Educar é um dos atos mais profundos e antigos da humanidade. Desde que os primeiros grupos humanos começaram a transmitir conhecimentos, valores, práticas e modos de viver, a educação tornou-se um fio invisível que costura gerações e constrói civilizações. Ela é muito mais do que ensino. Mais do que currículo, método ou conteúdo. A educação é, antes de tudo, uma aposta: de que é possível formar o humano no humano; de que é possível transformar a informação em compreensão, a convivência em ética, a escuta em consciência.
Mas o que acontece com essa aposta quando surgem novas formas de registrar, acessar e transmitir o saber? O que acontece com a educação quando a técnica promete fazer por nós o que antes dependia do encontro, do tempo, da experiência?
Essas perguntas não são novas. Platão as antecipou — e de forma surpreendentemente atual — em um trecho do Fedro, escrito há mais de dois mil anos. Ali, encontramos o célebre diálogo entre Theuth, o deus egípcio inventor da escrita, e o rei Thamus, que é convidado a julgar os méritos dessa nova invenção. Theuth acredita ter oferecido ao mundo um dom precioso: um instrumento para fortalecer a memória e expandir a sabedoria. Mas Thamus o adverte: o que ele está oferecendo, na verdade, é um remédio que age como veneno. A escrita, ao permitir o registro externo do saber, enfraqueceria o exercício da memória e daria apenas a aparência de conhecimento — uma sabedoria sem raízes.
É difícil não reconhecer, nesse episódio, os dilemas que atravessam a educação contemporânea. Substituímos a escrita em papiros por telas interativas, plataformas digitais, repositórios ilimitados de conteúdos e inteligência artificial. O acesso ao saber foi descentralizado, democratizado, automatizado. Mas junto com esse avanço, emergiu uma inquietação: será que estamos realmente aprendendo mais? Ou apenas nos tornamos mais hábeis em buscar, copiar, clicar e esquecer?
O que Thamus nos ensina é que o saber não está na superfície da informação, mas na profundidade da experiência. A educação, portanto, não pode ser confundida com a capacidade de recuperar dados, repetir fórmulas ou concluir tarefas. Ela não é um estoque que se acumula, mas um processo que se vive. É na relação entre mestre e aprendiz, entre texto e interpretação, entre erro e descoberta, que o saber se encarna — não apenas como conhecimento, mas como transformação.
Por isso Platão não se limitava a ensinar: ele dialogava. Porque sabia que o verdadeiro aprendizado exige confronto, escuta, deslocamento. É preciso que o sujeito se veja diante do que não sabe, que se angustie, que deseje compreender — e que encontre, na palavra do outro, o espelho que o obriga a pensar. Isso não se ensina por download.
Hoje, em tempos de ensino remoto, de aprendizagem adaptativa e de inteligências artificiais generativas, o desafio da educação não é apenas acompanhar a tecnologia. É resgatar sua essência. Precisamos de plataformas, sim. Precisamos de dados, sim. Mas precisamos, sobretudo, de presença. De diálogo. De um espaço onde o saber não seja uma mercadoria, mas um encontro.
Formar alguém é mais do que instruí-lo. É provocar sua consciência. É ajudá-lo a se perguntar por que estuda, para quê aprende, que sentido há em conhecer. A educação tem por missão formar sujeitos pensantes, éticos, criativos, capazes de sustentar decisões no meio da incerteza — e não apenas repetir padrões em busca de aprovação. A educação não pode ser apenas performativa. Ela precisa ser formativa. Precisa tocar a interioridade. E, como dizia o próprio Platão, precisa falar à alma.
Theuth, em seu entusiasmo, representa a inovação que acredita poder resolver tudo com técnica. Thamus, com sua cautela, representa a sabedoria que sabe que toda técnica precisa de critério. Entre os dois, talvez devêssemos nos colocar como educadores. Com a tarefa de articular o novo sem perder o essencial. Com a missão de acolher a tecnologia sem entregar a ela aquilo que é insubstituível: o ato de pensar, de sentir, de decidir.
A metáfora da escrita como veneno travestido de remédio nos ensina que, em educação, não basta oferecer recursos. É preciso cuidar da forma como eles serão apropriados, interpretados, vividos. O risco da aparência de sabedoria é real — e talvez maior hoje do que no tempo de Platão. Por isso, mais do que nunca, é urgente recuperar a pedagogia do vínculo, da escuta, do silêncio que antecede a fala e da fala que nasce do espanto. Não se educa apenas com instrução. Educa-se com presença.
E ao final, talvez seja isso que a cena entre Thamus e Theuth ainda tenta nos dizer: que a educação, mesmo diante de todas as inovações, continua sendo uma experiência radicalmente humana — feita de tempo, de palavra, de afeto e de sentido. Tudo o mais pode mudar. Mas isso, jamais.
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