Domingo Hernández PeñaEscritor, professor, consultor, Honoris Causa pela Anhembi Morumbi
***Durante algum tempo passado tive a honra de ser vizinho de Josep Tarradellas, o histórico político catalão, depois da sua volta de um longo exílio na França, e de presidir a restabelecida Generalitat de Catalunya (o Governo regional), prestando-lhe com isso o mais generoso e leal dos serviços à delicada Transição democrática espanhola. Éramos vizinhos, mas não tínhamos qualquer tipo de relação pessoal. Ele, supostamente aposentado, continuava sendo o homem mais respeitado e mais influente da Catalunha de então. E eu, um jovem forasteiro, de procedência meridional, não era outra coisa que um humilde editor, quase desconhecido.
Mesmo assim, e seguramente pela sua dilatada e difícil experiência de vida, com tantos inimigos no caminho, o ex-presidente sabia e queria saber tudo sobre mim e sobre todas as demais pessoas que moravam no nosso prédio barcelonês. Sabia, por exemplo, que em matéria ideológica eu não pensava como ele. Ele era um nacionalista catalão convencido, seguido e imitado, que praticava e predicava sem descanso o nacionalismo catalão. Eu era um discreto democrata “espanholista”, alérgico a toda política que excluísse, diferenciasse ou separasse... Para mim, os nacionalistas, com as suas ideias de superioridade, tão parecidas à religião, eram piores que os independentistas, que podiam atuar por simples interesse ou conveniência material, sem necessidade de apelar a interferências celestiais... Daí o medo que me levava a evitar o encontro com o senhor Tarradellas, na entrada, na garagem ou no jardim, e a não sentir simpatia por aquele ancião de dois metros de altura, de voz grave, e modos e maneiras de camponês antigo... Porém, o que tinha que acontecer aconteceu de forma inesperada, numa tarde fria de um feriado longo e silencioso, quando meu ilustre vizinho parou o elevador e entrou nele sem escolta, fazendo-me companhia, sem testemunhas, até o térreo...
Nunca mais voltei a viver um meio minuto tão longo. Paralisado pelo susto, só pude escutar com atenção, desconcertado, o que Tarradellas me dizia atenciosamente, pacificamente, educadamente, valendo-se da língua castelhana (...), que pronunciava com o seu sotaque característico. Primeiro me cumprimentou com certa elegância. Depois me expressou a sua satisfação pela oportunidade de poder falar comigo, assim, diretamente, em pessoa. Depois me soltou um pequeno discurso, parecido a uma advertência: “Estou informado de que não pensamos igual - de que o senhor não gosta das ideias nacionalistas. Mas isso não impede que possamos ser amigos, ou pelo menos bons vizinhos. E, para facilitar essa possibilidade, lhe agradecerei que pense detidamente no que é o nacionalismo. O nacionalismo, senhor Hernández, não é nada temível nem pecaminoso. É, só, o propósito, o desejo legítimo, de ter um banco próprio, um jornal próprio e uma polícia própria”.
Não foi um recado detalhado nem muito convincente, mas o guardei para sempre na minha memória. O guardei até hoje, quando o atual presidente da Generalitat, um ser estranho e resentido chamado Artur Mas, pretende ocultar o fracasso da sua gestão arrastando Catalunha (que decepção!) a uma temerária aventura independentista.
Artur Mas, que se confessa nacionalista (...) e que atua como independentista radical (...), não se conforma com um banco, um jornal e uma polícia. Ele quer tudo para ele e para os seus, menosprezando o poder, o patrimônio e os direitos da maioria dos que pensam de outra forma.
A razão, como sempre, seguramente está no meio. Sem nada, ninguém é nada. Com tudo, podem aparecer as piores tentações.
A primeira parte é fácil de entender: que país seria um país completo, hoje, por exemplo, sem telefonia própria e sem Internet que funcione direitinho, a toda hora, em todo o território nacional?




