Autores: Filipe Guedes de Oliveira e Iara de Moraes Xavier Braga
Artigo publicado originalmente na Revista Científica Multidisciplinar – “EDUCAÇÃO MÉDICA COMO MECANISMO
DE IMPULSIONAMENTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
DE SAÚDE NO BRASIL. (2025).
RECIMA21 - Revista Científica Multidisciplinar - ISSN 2675-6218, 6(10), e6106901.
https://doi.org/10.47820/recima21.v6i10.6901”
EDUCAÇÃO MÉDICA NO BRASIL: DIMENSÃO ECONÔMICO-SOCIAL
Desde 2013, os cursos de Medicina são pensados pelo Estado Brasileiro como base de uma política pública que vai além do aspecto educacional. Ela se propõe à intervenção social e ao compromisso com a defesa da cidadania, da dignidade humana e da saúde integral, tendo como eixo transversal a determinação social dos conceitos de saúde e de doença.
Com foco na interiorização dos novos cursos, o Estado passou a privilegiar regiões mais carentes de médicos e de sistemas mais robustos de saúde, além de dar maior dinamismo à economia local e regional.
Nesse sentido, estudo realizado pelo Grupo Afya comparou dados do DATASUS e do IBGE de 20 cidades que ofertam cursos de Medicina (grupo de tratamento) com os de municípios com características similares em tamanho, economia e infraestrutura (grupo de controle).
Entre os resultados, foi constatado que a presença dos cursos de Medicina aumentou em 12% o número de médicos por mil habitantes (em 2021), além de ter contribuído para a redução significativa das taxas de internação por doenças preveníveis e de mortalidade relacionada à atenção primária. Houve, ainda, a diminuição de 20,5% no total de mortes por doenças evitáveis por vacinação.
Em 2023, o Centro Universitário de Valença (UNIFAA) divulgou os resultados de uma pesquisa que teve como objetivo medir o impacto econômico gerado pelos estudantes de Medicina da instituição para o município de Valença (RJ). Foram ouvidos 220 alunos que ingressaram na graduação entre 2017 e 2023. Entre as principais constatações, destacam-se:
- O gasto médio mensal com aluguel pelos estudantes foi de R$ 1.087,59 (R$ 1.684,03 se consideradas outras despesas, como condomínio e contas de consumo). Fazendo uma projeção para os 1.410 alunos de Medicina da instituição, por ano, são injetados R$ 28.493.760,57 na economia local somente com moradia.
- No mesmo período, o valor desembolsado com supermercado é superior a R$ 9 milhões. Outros R$ 10.404.263,93 são destinados à alimentação fora do lar (aproximadamente R$ 7 milhões em restaurantes e R$ 3,7 milhões em aplicativos de comida). Já os recursos destinados ao transporte somam R$ 3,7 milhões, sendo R$ 1,13 milhão com aplicativos.
- Além disso, por ano, os 1.410 alunos de Medicina gastam cerca de R$ 2,6 milhões em vestuário e mais de R$ 3,3 milhões em entretenimento. Outros R$ 3,7 milhões são destinados aos cuidados com a saúde.
- Em síntese, apenas os estudantes de Medicina do UNIFAA movimentam, anualmente, cerca de R$ 61.709.500,71 na economia da cidade. Trata-se, portanto, de um relevante indutor do PIB local e um incremento decisivo para o desenvolvimento socioeconômico da região.
Já no artigo “O Impacto da Interiorização do Ensino de Medicina: O Caso do Município de Sobral – CE”, publicado na Revista Internacional de Educação Superior da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, 2022), os autores defendem que “o movimento da interiorização do ensino superior modifica a realidade da região que recebe cursos, promovendo impactos não apenas na área da formação e do conhecimento científico, mas, também, na esfera econômica”.
De acordo com eles, “o processo apresenta impactos positivos na economia pelo incremento do comércio e dos serviços locais, que passam a ser demandados por um novo público, constituído por alunos das diversas modalidades de cursos oferecidos e por servidores das instituições”. Ao final, os autores concluem que “amenizou-se, assim, a expressiva ausência de médicos na Zona Norte do Ceará, principalmente os especialistas, carência está caracterizada como um grave problema na assistência à saúde pública do Estado”.
Nesse sentido, a interiorização dos cursos de Medicina deve ser vista com bons olhos, pois objetiva levar oportunidades nas áreas de educação e saúde, além de desenvolvimento econômico aos rincões do país, elevando os níveis de equidade.
Entretanto, esse desempenho não pode ser utilizado como justificativa para o fechamento do protocolo de autorizações de cursos de Medicina no e-MEC. Os chamamentos públicos deveriam ser entendidos como medidas complementares de indução de políticas públicas voltadas ao cumprimento das metas educacionais do decênio e, a partir de suas respectivas estratégias, ao alcance dos indicadores estabelecidos no Plano Nacional de Educação (PNE) vigente.
Dito de outra forma, a política educacional pode assegurar a coexistência de dois modelos distintos de autorização de cursos de Medicina, voltados a propósitos específicos. O primeiro, pelo fluxo administrativo tradicional, via e-MEC e respaldado pela Lei do Sinaes, com o objetivo de implantar projetos pedagógicos inovadores e diferenciados em grandes centros urbanos e capitais, com uso intensivo de tecnologias como simulação e inteligência artificial, corpo docente altamente titulado e experiente, interface internacional e ênfase em especializações e pesquisas científicas em áreas estratégicas, como Alzheimer e doenças crônico-degenerativas. O segundo modelo consiste na autorização de cursos com base no Programa Mais Médicos, respaldado pela Lei nº 12.871/2013, por meio de chamamento público para municípios do interior, com o objetivo de interiorizar a formação médica e implementar projetos pedagógicos para a formação generalista, voltada ao SUS e às necessidades de saúde da população local.
EDUCAÇÃO MÉDICA NO BRASIL: DIMENSÃO DO FINANCIAMENTO POR MEIO DA INICIATIVA PRIVADA
A legislação de 2013 introduziu uma inovação ao conferir ao Ministério da Educação competência para disciplinar a contrapartida financeira devida pelas mantenedoras vencedoras dos chamamentos públicos à gestão local do SUS. Esse mecanismo garante recursos para a utilização da estrutura de serviços, ações e programas de saúde indispensáveis à implantação e ao funcionamento dos cursos de Medicina.
O MEC fixou essa contrapartida financeira em 10% (dez por cento) do faturamento bruto anual das graduações de Medicina criadas com base na Lei nº 12.871/2013. Na prática, isso significa que um curso com 60 (sessenta) vagas anuais repassará, ao longo de 6 (seis) anos, aproximadamente R$ 4,3 milhões ao município sede, apenas a título de contrapartida mínima. O cálculo considera o valor do ticket médio dos cursos de Medicina no Brasil, conforme dados da “Pesquisa de mensalidades aplicadas no ensino superior 2024”.
De acordo com a Portaria Normativa nº 16, de 25 de agosto de 2014, a contrapartida contempla diversas ações voltadas ao fortalecimento do SUS, entre elas: a formação de profissionais da rede de atenção à saúde, nos termos do art. 35 da Resolução CNE/CES nº 03, de 20 de junho de 2014; a construção e/ou reforma da estrutura dos serviços de saúde; a aquisição de equipamentos para a rede de atenção à saúde; e o pagamento de bolsas de residência médica em programas de medicina de família e comunidade e, no mínimo, outras duas áreas prioritárias (clínica médica, pediatria, cirurgia geral, ginecologia e obstetrícia).
É inegável, portanto, o impacto desse aporte privado nos municípios, especialmente naqueles com menos recursos. Entretanto, cabe ressaltar que essa contrapartida é exclusiva para os cursos privados de Medicina, não alcançando as graduações públicas, que também utilizam os equipamentos públicos em seus respectivos cenários de prática curricular.
Dessa forma, além de atender aos padrões de qualidade educacional, conforme estabelece a Constituição Federal de 1988 (art. 209) e a LDB (art. 7º), os cursos privados de Medicina assumiram também o papel de financiadores parciais da saúde pública municipal, uma vez que parte dos seus recursos é destinada como contrapartida obrigatória para o simples funcionamento dessas graduações.
O sistema criado em 2013, ao longo de 12 anos, recebeu poucos aprimoramentos por parte do órgão regulador, o que evidencia a necessidade de sua revisão.
O resultado é um quadro de estagnação de uma política pública concebida a partir de uma característica marcadamente transitória e sustentada por mecanismos que não encontram correspondência em nenhum outro curso superior no âmbito do sistema federal de ensino.
Alcançado determinado percentual de interiorização dos cursos de Medicina, e assegurado o alinhamento dessas medidas com as metas do Plano Nacional de Educação vigente, seria plenamente possível retomar o caráter protocolar de autorização aplicado a todos os demais cursos superiores privados no Brasil.
Além disso, é preciso reconhecer que a contrapartida aos municípios sede é outro diferencial na implantação desses cursos. Vale registrar que, conforme estabelecido pela Portaria nº 531/2023, também as graduações protocoladas a partir de decisões judiciais devem cumprir a regra da contrapartida de 10% (dez por cento) do faturamento anual bruto, tal como aquelas advindas de editais fundamentados na Lei nº 12.871/2013.
Ocorre que obrigar uma IES recém-autorizada a ofertar cursos de Medicina e repassar 10% do seu faturamento bruto anual para o ente municipal pode ir de encontro à sua sustentabilidade financeira, sobretudo em se tratando dos 6 (seis) anos iniciais do curso, período no qual ainda não se tem as maturações de turmas e de tickets de mensalidades. E isso sem mencionar a pesada carga tributária ordinária à qual estão submetidas as instituições de educação superior do país.
Portanto, resta posto que uma IES privada não deve assumir, de forma tão onerosa, com os custos da saúde municipal. Tal medida se torna ainda mais questionável diante do fato de que tais cursos já produzem impactos econômicos e sociais relevantes nos locais onde são instalados, configurando, por si só, uma contrapartida efetiva à sociedade. Ademais, as instituições de educação superior devem preservar sua sustentabilidade financeira e manter a autossuficiência, conforme previsto no art. 7º da LDB.
EDUCAÇÃO MÉDICA NO BRASIL: DIMENSÃO DA FORMAÇÃO EDUCACIONAL
Abordar a dimensão da formação educacional em Medicina implica, necessariamente, mencionar as três resoluções da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CES/CNE) que instituíram as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) do curso. Todas apresentam forte vinculação com o SUS e promovem a articulação entre as Ciências da Saúde e as Ciências Sociais, a saber:
➢ Resolução CNE/CES nº 4, de 7 de novembro de 2001 – Parecer CNE/CES nº 1.133/2001. Revogada.
➢ Resolução CNE/CES nº 3, de 20 de junho de 2014 – Parecer CNE/CES nº 116/2014. Vigente.
➢ Resolução CNE/CES nº 3, de 3 de novembro de 2022 – Parecer CNE/CES nº 265/2022 – Altera os arts. 6º, 12 e 23 da Resolução CNE/CES nº 3/2014 – Paciente em cuidados paliativos. Vigente.
Constantemente, os atores governamentais elegem os cursos de Medicina para reformulação, sob o argumento da necessidade de imprimir maior qualidade à educação médica. As ações, contudo, seguem praticamente os mesmos caminhos: (i) alterar as DCNs do curso; (ii) criar processos avaliativos, com exames e provas adicionais; e (iii) intensificar o controle e as avaliações in loco.
Tais ações partem da premissa de que a qualidade estaria vinculada unicamente aos resultados de provas e exames, ou seja, a indicadores puramente quantitativos. Carecem, contudo, do respaldo de estudos e pesquisas que desvelem a complexidade da realidade a partir de abordagens metodológicas que combinem dimensões quantitativas e qualitativas do problema a ser investigado.
Nesse sentido, considerando exclusivamente os egressos formados pelo setor privado desde o ano 2000, pergunta-se: como tem sido a atuação desses médicos em unidades do SUS? Outras questões norteadoras, são:
➢ A educação médica no Brasil tem qualidade e resolubilidade?
➢ Qual é o perfil dos médicos que atuam nas unidades do SUS em cada região brasileira?
➢ Os egressos das IES privadas têm tido acesso à residência médica? Estão exercendo a profissão nos hospitais do SUS?
Para incorporar uma dimensão qualitativa à análise, é importante considerar realidades da contemporaneidade que afetam diretamente a relação saúde-doença em todas as idades, gêneros e classes sociais. Entre elas, destacam-se: (i) o envelhecimento populacional, com expressivo aumento da terceira idade; (ii) o agravamento das questões climáticas e ambientais; (iii) as condições de trabalho cada vez mais intensas e contínuas; (iv) a arquitetura das cidades e do campo; (v) os processos migratórios; (vi) os conflitos e as guerras.
Além disso, a atualidade impõe desafios que permanecem como incógnitas para a ciência, a tecnologia e, consequentemente, para a medicina. Questões como os crescentes problemas relacionados à saúde mental e às pandemias, a exemplo da covid-19, vêm alterando significativamente os perfis de morbidade e mortalidade no Brasil e no mundo.
Nesse contexto, compreende-se que o principal desafio da educação médica está no campo da pedagogia, ciência que investiga, compreende e organiza os processos de ensino e aprendizagem. Seu objetivo é transformar a prática educacional a partir de uma reflexão crítica e fundamentada, promovendo o desenvolvimento humano nos contextos social e cultural da aprendizagem. A pedagogia se aprofunda nos fatores sociais, culturais e históricos que moldam a educação e busca incorporar métodos inovadores e tecnológicos capazes de contribuir para uma educação mais crítica, humanizada e transformadora.
Em outra frente, é fundamental um olhar atento ao perfil do corpo docente, incluindo professores, preceptores, técnicos de laboratórios, bibliotecários etc. Nesse contexto, ganha relevância o papel da coordenação e do Núcleo Docente Estruturante (NDE). Além do domínio de saberes e práticas e de competências, habilidades e atitudes específicas da área, essas estruturas precisam estar atualizadas sobre os assuntos gerais e específicos relacionados à educação médica, bem como articular as ciências da saúde, da medicina e pedagógica.
MODIFICAÇÕES NAS DIRETRIZES
Embora mudanças sejam essenciais, elas devem ser precedidas de estudos e pesquisas que evidenciem, de forma consistente, as potencialidades e fragilidades dos processos e produtos que se pretende modificar.
Apesar disso, as novas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina, publicadas pela Resolução CNE/CES nº 3, de 30 de setembro de 2025, pretendem dar início a uma nova fase na educação médica sem que tenham sido realizados mapeamentos sobre avanços ou retrocessos das DCNs de 2014 e 2022.
Então, por que mudar as DCNs de Medicina? O que esperar da implantação das novas diretrizes que, na essência, pouco alteram a base epistemológica das anteriores? Segundo o texto do Parecer CNE/CES nº 536/2025, a formação médica deve desenvolver competências que possibilitem ao egresso atuar de forma crítica, ética e contextualizada nos campos do cuidado em saúde, da gestão, da pesquisa e da educação, com ênfase nas áreas de atenção à saúde, gestão em saúde e educação em saúde.
De acordo com a Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, as novas DCNs distinguem-se em 8 (oito) pontos em relação às diretrizes vigentes: i) atualização para os desafios do século XXI; ii) ênfase em competências humanísticas e sociais; iii) formação baseada em competências ampliadas; iv) aprimoramento da estrutura curricular; v) internato com direcionamento estratégico; vi) políticas institucionais obrigatórias; vii) inserção e integração do curso superior na rede SUS-loco regional de forma estruturada, desde o início da formação, com graus progressivos de complexidade; e viii) integração com residência médica e pós-graduação.
Ainda em 2015, no artigo “Diretrizes curriculares para o curso de medicina – Uma década depois” os autores já falavam sobre a necessidade de reformulação de determinados aspectos da formação médica no país. Segundo eles, a educação médica parecia não valorizar o alcance de objetivos coerentes com a realidade social, nem elaborar planejamentos eficazes nesse sentido, sendo identificados dois processos quase independentes: i) “uma extensa formação clínica, centrada nas ciências biomédicas, que reforça a prática individualista da medicina”; e ii) “e uma abordagem social incapaz de redefinir criticamente essa formação e seus diferentes tipos de prática”. (Rodrigues; Trindade; Carvalho, 2015).
NOVA AVALIAÇÃO
O curso de Medicina participou do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) em 2004, 2007, 2010, 2013, 2016, 2019 e 2023. Em todas essas edições, a totalidade das graduações na área, independentemente do Conceito Preliminar de Curso (CPC), foi submetida a avaliações in loco conduzidas por comissões do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
A partir de 2025, o Enade de Medicina será substituído pelo Exame Nacional de Avaliação da Formação Médica (Enamed), que será aplicado anualmente. A nova avaliação trará mudanças significativas na configuração da prova, que contará com 100 questões elaboradas no modelo Teoria de Resposta ao Item (TRI). A divulgação dos resultados da primeira edição está prevista para dezembro deste ano.
De acordo com o Inep, o Enamed representa um avanço para a educação médica, sobretudo por sua aplicação anual e pela adoção de questões mais reflexivas e propositivas. Além disso, o exame terá a função de subsidiar os processos de seleção para ingresso em programas de residência médica, ampliando sua relevância no ciclo formativo dos futuros profissionais.
O Enamed terá quatro objetivos prioritários: i) aferir o desempenho dos estudantes em relação aos conteúdos programáticos previstos nas DCNs, as habilidades de ajustamento às exigências decorrentes da evolução do conhecimento e as competências para compreender temas externos ao âmbito da profissão, ligados à realidade brasileira e mundial e a outras áreas do conhecimento; ii) verificar a aquisição de conhecimentos, habilidades e competências requeridas para o exercício profissional adequado aos princípios e às necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS); iii) estabelecer um instrumento unificado de avaliação em consonância com as diretrizes curriculares do curso; e iv) fornecer subsídios para a formulação e avaliação de políticas públicas relacionadas à formação médica.
Diferentemente do Enade, o Enamed será aplicado a todos os concluintes, que deverão ser inscritos pelas instituições de educação superior. A medida se propõe a apresentar indicadores com menor gap periódico, afastando a lógica trienal vigente até o ano passado. Esse novo padrão possui elevado potencial de incremento nos dados e estatísticas sobre a educação médica no âmbito do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes).
Consulta ao cadastro do e-MEC revelou a existência de 449 (quatrocentos e quarenta e nove) cursos de Medicina na situação “em atividade” no Brasil. Desses, 294 (duzentos e noventa e quatro) são em IES privadas e 155 (cento e cinquenta e cinco) em IES públicas (federais, estaduais e municipais). Portanto, a iniciativa privada é responsável por, aproximadamente, 65,5% dos cursos de Medicina no Brasil, totalizando cerca de 71,9% das vagas anuais.
Embora essa quantidade de cursos pareça significativa, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2023, o Brasil possuía 2,2 médicos para cada mil habitantes, ficando atrás de 42 (quarenta e dois) países do globo, empatado com o Peru e à frente apenas da Índia, África do Sul e Indonésia.
Diante desse cenário, é indiscutível que o Brasil precisa ampliar o número de médicos em relação à sua população, estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em pouco mais de 213 milhões de pessoas. Essa expansão pode se dar de forma regionalizada, ou mesmo localizada, ou conjugada, com base em números da demografia médica nacional, entretanto, há que se reconhecer o papel das IES privadas na consecução desta importante política pública que permeia as áreas de educação e de saúde.
Existem diversos mecanismos de aferição da qualidade do ensino ofertado pela iniciativa privada, o que se dá por vias institucionalizadas no âmbito do Sinaes e conduzidas pelos órgãos educacionais regulatórios e avaliativos. Portanto, não se pode deixar que posicionamentos injustos e depreciativos, comumente desferidos ao setor educacional privado, pautem políticas públicas que resultem na limitação da expansão da educação médica, uma vez que isso colocaria em xeque a própria avaliação da educação superior e atuaria em sentido contrário a uma demografia médica mais favorável, tal como os 42 (quarenta e dois) países que se encontram à frente do Brasil no relatório da OCDE.
A educação médica deve ser ampla e avaliada pelo poder público no âmbito do processo regulatório competente, de modo que apenas aqueles cursos com qualidade comprovadamente constatada possam receber as suas correspondentes autorizações para o funcionamento e a oferta educacional.
Assim, políticas públicas que restringem os direitos de oferta e de acesso à educação devem ser recalibradas pelo Estado, de forma a garantir a ampliação da formação de um competente corpo médico no nosso país.
Sabe-se que as instituições públicas de educação superior, embora reconhecidas por seus indiscutíveis níveis de excelência, têm demonstrado pouco fôlego para a expansão, o que dificulta atender, por meio delas, à real demanda do país por cursos de Medicina. Os resultados são vestibulares extremamente concorridos e estudantes que permanecem por anos a fio em cursos preparatórios com o objetivo de conquistar uma das vagas disponíveis no universo de 28,1% da oferta total de Medicina assegurada pelas IES públicas.
O estudo “Demografia Médica no Brasil 2025” apontou que a concorrência em escolas médicas públicas alcançou, em 2023, a razão de 68,5 candidatos por vaga, enquanto nas escolas médicas privadas foi de 7,17 candidatos por vaga.
A iniciativa privada possui qualidade educacional e interesse para apoiar a expansão médica no Brasil e contribuir com a elevação dos índices da demografia médica, hoje ainda aquém dos números observados nos países que integram a OCDE no contexto global.
CONSIDERAÇÕES
Abordar o tema educação médica é muito mais do que tratar sobre formas de expansão e de avaliação dos cursos de Medicina. Educação médica é um tema interdisciplinar, complexo e que tem interface política e interministerial, além de inúmeros interesses ideológicos, como a reserva de mercado.
Neste sentido, vários atores pressionam para intervir na educação médica em nível de graduação, mesmo sem a prerrogativa legal. Pretendem monitorar, supervisionar e até inibir a criação de novos cursos sob o pretexto de uma suposta “falta de qualidade”, sem, contudo, apresentarem qualquer evidência ou dados que comprovem tal tese. Na prática, trata-se de setores conservadores que querem colocar “de joelhos” os mantenedores, dirigentes, docentes e toda a comunidade acadêmica vinculada ao setor privado.
Em contrapartida à suposta falta de qualidade, pode-se citar o Enade de Medicina realizado em 2023, cujos resultados foram divulgados em 2025. No exame, os cinco melhores conceitos Enade e CPC de Medicina foram obtidos por IES privadas. Os resultados também demonstram equilíbrio entre os estudantes oriundos de cursos públicos e privados, assim como entre egressos de cursos autorizados no âmbito do Mais Médicos e do sistema administrativo eMEC do Sinaes.
A educação médica é um constructo social, científico e tecnológico que demanda, cada vez mais, inovações e indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Deve ter como referência o perfil epidemiológico da população e estar orientada por princípios como a integralidade da atenção em saúde, a equidade, a democratização, a humanização e, principalmente, a universalização da assistência em saúde, assumindo que saúde não se limita à ausência de doenças, mas envolve condições dignas de vida e consiste em um dever inalienável do Estado.
Nesse contexto, as DCNs assumem o protagonismo na qualidade da educação médica. Segundo a Lei nº 9.131/1995, cabe a Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação a competência para “deliberar sobre as diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação para os cursos de graduação”.
O Parecer CNE/CES nº 583/2001, homologado pelo ministro da Educação e publicado no Diário Oficial da União de 29 de outubro de 2001, estabelece as seguintes orientações para as diretrizes curriculares dos cursos de graduação:
- A definição da duração, carga horária e tempo de integralização dos cursos será objeto de um parecer e/ou resolução específica da Câmara de Educação Superior.
- As diretrizes devem contemplar:
a) Perfil do formando/egresso/profissional (conforme o curso, o projeto pedagógico deverá orientar o currículo para um perfil profissional desejado).
b) Competência/habilidades/atitudes.
c) Habilitações e ênfases.
d) Conteúdos curriculares.
e) Organização do curso.
f) Estágios e atividades complementares.
g) Acompanhamento e avaliação.
Nesta linha, vale chamar a atenção para o fato de que a aplicação das DCNs é obrigatória para todas as IES, públicas e privadas. Elas devem garantir a autonomia acadêmica dos cursos em relação aos seus projetos pedagógicos dos cursos (PPC), aprovados pelos NDE e Conselhos Superiores, assim como apontar para a importância da flexibilização curricular, da aderência à missão, valores e objetivos da instituição, da regionalização etc.
Cabe destacar, ainda, as transformações introduzidas pelo Decreto nº 12.456/2025, que excluiu o curso de Medicina dos formatos semipresencial e a distância. Dito de outra forma, essa graduação deve ser ofertada exclusivamente de forma presencial, tanto pelas IES públicas e quanto privadas, independentemente de fatores como a metodologia pedagógica adotada ou a matriz curricular proposta.
Por fim, entende-se que este artigo se justifica pela relevância do atual momento da educação médica no Brasil, marcado pela primeira edição do Enamed; pela homologação das novas DCNs dos cursos de Medicina; e, ainda, pela avaliação in loco de todos os cursos em 2026, independentemente do conceito obtido no exame, tal como historicamente ocorreu nos ciclos avaliativos do Enade.




