O século XX foi um período miraculoso para a civilização humana. Iniciamos esse período com uma expectativa média de vida de 43 anos e o findamos com incríveis 76 anos. Saneamento básico, incluindo água potável, penicilina e vacinas, bem como a diminuição significativa da miséria e da fome, entre vários outros avanços do conhecimento, contribuíram muito para essas conquistas. O que conecta todos esses avanços é o cultivo das bases do Iluminismo, desenvolvido em tempos anteriores, e a consequente valorização da cultura, da ciência e da educação dele decorrentes.
Ao longo do século XXI, juntamente com o florescimento de uma sociedade digital, onde toda a informação está acessível, sendo instantânea e basicamente gratuita, nos deparamos com elementos impensáveis anteriormente e aparentemente contraditórios, tais como enxurradas de fake news, negacionismos da ciência e da razão e a incrível abundância de inconsistentes teorias conspiratórias.
O fruto final do caos instalado chega, por vezes, a colocar em xeque a concepção primordial humana de que a racionalidade é nossa principal, ainda que não a única, bússola orientadora. Na verdade, racionalidade, que deveria ser um pressuposto, ganhou especial relevância como sendo uma das ferramentas que temos, como opção, para evitarmos polarizações inconsequentes. No entanto, nos devaneios contemporâneos, ela mesma, a racionalidade, resulta sujeita, muitas vezes, a questionamentos.
O que caracteriza sobremaneira a racionalidade é ela ser fruto de uma comunidade de pensadores que submetem suas próprias crenças a exames rigorosos de falseamentos, calcados no método científico. O que caracteriza um cientista (de certa forma, válido também para uma pessoa racional qualquer) não é a defesa intransigente de uma suposta verdade, mas sim a sua inerente disposição para sempre questionar suas próprias convicções, tentando explorar todas as possibilidades de falhas naquilo que ele mesmo assume originalmente como sendo sua crença preliminar. É assim que um cientista ou uma pessoa racional se distinguem de um charlatão ou de um fanático.
Em outras palavras, a linha demarcatória entre ciência e pseudociência é marcada pelo compromisso da primeira em deliberadamente buscar evidências que possam refutar a hipótese original e somente a sustentam se ela sobreviver aos múltiplos testes de falseamento, gerando a possível crença justificada. O dogmático, por sua vez, parte da própria fé e nela sempre retorna, baseado na crença a priori não sujeita a questionamentos, engendrando um terreno fértil aos extremismos, aos mitos e às falácias, que caracterizam parcela do ambiente que, infelizmente, compartilhamos.
A gravidade das circunstâncias atuais demanda um conjunto de medidas saneadoras e preventivas, as quais certamente incluem atitudes educacionais, trazendo para a escola o compromisso de lidar com estes novos tempos. A principal estratégia não é convencer alguém de algo contra o outro, dado que este é o cerne do espírito extremista que queremos combater. Trata-se de cultivar a importância das lógicas (dedutiva, indutiva, formal, informal etc.), dos raciocínios crítico e analítico, da distinção entre casualidade e correlação (“embora o galo cante ao raiar da manhã, eventos correlacionados, haveremos de acreditar que o sol surgiria mesmo na eventual ausência do galo, atestando ausência de causalidade”), dos elementos básicos de estatística e probabilidades (conjuntivas, disjuntivas, condicionais, a priori e a posteriori etc.) e de todos os demais alicerces básicos da racionalidade e do pensamento científico ancorados na racionalidade e no método científico.
Vivenciamos uma encruzilhada civilizatória cujos desdobramentos não estão garantidos de forma inexorável. Ao contrário, há evidências de que a inação da escola, enquanto espaço de formação, favorece os antagonismos, os extremismos e a não racionalidade. Mesmo cientes de que uma formação racional acadêmica, isoladamente, não é garantia absoluta de sufocarmos intuições primitivas e perversas, restam poucas dúvidas de que a sua ausência (ausência do hábito de pensar racionalmente, baseado em abordagens moldadas na ciências) é território próspero para radicalismos não embasados. Espaço esse que se transforma, rapidamente, em gerador de ambientes que aceitam como verdades as falácias, desprovidas de fundamentos e provas, e de pessoas dispostos a ações desamparadas de qualquer racionalidade ou de justificativas dialogáveis.
Como defendido por Steven Pinker, escolhido pela revista Time (The 2004 Time 100) entre os 100 mais influentes cientistas e pesquisadores, defende, com argumentos sólidos (veja o livro “Racionalidade”, Editora Intrínseca, 2021), que a racionalidade deveria ser a quarta habilidade ensinada nas escolas, juntamente com leitura, a escrita e a matemática. Tal constatação é hoje universal, válido para todos os países. No nosso caso, Brasil, corremos o risco, que espero não se materializará, de aprofundarmos ainda mais aquilo que já é por si danoso, ou seja, abandonarmos a racionalidade e, de forma fraticida, nos entregarmos aos extremismos, tendo a escola como observadora passiva, distante ou ausente desse processo.
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