Relegado a debates ideológicos e pouco técnicos durante o governo Bolsonaro, o sistema educacional brasileiro e as avaliações de qualidade do ensino precisam recuperar o tempo perdido e ser rapidamente atualizados para se adaptar às demandas do século XXI. Essa é a visão da socióloga Maria Helena Guimarães de Castro.
Ex-secretária-executiva do Ministério da Educação durante o governo Michel Temer, Maria Helena participou do processo de mudanças da Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e da inclusão, no ensino médio, de itinerários de aprendizagem que podem ser escolhidos pelos alunos de acordo com suas aptidões. Também já foi secretária de Educação do Estado de São Paulo e, a partir desta sexta-feira, assume cadeira na Cátedra Instituto Ayrton Senna de Inovação em Avaliação Educacional, no Instituto de Estudos Avançados da USP de Ribeirão Preto.
Para ela, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) está defasado e precisa começar a avaliar competências socioemocionais dos estudantes, que por sua vez devem ganhar espaço dentro das escolas em todos os anos da formação das crianças e dos adolescentes. Para isso, é preciso superar desafios, como alfabetizar bem os alunos para que consigam se desenvolver plenamente ao mesmo tempo em que os professores têm que entender que precisam fazer parte da formação emocional dos estudantes. Como se não fosse pouco, a pandemia ainda causou ainda mais dificuldades no cenário, mas o Brasil tem condições de vencer as batalhas na educação, segundo Maria Helena.
Leia os principais trechos da entrevista:
Valor: Como a senhora avalia o momento atual da educação no Brasil?
Maria Helena Guimarães de Castro: O momento, na minha visão, é de transição e de recomposição das aprendizagens. Nós já sabemos que a pandemia afetou muito não só o aprendizado dos estudantes como também as questões socioemocionais, a saúde mental das crianças e dos adolescentes. Gerou uma desconexão das rotinas escolares. De repente, os alunos passaram a não fazer nada ou a ter atividades remotas, sendo que poucos têm a oportunidade de seguir atividades on-line eficientemente com a devida interação com os professores. Portanto, houve uma queda no processo de aprendizagem e perda do engajamento dos jovens nas escolas. As avaliações mostram isso.
Valor: Qual a leitura que devemos fazer do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2022, realizado em um momento ainda delicado da pandemia?
Maria Helena: O Saeb foi aplicado em dezembro de 2021. Sabemos que apresenta problemas, uma vez que em algumas escolas a participação dos alunos foi inferior a 50% dos matriculados naquele ano. Como a norma prevê que série avaliada tenha pelo menos de 75% a 80% de participação, notamos facilmente que os resultados devem ser observados com muita ponderação. Acredito que o Saeb deste ano já trará um diagnóstico mais preciso sobre o impacto da pandemia no aprendizado.
Valor: Relatos de professores indicam que muitos alunos deixaram de aprender coisas básicas dos anos referentes a suas idades...
Maria Helena: Sim. Sabemos que as crianças que tiveram atividades remotas, em 2022, estavam no terceiro ano sem estar estarem plenamente alfabetizadas. Essas crianças podem, ainda em 2023, continuar com dificuldades básicas de aprendizado que vão impedir a sua evolução. A questão da alfabetização é fundamental para que essas crianças possam aprender de verdade e consigam recuperar as lacunas que agora são obstáculos para que se desenvolvam daqui pra frente. Esse é o grande desafio.
Valor: As autoridades da área de educação estão preparadas para lidar com essa realidade e reverter o quadro?
Maria Helena: Eu acredito que o Inep e o atual presidente Manuel Palácios está bem comprometido com a questão do Saeb e os problemas advindos da pandemia. Sabe perfeitamente o que fazer.
Valor: E o que precisa fazer, na sua avaliação?
Maria Helena: A primeira coisa é o seguinte: os dados [do Saeb] precisam ser comparados sempre com um olhar mais preciso sobre a situação observada em cada unidade da federação, pois eles indicam muita desigualdade. Alguns Estados tiveram condições de acesso à internet [durante a pandemia] e apresentaram projetos melhores de desenvolvimento das atividades remotas do que outras. Nesse sentido, a comparação dos resultados do Saeb precisa subsidiar políticas públicas de melhoria da qualidade e da equidade de acordo com os problemas identificados em cada região. E só vamos conseguir fazer isso se fizermos uma análise pedagógica dos resultados e tivermos uma devolutiva para as escolas.
Valor: Isso já está no radar do ministério e dos secretários de Educação de Estados e municípios?
Maria Helena: Entendo que, sim, muitos Estados já estão tentando fazer isso. Ceará, Rio Grande do Sul, Paraná, Pernambuco, Goiás, Mato Grosso do Sul... Vários Estados já estão com um olhar muito atento a essas questões e procuraram iniciar o ano letivo de 2023 com uma forte ênfase na recomposição das aprendizagens e no desenvolvimento de estratégias de intervenção na realidade a partir de diagnósticos muito claros. Eu acredito que deve ser uma tendência.
Valor: A senhora sente falta de algo no sistema de avaliação educacional brasileiro que pudesse puxar uma melhoria na qualidade do ensino?
Maria Helena: No Saeb, sinto falta justamente de uma análise pedagógica dos resultados, considerando a diversidade enorme que existe nos Estados, sobretudo no pós-pandemia. Sinto falta dessa análise mais criteriosa, um relatório mais circunstanciado da situação de cada unidade da federação, considerando essas desigualdades que se aprofundaram. Além disso, acredito que vai ser preciso, daqui pra frente, especialmente a partir de 2025, uma matriz mais alinhada com a Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Creio que o Inep já está até tentando fazer isso. O Saeb de 2023, por exemplo, continuará seguindo a mesma matriz de 2019, que é uma matriz que começou a ser alinhada à BNCC, mas ainda de maneira insuficiente. Precisa alinhar mais com as novas competências propostas pela BNCC.
Valor: Na sua visão, a educação brasileira está sendo avaliada devidamente de acordo com as mudanças impostas ao sistema de ensino neste século?
Maria Helena: Diria que estou mais ou menos satisfeita. Por um lado, o sistema de avaliação no Brasil foi muito importante para subsidiar as políticas públicas e educacionais, oferecer evidências acerca do processo de ensino e aprendizagem. No entanto, nos últimos 20 anos, observamos uma expansão dos sistemas de avaliação a partir de pontos de vista quantitativos. O Saeb se tornou censitário e o Enem se tornou uma espécie de vestibular nacional. Mas o que não aconteceu nos últimos anos foi uma proposta de aperfeiçoamento dessas avaliações como vemos em outros países.
Valor: Pode dar exemplos?
Maria Helena: O Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes], por exemplo, gradativamente aperfeiçoou as matrizes de avaliação e incluiu novas competências que passaram a ser avaliadas, como é o caso do pensamento criativo, do pensamento computacional. Incluiu todas as mudanças ocorridas nas interações linguísticas com o avanço da internet e de todas as manifestações tecnológicas que passaram a influenciar o processo de letramento dos estudantes. Portanto, olhando para o Pisa como referência, vemos que o Saeb ficou parado, mantendo a mesma matriz de avaliação de 2001, usando apenas teste de múltipla escolha, enquanto as avaliações internacionais foram incluindo questões mais abertas, inclusive com provas nos EUA, por exemplo, incorporando plataformas digitais de avaliação. Em resumo, o Brasil continua parado naquele modelo clássico de avaliação cognitiva da aprendizagem só em língua portuguesa e matemática, e com perguntas de múltipla escolha. Nós precisamos avaliar as novas competências que o mundo atual exige progressivamente, como é caso do pensamento criativo e habilidades digitais.
Valor: O Ministério da Educação e o Inep estão abertos a esse debate?
Maria Helena: O Inep é um órgão muito bom, com técnicos muito competentes. É verdade que no último governo [Jair Bolsonaro] houve um arrefecimento do debate de qualidade em torno da educação. Foram muito limitados e quase escassos, diria inexistentes em algum sentido. Já o governo atual está mostrando uma grande abertura para o diálogo, o que é fundamental para o avanço das políticas educacionais e da disseminação das principais tendências internacionais que são relevantes para um novo olhar, uma nova abordagem sobre as avaliações do nosso sistema.
Valor: Por que as chamadas habilidades socioemocionais agora precisam ser ensinadas nas escolas, algo que décadas atrás os próprios professores diziam que deviam ser desenvolvidas pelos pais?
Maria Helena: Desde o fim do século XIX e início do século XX, muitos estudiosos e pesquisadores da área de educação já demonstravam a importância da escola, do professor para oferecer segurança no processo, motivar o aluno, mostrando como a resiliência e o foco do aluno no aprendizado são diferenciais. Portanto, isso não é uma novidade propriamente. Só que o mundo gira. Isso realmente não era tão discutido, mas sempre soubemos de alguma forma o quão importante é a relação entre professores e alunos para que o aprendizado se concretize. Dito isso, o caso das competências socioemocionais ganha uma nova dimensão pelo avanço da neurociência, pelo avanço das pesquisas, pelo avanço do conhecimento nessa área, mostrando que a criança que desenvolve, desde cedo, competências socioemocionais, comunicacionais, além das cognitivas, terá muito mais chance de continuar aprendendo ao longo de toda a vida. Vemos, por exemplo, que um adolescente nos anos finais da educação básica que ainda não conseguiu a sua autonomia, a sua autogestão, tende a ter dificuldade e tem muito mais chance de abandonar a escola e ficar para trás economicamente na vida adulta. Quando falamos de habilidades socioemocionais, estamos falando de competências que realmente fazem a diferença para o futuro das crianças e dos jovens. E considere que a pandemia teve um impacto muito grande na saúde mental, nos aspectos socioemocionais desse público.
Valor: Essa preparação socioemocional não virá em detrimento do conhecimento das disciplinas clássicas, certo?
Maria Helena: De maneira nenhuma. Essas competências andam juntas. Trata-se de um aprendizado híbrido que é fundamental para o desenvolvimento das crianças. Não só para que elas aprendam, mas para que tenham vontade de aprender, tenham interesse no aprendizado e continuem aprendendo e tendo uma autoconfiança cada vez maior na sua capacidade de continuar aprendendo ao longo da vida. Isso não significa que nossos estudantes não vão aprender língua portuguesa, inglês, matemática, ciências, física, química, biologia, filosofia, sociologia, história ou geografia.
Valor: Os professores e as escolas, de maneira geral, estão preparados para ensinar com essa linha de pensamento, inclusive os docentes mais antigos, que são a maioria no sistema público?
Maria Helena: Olha, esse ponto talvez seja o nosso maior desafio. Mais da metade dos nossos professores têm entre 40 e 60 anos, mais ou menos, e tiveram a sua formação inicial lá para trás, antes de aspectos atuais como a influência da internet no desenvolvimento até da saúde mental das crianças. É uma questão que estamos acompanhando até em novela agora, mas sabemos que a internet não é uma realidade das escolas públicas no processo de aprendizado, embora hoje praticamente todas as famílias, inclusive as de renda baixa, já possuem um celular com acesso à internet. Os professores mais antigos não foram preparados para isso. Mas sabe o que é pior? Os mais novos também não.
Valor: Isso dificulta muito, não?
Maria Helena: Pois é. As nossas instituições formadoras das licenciaturas e faculdades de pedagogia continuam seguindo uma proposta de formação inicial ainda muito presa a abordagens que não consideram as novas pesquisas. Não só da neurociência, mas também não consideram as tendências mais recentes das avaliações que abordam cada vez mais as competências híbridas desenvolvidas pelos alunos. Esse é um ponto extremamente relevante para ser explorado na formação continuada dos nossos professores, tanto aqueles que estão ingressando na carreira como aqueles que já estão na carreira. Trabalhar e desenvolver essas novas competências para que os nossos alunos, de fato, consigam se desenvolver. Quando conversamos com pessoas de recrutamento, profissionais que atuam no mundo do trabalho, identificamos que essas competências de saber trabalhar em equipe, ter capacidade de inovar, conseguir resolver problemas de modo colaborativo são cada vez mais exigidas. Se isso não for desenvolvido dentro da escola, como é que os nossos estudantes vão se preparar para as mudanças constantes no mercado de trabalho?
Valor: Olhando para um país que até hoje não conseguiu nem mesmo acabar com o analfabetismo, dá para confiar que o Brasil tem condições de adaptar o sistema de ensino a essas novas necessidades que parecem ser até mais complexas?
Maria Helena: Sim. Somos um país supercriativo que consegue fazer um desfile de Carnaval reunindo 5 mil pessoas e todo mundo consegue fazer direitinho tudo aquilo, cada vez com mais criatividade, mais tecnologia. Ora, se o povo brasileiro tem toda essa criatividade, e é reconhecido no mundo por ter essa característica, não é possível que a gente não consiga fazer nas nossas escolas um trabalho organizado com os professores, com formação continuada, com as mudanças curriculares necessárias e políticas públicas que, de fato, enfrentem esses grandes desafios. Demonstramos com inovações no agronegócio, na comunicação e no setor bancário que somos capazes. Sou otimista e acredito no Brasil.
Por Rafael Vazquez para Valor Econômico
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