
Hoje, exatamente, o país apresenta alguns experimentos vingados, em termos de economia de escala, dessa organização tardia da educação entrada firmemente no mercado, como resposta à definição do direito de ensinar, como aberto a toda a sociedade civil brasileira e a quem queira nela correr o seu risco. Podemos ter atualmente campi com 85 mil ou 45 mil estudantes privados, não obstante mais de 50% das entidades de ensino particular do terceiro grau não atinjam o grau universitário, nem se dediquem a mais de um milhar de alunos. Como se definem as economias de preços, dentro de diversidade de escalas que já permitem esses diversos empreendimentos? E de que forma a versatilidade, já lograda por algumas dessas casas, lhes permite, pelo seu tamanho, um nível de oferta desses serviços a um estudantado que se alterou radicalmente na última década?
A emergência da megaempresa universitária
No quadro da educação superior em meios desse segundo mandato do presidente Lula, desponta um crescimento exponencial da área privada. Fora, entretanto, de uma extensão harmônica de todos os seus componentes, num avanço inédito da empresa com finalidades lucrativas, e em pleno desatar de todo o dinamismo de uma economia de mercado.
O setor abrange hoje, ao lado das universidades comunitárias e confessionais, a prestação particular envolvendo, respectivamente, as organizações filantrópicas e, cada vez mais, a empresa aberta a todas as condições em que a Constituição assegura à livre-iniciativa. A atividade educacional, nesses mesmos termos, entretanto, é regulada pelos princípios do art. 206 da Carta, condicionada, por exemplo, à garantia de um acesso generalizado ao mercado e à complementaridade obrigatória de sua prestação, em ensino, pesquisa e extensão, no âmbito do terceiro grau.
Por força, a atividade filantrópica seria de compatibilidade primária com o preceito constitucional, toda estribada, pois, na contenção do lucro numa prestação ligada essencialmente à sua natureza social, ou de uma vantagem individualmente apropriável em ganhos da operação. A legislação considerou, ipso facto, como a marca da filantropia, a reinversão completa de suas disponibilidades no próprio investimento, sem caracterizar a exigência de uma melhoria intrínseca de produtividade ou de privilegiar os custos de inovação.
Afastamo-nos, nesse particular, de regulações alternativas, como a que, por exemplo, manteria esse valor de investimento ao máximo de 8% sobre as despesas estritas de operação. Neste padrão se configuraria a visão do “serviço pelo custo”, ainda no ideário de ver o ensino prestado primacialmente pelo Estado, e pela sociedade, de que a organização filantrópica seria a projeção natural.
O condicionamento Constitucional da Livre-Iniciativa
Atente-se, ainda, a que a Carta não explicita a plenitude da empresa privada nesta prestação social, mencionando, por exemplo, a naturalidade de seu lucro. Vai vê-la, sim, no quadro desse adjutório, em que toda política pública de educação atenta a essa prioridade do desenvolvimento, e admite a sua prestação particular subordinada à permanência da sua qualidade, mediante a fiscalização contínua do Estado.
No horizonte atual desse desempenho, o que importa é verificar se a aceleração deste crescimento se compagina às exigências do pluralismo e da efetiva coexistência entre o setor público e privado (art. 206, III). É o que implicitamente reclama compatibilizações de escala nesta prestação, e donde, sempre, pois, em níveis comparáveis de expansão. A Carta deixou nítida a distinção da plena economia de mercado, da livre-iniciativa garantida ao prestador particular, nos condicionamentos impostos pelo art. 206, ao megainvestimento e ao condicionamento que traz às “ideias” e às “concepções pedagógicas” cuja variedade a Constituição situa como um absoluto da tarefa educacional.
O imperativo do pluralismo
Todo pluralismo envolve, socialmente, uma regra áurea no jogo da reciprocidade de perspectivas, do reenvio de influências e na permanente existência de alternativas, a que se liga o compromisso essencial e terminante do ensino com a formação humanística do país, que salienta o art. 214, V, da Lei Magna. Não é outro o quadro que pede a presença da diferença de seus reenvios, como garantia mesma da própria aventura do conhecimento e do que seja intrinsecamente aquela porfia, pela expansão sempre aberta da dita qualidade. Fere o pluralismo da Carta qualquer transigência da regulação com essas rupturas de escala, que hoje já parecem abrir-se a um exponencial irrecorrível de controle do mercado, em vertiginosa concentração, pelo novo megaaporte trazido à tarefa de educar.
O personalismo da prestação
Da mesma forma, indagar-se-ia até onde este pluralismo comportaria, no formato da empresa, a componente anônima na constituição de seu capital. Tal, nessa mesma medida em que a tarefa de educar concerne ao nervo da transmissão geracional desses valores da pessoa, à imediatez do seu reconhecimento, ao cuidado ou à vigília que tem, como seu verso, à responsabilidade indelegável de adensarmos a nossa identidade histórica.
Por outro lado, o fazer da atividade educacional extrapola da dinâmica da obtenção de lucro e seu desempenho estritamente mercadológico. Avaliamos a prioridade garantida à ação das “ideias” e das opções pedagógicas, em que o constitutivo social da educação se impõe à sua prestação privada. Salientar-se-á que em nenhum momento a Carta garante a lucratividade do empreendimento e por força o subordina aos imperativos em que a educação comparece, sub conditione, a uma economia de mercado. E nela, com as garantias regulatórias, para dar-se conta do risco assumido, e atendida a avaliação realista das carências de um imperativo de mudança e das prioridades da sua prestação, para o bem comum do desenvolvimento.
O quadro com que se depara traz cumulativamente à perda da coexistência de toda gama dos prestadores a ameaça da despersonalização da oferta, em claro desatendimento ao princípio do inciso III do art. 206 da Constituição.
O controle nacional da universidade
Atentando-se ainda, em 1988, a um quadro incipiente do interesse lucrativo na tarefa de educar, fixando-se espontaneamente no quadro filantrópico desta atividade, não cogitou a Carta pôla ao resguardo de sua eventual passagem a um controle externo, nem garantiu, pois, explicitamente em atividade crucial à identidade brasileira, a sua oferta pelo capital externo. De logo se verificaria, entretanto, a rejeição instintiva à proposta, tanto se registrou seu caráter excepcional, objeto, inclusive, de emenda expressa à Carta. É no limite mais estrito do profissionalismo individual deste concurso, ou seja, o da contratação de professores estrangeiros, que se limita a permissão, numa acolhida sempre sob reserva, e exceção, “na forma da lei”, como exige a Emenda nº 11, de 30 de abril de 1996. A fortiori se depreenderá, chegando até ao impensável, a admissibilidade da presença internacional nas ideias instituidoras desta prestação, ou nas “concepções pedagógicas” que a regessem.
Na verdade a figura emergente – mesmo não existam universidades nacionais – é a desses novos complexos de investimentos gigantes, a assumir o capital da empresa de ensino. Dentro de seu anonimato passam a trazer-nos visões de mundo, modelos, condições de eficiência, em que a modernização não é no caso de ensino uma dinâmica neutra e de excelência empresarial estrita.
Passam, sim, a interferir nos metabolismos históricos de identidade nacional, do reconhecimento das gerações e da construção estrita da nossa subjetividade.
Assistimos hoje ao controle crescente, nessas sociedades anônimas de fundos de pensão, de universidades americanas, de associações já especializadas inclusive nesta melhoria otimal da prestação, que pode vir de parte com a expropriação de um modo de conhecer e de interrogar-se de nossa cultura. E tal a incidir na virtualização de um “ver o mundo”, a partir de uma ótica equivocada da uniformização da excelência urbe et orbi, e não da variedade intrínseca do pluralismo, que garantiu a nossa Carta. Se esta não protegeu, entretanto, especificamente o caráter nacional do ensino, não se desmuniu dos petrechos para fazê-los, a qualquer hora. Aí está a viabilidade de a lei disciplinar, a qualquer tempo, pelo art. 172, esses investimentos, com base no “interesse nacional”. De pé fica, nesses mesmos termos, a viabilidade de dissociar-se o controle deste input, sempre dentro do imperativo da sustentabilidade do desenvolvimento, e da carência de capitais e recursos nas tarefas prioritárias da mudança nacional. Não sem razão, no quadro do aparelho pensado pela ambição da reforma universitária, ora em compasso parlamentar, propôs-se que – sempre em numeros clausus, minoritários – o investimento estrangeiro pudesse chegar a 1/3 do capital das empresas brasileiras privadas de educação.
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* Cientista político e advogado. Reitor da Universidade Candido Mendes (Rio de Janeiro/RJ). Presidente do Fórum de Reitores do Rio de Janeiro. Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). cmendes@candidomendes.edu.br
** O texto, na íntegra, foi publicado na edição de nº 39 da Revista Estudos – ABMES, na seção Pontos de Vista sobre Políticas Públicas para o Ensino Superior Particular. Mais informações sobre a publicação pelo número (61) 3322-3252




