Rubens de Oliveira Martins Gestor Governamental no Ministério da Ciência e Tecnologia, Doutor em Sociologia pela UnB, Mestre em Sociologia (USP), professor das Faculdades Integradas UPIS-DF ***“A gramática política do Brasil: clientelismo, corporativismos e insulamento burocrático”
Autor: Edson de Oliveira Nunes Editora: Garamond, Rio de Janeiro, 2010
Ítalo Calvino, em seu livro “Por que ler os Clássicos” (Companhia das Letras, 1994) apresenta algumas definições sobre o que faz um livro se tornar um “clássico”, entre elas a de que os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: "Estou relendo..." e nunca "Estou lendo...", e que toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira; entendendo-se que toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura. Embora Calvino esteja se referindo aos grandes clássicos da Literatura, a noção de obras “clássicas” existe em todas as áreas do conhecimento, e, nesse sentido, considero ser esta aplicada ao livro do prof. Edson Nunes: A gramática política do Brasil.
Trata-se uma obra que foi inicialmente publicada em 1997, resultado da tese de doutoramento do autor na Universidade de Berkeley (1984), e republicada em 1999 e 2003, até a presente edição de 2010. A trajetória acadêmica e profissional de Edson Nunes ajuda a compreender a contribuição trazida por seu livro, tendo em vista sua vinculação ao mundo universitário - como docente e dirigente - e pela reflexão sistemática sobre políticas públicas, como Secretário Executivo do Ministério do Planejamento e Presidente do Conselho Nacional de Educação.
A percepção de que estamos diante de um “clássico”, que se encontra na fronteira da sociologia, da antropologia e da ciência política, já aparece nos três prefácios que essa nova edição apresenta, todos de professores universitários que também militam na vida pública: o ex-ministro e professor Bresser Pereira, o professor Renato Lessa e o professor e Deputado Federal Paulo Delgado. Especialmente no texto de Renato Lessa, que coloca a obra de Edson Nunes na mesma tradição das grandes interpretações do Brasil, como as de Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Hollanda e Raymundo Faoro.
Meu contato com o autor foi em 1997, quando tive a oportunidade de ser seu aluno na ENAP – Escola Nacional de Administração Pública, em curso preparatório para a carreira de Gestor Governamental. Naquele momento, ainda sem a experiência prática do dia-a-dia do trabalho e da discussão das políticas públicas nos Ministérios, a leitura do livro de Edson Nunes animava a discussão sobre um ideal de burocracia especializada que conferisse estabilidade às políticas públicas. Mais tarde, já ocupando cargos de assessoria no Ministério da Educação. Relendo as edições o livro de 1999 e 2003, confirmei que as reflexões sobre as “gramáticas políticas” do Brasil ressurgiam como categorias extremamente atuais para a compreensão da dinâmica das políticas públicas. E essa conjunção entre a reflexão teórica e a inserção na máquina pública federal começou a ganhar contorno mais concreto o funcionamento das estruturas – gramáticas – elencadas na obra de Edson Nunes: a permanência do clientelismo e do corporativismo, ao lado dos processos de insulamento burocrático. Nessas leituras e releituras, o autor apresenta uma análise histórica cuidadosa, valendo-se de dados estatísticos, econômicos e políticos que permitem construir uma interpretação sobre as formas de manutenção e controle do poder de Estado no Brasil, com seus avanços e contradições. E, com esse foco, recorrendo à análise de Pierre Bourdieu, podemos dizer que se trata da construção de um cenário que permite compreender as estruturas estruturantes do campo político brasileiro, com seus atores legitimados, o habitus dos mesmos, e as regras de funcionamento do campo. Assim, qualquer tentativa de transgredir as regras estabelecidas pelas “gramáticas políticas” resulta em fracasso e em instabilidade, o que é confirmado pelos “casos de sucesso” estudados pelo autor em relação aos governos Vargas e JK, que se mostraram hábeis operadores dessas gramáticas.
O processo de redemocratização do País, trouxe a retomada das eleições gerais, a Constituição de 88, o surgimento de novos partidos políticos, assim como se destacaram as discussões sobre a redefinição do papel do Estado e da profissionalização e qualificação do serviço público. Em decorrência, poderíamos estar diante de elementos indicadores de uma transformação mais profunda nessa “gramática política”, porém, ao se analisar o atual cenário político brasileiro, parece que reencontramos uma nova forma de adaptação e sobrevivência daquelas gramáticas: o predomínio do fisiologismo partidário, que é habilmente manipulado pelo governo da hora – seja qual for – para além de aspectos ideológicos; o pragmatismo de resultados visando a centralização do poder do Estado se vale da cooptação de grupos profissionais de acordo com a lógica corporativa de eleger atores privilegiados; e o insulamento burocrático, embora presente com o reforço das estruturas de carreiras e ampliação do quadro de servidores, é enfraquecido por estratégias de “colonização” por grupos estranhos àquelas “ilhas de excelência”, que se reduzem à poucas estruturas em que a legitimidade técnica ainda tem maior força (possíveis exemplos, talvez na área econômica, no planejamento e na ciência e tecnologia ).
Retomando a noção de “clássico”, ainda podemos afirmar que o livro do prof. Edson Nunes se insere na tradição analítica das interpretações que buscam desvendar o funcionamento dos meandros da ciência política,
Assim, a leitura – e as releituras - de “A gramática política do Brasil” se torna obrigatória para os que desejam compreender as sutilezas que enleiam o imaginário político e social do Brasil e que resultam em práticas de poder, além de ser um instrumento poderoso de interpretação do presente cenário político nacional. Por isso espera-se que essa leitura seja proveitosa para a atual geração de líderes políticos – e para as próximas – não no sentido da manipulação da gramática desvendada, mas no sentido da busca do bem público.




