“Uma pessoa com uma crença é um poder social igual a noventa e nove que possuem apenas interesses”. (John Stuart Mill, 1861)Em 17 de março de 2014, o Correio Braziliense publicou matéria com o título “Recém-formado aos 83”. A edição impressa foi ilustrada com a foto de um senhor vestindo uma beca preta e segurando um "canudo", abraçado a seu neto. Formado pelas Faculdades do Planalto de Brasília (Iesplan), o niteroiense Emar Rodrigues Chaves possui uma característica invulgar, bem diferente de seus colegas de turma, a data de seu nascimento: 28 de Janeiro de 1931. Isto significa dizer que Chaves, com 83 anos de idade, tornou-se um exemplo de tenacidade e de perseverança pelo fato de diplomar-se num curso que sempre almejou desde a sua juventude. A matéria esclarece que Chaves fez carreira na extinta companhia aérea Varig, para a qual desenvolveu maquetes e peças publicitárias. Era uma espécie de layout man ou "homem de criação" na agência interna de Propaganda da extinta empresa. Suas habilidades natas foram aperfeiçoadas sessenta anos atrás na Escola de Belas Artes, hoje pertencente à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Mas era um curso sem reconhecimento acadêmico. O curso de Arquitetura, esse sim, sempre foi um sonho antigo, realizado só agora porque o momento certo chegou", explica Chaves.A reportagem do Correio registra a vida exemplar de Chaves – tanto a universitária quanto a familiar – cuja tenacidade na busca de um ideal representa um modelo para a juventude de hoje tão carente de padrões morais e éticos. Curioso a respeito desse personagem e ao mesmo tempo perplexo com o tempo de complementação do curso de Arquitetura feito por ele – tal como explicarei adiante –, e também por ser eu arquiteto de formação, convidei-o para me visitar na Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) no início deste mês. Era grande o meu desejo de conhecer melhor os detalhes de seus estudos universitários e saber mais sobre seu desempenho nos quatro anos em que cursou a Escola de Belas Artes, onde se formaram os pintores Cândido Portinari e Victor Meirelles, o paisagista Burle Marx, o urbanista Lúcio Costa e o arquiteto Oscar Niemeyer. Em síntese, o curso de Belas Artes permitia, naquela época, depois de um tronco comum de quatro anos, o aprofundamento em pintura, artes plásticas, escultura e em arquitetura. Chaves, por razões profissionais, concluiu apenas o “tronco comum” e permaneceu na Varig como homem de criação e de artes. Assim, deixou para depois da aposentadoria a realização do curso de arquitetura. Sessenta anos depois, concretizou o seu sonho. As pessoas que atuam na área da arquitetura, acadêmicos ou não, sabem que a formação do arquiteto e urbanista tem um caráter amplo por envolver diversas áreas de artes correlatas, característica que obriga o profissional a ter uma visão generalista. Tal formação implica compreender e traduzir as necessidades de indivíduos, de grupos sociais e da comunidade em relação a aspectos específicos tais como concepção, organização e construção dos espaços externos e internos urbanos; edificações; paisagismo; preservação da beleza da natureza; conservação e valorização do patrimônio construído; proteção do equilíbrio ambiental natural e utilização racional dos recursos disponíveis. No que se refere aos atributos de uma formação cuja base é tecnológica, humanística e artística, o arquiteto deve ser não só um profissional atento às transformações do mundo contemporâneo em seus aspectos sociais, culturais, tecnológicos, ambientais e históricos, como também capaz de compreender e traduzir as necessidades de indivíduos e de grupos sociais com relação à organização, à concepção e à construção do espaço habitado. Em sua conduta profissional, o arquiteto deve ter como principais fundamentos a qualidade de vida dos habitantes e do material do ambiente construído; o uso adequado de tecnologias de pouco impacto ao meio ambiente; o desenvolvimento sustentável dos territórios urbanos; a valorização e a preservação do patrimônio histórico e a preocupação com problemas sociais prementes à sociedade. No plano prático, o arquiteto pode também relacionar-se com artes plásticas, comunicação visual, artes gráficas, cenografia, cinema e moda. A integração do arquiteto como profissional e cidadão junto à comunidade na construção de seu habitat resulta numa real participação na construção do país. Isso significa dizer que o arquiteto desempenha um papel fundamental no que se refere ao acesso à terra na cidade e no campo como condição básica para que os indivíduos possam almejar uma sociedade livre e capaz de organizar, em condições dignas, seus próprios espaços de vivência. Mesmo considerando ampla e complexa a formação do arquiteto, como acabo de brevemente explicitar, causou-me grande espanto o fato de Chaves ter sido obrigado a realizar cinco anos de estudo para tornar-se um profissional da área. Ele deveria ter podido convalidar os créditos das matérias realizadas no curso de Belas Artes e/ou solicitado o reconhecimento de suas competências profissionais o que equivaleria a diminuir a duração de seu curso em no mínimo três anos. A propósito, Paulo Vadas citou em recente artigo (Aprendizagem Orientada para Resultados):
“o que interessa, essencialmente, não é o que a escola ensina, mas sim o que o aluno aprende nela ou além dela. As atividades realizadas fora da escola, no mundo do trabalho e na prática social do cidadão, devem ser constantemente avaliadas pela instituição educacional e aproveitadas para fins de continuidade de estudos, numa perspectiva de educação permanente e de contínuo desenvolvimento da capacidade ‘de aprender’ e ‘de aprender a aprender’, com crescente grau de autonomia intelectual”.As habilidades e as competências profissionais adquiridas no interior das instituições de ensino e/ou no exercício laboral vêm sendo validadas por inúmeras empresas e associações de classe, principalmente nos Estados Unidos, e se tornando um direito nas sociedades mais avançadas. No nosso país, a convalidação das competências começa a ser analisada por bancas de professores em algumas universidades. Um dos pioneiros dessa iniciativa pode ter sido o senador Cristovam Buarque, quando reitor da Universidade de Brasília (UnB), que contratou José Zanini Caldas – paisagista, maquetista, escultor, moveleiro e arquiteto autodidata, conhecido mundialmente pelas suas obras – para ensinar no curso de arquitetura, mesmo sob protestos do corpo de professores. Zanini não permaneceu por muito tempo na UnB, mas lá deixou sua marca. Um dos edifícios no campus projetado por ele sediou por algum tempo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC). Considerando que as “horas-cadeiras” têm seu tempo de duração contado pelo bom senso e progresso, lamento sinceramente que o aproveitamento de estudos, habilidades e competências não tenham chegado a tempo de permitir que Emar Rodrigues Chaves já estivesse estabelecido, por competência e mérito, no mercado de trabalho de Brasília. Conhecer esse personagem singular me fez comprovar “o valor da crença como um poder social”, capaz de mover montanhas, em busca da realização de um projeto de vida.