A educação superior, em qualquer época, tem se colocado diante do desafio de equilibrar permanência e mudança. Sua identidade, forjada na missão de formar pessoas, produzir conhecimento e servir à sociedade, precisa ser constantemente reconstruída frente às pressões sociais, políticas, tecnológicas e culturais. O novo marco regulatório da educação superior no Brasil, instituído pelo Decreto nº 12.456/2025 e pelas portarias que dele decorrem, insere-se nesse cenário como um momento decisivo de redefinição. Sua intenção é oferecer previsibilidade às instituições, reorganizar a lógica da qualidade acadêmica e dar coerência às múltiplas modalidades de ensino hoje existentes, ao mesmo tempo em que exige das universidades a capacidade de se reinventarem em seus currículos, em suas metodologias, em seus mecanismos de avaliação e em suas formas de organização. Esse movimento, de substituição e transformação sucessiva de práticas, pode ser interpretado à luz do célebre paradoxo do Navio de Teseu.
Segundo a tradição, o navio de Teseu foi preservado pelos atenienses como símbolo de sua história e, à medida que suas partes envelheciam, cada peça era substituída por uma nova. Com o tempo, nenhuma das partes originais permanecia no navio, o que gerava a indagação: tratava-se ainda do mesmo navio ou de um completamente outro? Filósofos como Plutarco, que registrou a anedota, e posteriormente pensadores modernos como Thomas Hobbes, refletiram sobre o dilema. Se a identidade de algo depende da continuidade material, então o navio não é mais o mesmo; se depende da continuidade formal e narrativa, então permanece sendo o navio de Teseu, porque carrega o mesmo nome, a mesma função e a mesma memória coletiva.
Aplicada à educação superior, a metáfora convida a refletirmos sobre as instituições que, ao longo das décadas, mudam currículos, renovam seus docentes, atualizam bibliotecas, laboratórios e tecnologias, adaptam-se a legislações e se reorganizam internamente. Se todas as partes de uma universidade são substituídas, ela continua sendo a mesma universidade? A resposta repousa menos na materialidade de seus elementos e mais na coerência de sua missão. Assim como o navio, a instituição educacional preserva sua identidade não porque mantém imutáveis suas estruturas, mas porque conserva um projeto de sentido reconhecido pela sociedade.
O novo marco regulatório pode ser compreendido, nesse sentido, como o instrumento que acelera e orienta a substituição das “tábuas” que compõem a universidade. As exigências de qualidade como eixo comum, a integração entre presencialidade, mediação tecnológica síncrona e atividades assíncronas, a valorização da previsibilidade normativa como recurso estratégico e o foco em inovação, empregabilidade e impacto social equivalem à substituição gradual de peças, sem que o navio deixe de navegar. O que poderia ser visto como perda de identidade, na realidade, configura-se como renovação necessária para que a universidade continue reconhecida como espaço legítimo de formação e transformação.
O paradoxo, ao ser estendido à vida acadêmica, revela que a identidade de uma instituição não está presa à imobilidade de suas práticas, mas à capacidade de manter vivo o fio narrativo que a legitima: a busca pela formação integral do estudante, a produção crítica de conhecimento e o compromisso com o desenvolvimento nacional. O navio de Teseu continua a ser o mesmo porque carrega a memória de sua origem e o propósito de sua viagem; a universidade continua a ser a mesma porque, mesmo em meio a reformas profundas, sustenta a promessa de preparar cidadãos e profissionais para a sociedade em constante mutação.
Assim, a metáfora nos ajuda a compreender que não há contradição entre mudança e continuidade. As universidades são, ao mesmo tempo, antigas e novas, como o navio que parte com madeiras diferentes, mas segue sendo reconhecido por sua história. O novo marco regulatório, longe de representar uma ruptura, pode ser lido como a oportunidade de reafirmação dessa identidade em movimento, mostrando que a permanência da educação superior não está em resistir às mudanças, mas em navegar por elas com propósito claro e direção consciente. Navegar, neste caso, é substituir peças e, ao mesmo tempo, reafirmar a essência de quem se é.
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