Ciência e fé são coisas bastante distintas. Em poucas palavras, a essência da primeira é a dúvida. A marca da segunda é a certeza. Assim, ambas, auto consistentemente, se legitimam em si.
A ciência se ancora, via uma linguagem comunal definida entre cientistas, nos pressupostos do bem estabelecido método científico. A fé, por sua vez, se fundamenta em determinados balizamentos da doutrina específica, em geral perenes, que orientam os pensamentos e os comportamentos comuns característicos dos seguidores daquela crença.
Sobre a ciência, todas as vezes que ela extrapola e, contrariando seus próprios pressupostos, simula certezas e afirmações permanentes, beirando a arrogância, ela se contamina e indevidamente se aproxima da fé, que não é o seu espaço. Em suma, a convicção exagerada na ciência parece ser um traje que não lhe veste bem.
A fé dispensa aprovação da ciência. Para se legitimar, é suficiente a coerência definida por grupos organizados que compartilham as mesmas verdades, ou então, na esfera pessoal, via uma revelação ou inspiração própria. Há também aqueles que creem sem se prender a nenhuma doutrina específica de uma religião, devotos de uma espiritualidade mais baseada na experiência do que num arcabouço teórico construído para direcionar o pensamento conforme uma ou outra tradição.
O drama principal parece acontecer nas áreas sombreadas. Por exemplo, quando algo exclusivo do campo da fé, indevida e desnecessariamente, procura se ancorar ou se justificar nos elementos próprios da ciência.
Outro dilema diz respeito aos casos em que, em uma discussão de natureza científica, afirmações peremptórias e, eventualmente, abusivas não deixam espaços para dúvidas. Estas são inerentes ao método científico e contemplam a dinâmica natural dos paradigmas temporais.
No campo da física, as teorias newtonianas foram parte da melhor ciência possível que a humanidade produziu até a virada para o século XX. Naquele momento, resultados experimentais (radiação térmica de corpo negro de Planck, por exemplo) não eram passíveis de serem interpretados à luz da mecânica clássica. Ao longo do século passado, uma nova linguagem (e não pequenas correções) foi demandada e a mecânica quântica foi sendo construída.
Gradativamente, passamos a trabalhar com densidades de probabilidade da mesma forma que antes falávamos em determinismo. Não tem sentido desmerecer a física clássica enquanto ciência em comparação com a física quântica. Cada qual, à sua maneira, fazendo uso de suas linguagens e de seus formalismos matemáticos próprios, responderam, e bem, às perguntas que, nos seus respectivos tempos, lhe foram formuladas.
Se temporalmente, dentro da mesma área, exercitamos nossa flexibilidade, mais ainda haveremos de cuidar para que não obriguemos, indevidamente, que outras áreas do conhecimento se ajustem, compelindo-as a utilizarem exatamente os mesmos métodos e procedimentos. Isso se torna particularmente grave quando estendidos às áreas das ciências humanas. Carece de justificativa que uma determinada área detenha a prerrogativa de definir quem está dentro ou está fora da definição do que é ou deixa de ser ciência.
Na ciência, em geral, o que move o cientista é, a partir de um conjunto de hipóteses, tentar explicar um fenômeno que ainda não foi totalmente compreendido. Para tanto, geralmente, mas não obrigatoriamente, observações são realizadas, dados são coletados e analisados, gerando conclusões assentadas em tudo aquilo que já se sabia antes acrescido das novidades que sabemos agora.
Dois conceitos fundamentais balizam o raciocínio científico: i) a reprodutividade, ou seja, a partir das mesmas hipóteses, os mesmos resultados devem ser alcançados em outros testes em condições similares; e ii) a falseabilidade, associado ao estímulo para que outras equipes sejam desafiadas a conferirem se as conclusões são, de fato, inegavelmente, consistentes.
A ciência vem construindo o seu conjunto de conceitos e abordagens desde os filósofos da ciência na Grécia Antiga, amparados na observação e na lógica, com destaque para Aristóteles no século IV a.C. No século XVII, há o amadurecimento da ciência moderna, emblematicamente, associada a Galileu, agregando a observação experimental aos elementos anteriores. Na sequência de Galileu, veio Newton, responsável por mais passo adiante, acrescentando um instrumental matemático inédito, o cálculo diferencial e integral, permitindo entender a natureza por meio de leis.
Mais recentemente, além do advento da mecânica quântica e sua formulação probabilística, os avanços na genética, nos métodos de modelagem e de simulação computacional e o surgimento das inteligências artificiais introduziram complexidades absolutamente inéditas no contexto.
Penso que é preciso extremo cuidado com áreas em que o amadurecimento de um conhecimento científico é baseado em evidências. Bem como no trato de conhecimentos decorrentes de culturas milenares, especialmente do mundo oriental, sobre os quais ainda temos dificuldades em dominar plenamente. São consensos construídos, progressivamente, por comunidades científicas, cujo rigor não pode ser mensurado pela rapidez ou por métricas estanques e imutáveis.
Finalizo com um ensinamento da cultura popular que diz: “cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém”. Na condição de ateu espiritualizado, contemplando a incoerência em mim mesmo, sinto que, sem ter sido agraciado com a fé, por vezes, me basta a fé que tenho na fé dos outros.
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