Domingo Hernández Peña
Escritor, professor, consultor, Honoris Causa pela Anhembi Morumbi
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De futebol, política, religião e ensino todo mundo fala, entende, opina e reclama. Mas, nem sempre quem opina ou reclama oferece soluções. Se assim fosse, os profissionais dedicados a vender conselhos e livros (conselhos sem fim e montanhas de livros) não teriam o que fazer. Os assessores, autores e editores do discurso vazio morreriam de fome, se, de fato, estivessem remediando alguma coisa, de verdade, para sempre, perdidos ou não no seu próprio labirinto...
É por isso, pese a tanta teoria e tanta literatura, que no futebol não deixa de crescer a brutalidade, que na política não deixa de crescer a insignificância, que na religião não deixam de crescer os pecados, que o ensino continua se desintegrando.
Alguém saberia me dizer, por exemplo, o que é, hoje, uma universidade? Quando e por que uma universidade é universidade? E para que serve uma universidade quando é e quando não é universidade?
A deterioração foi tanta, que as universidades acabaram desconhecendo-se a si mesmas – desintegrando-se na alarmante contradição do ensino miúdo e especializado, por um lado, e, por outro, na crença bárbara de que todos os humanos são iguais... E não, não era isso: a especialização é, nem mais nem menos, que o contrário da universalização; e não há ser humano que seja exatamente igual a outro ser humano, graças a Deus, nem por dentro nem por fora.
Não deveriam chamar-se universidades as instituições mais comprometidas com o mercado que com as pessoas – que fabricam ferramentas de trabalho e produção quando deveriam formar homens e mulheres capazes de pensar e de sentir como tais.
Não deveriam chamar-se universidades as instituições dedicadas a industrializar e globalizar o ensino, impondo o mesmo saber, simultaneamente, a estudantes de meio mundo, ou do mundo inteiro, desprezando o sagrado valor da individualidade.
Não deveriam chamar-se universidades as instituições que mentem, prometendo chuva de empregos por um lado, como se o emprego fosse o degrau mais alto da felicidade, e, por outro lado, ensinando a produzir mais com menos empregados, sem se importar com as consequências das dispensas massivas...
Estamos precisando de um profundo e urgente exame de consciência, porque esse triple afastamento da lógica, da racionalidade e da ética universitárias nos está levando a uma espécie de loucura global: a não saber com precisão o que é ou deixa de ser um universitário. E, sem saber uma coisa aparentemente tão simples, não é fácil perceber e entender a complexidade da asfixiante crise tão falada, e que tanto nos assusta, sem que encontremos a devida explicação satisfatória.
Na verdade não se trata, só, da negação do indivíduo – de prescindir da pessoa única e diferenciada que Deus considerava o rei da Criação. Trata-se também da manipulação industrializada e mercantil do conhecimento: a graduação não é garantia de nada, porque, além de estar viciada pelo ensino propriamente dito, está sempre truncada pelo fato de que nunca se alcança por completo e para sempre, na hora de receber o diploma, a preparação que o mundo real continuará demandando; e é nas mil curvas da pós-graduação, e dos cursinhos das periferias opacas, impostas pelos oportunismos e conveniências do mercado, onde milhões de estudantes acabam se desencontrando, ou encontrando os caminhos mais desconcertantes e indesejados... A crise!
Que eu saiba (estudei em Berna), só na Suíça a realidade tem sido diferente. Na Suíça, a diferença do Brasil, o que lá se entende por Ensino Superior praticamente não tem crescido ao longo de décadas. O que tem crescido, e muito, é o que os suíços chamam Ensino Técnico, que pode ter, ou não, em algum caso, alguma relação com alguma universidade, mas sem confundir uma coisa com a outra. E é assim - o Superior não cresce e o Técnico sim - porque na Suíça, grosso modo, as universidades se dedicam a cultivar seres humanos conscientes, ensinando-lhes a transitar pela vida e pelo mundo como tais, e as profissões, em conjunto mais numerosas que a população, é nas fábricas, nos hospitais, nos supermercados, nas escolas, nos laboratórios, nos bancos, nos bares e restaurantes, nos centros de investigação, nos escritórios, etc., onde se ensinam e se aprendem, de acordo com as necessidades de quem forma (e emprega) e da iniciativa, o talento, as conveniências e a sorte de quem é formado...
Curioso: de repente, na União Europeia empobrecida e assustada, com milhões de desempregados atormentados pela impossibilidade de pagar as suas hipotecas e os seus colégios, com os científicos e toda classe de universitários emigrando em massa para outros continentes, todo mundo percebeu que na Suíça, o pequeno vizinho independente e montanhoso, praticamente não havia despidos de consideração. Feitas as comparações e os estudos mais minuciosos, a conclusão foi traumática: nos países da EU, os suíços com formação superior própria e diferenciada estavam apoderando-se das empresas e dos bancos alheios “em crise”; e, sem sair da Suíça, os suíços com a sua original formação técnica continuavam trabalhando (...) onde, desde sempre, tinham estudado, aprendido e progredido!
Hoje, agora mesmo, como consequência daquela conclusão, há um consenso entre os países da EU, que está levando a uma profunda reconversão do Ensino Superior no Velho Continente, e que, em síntese, consiste em começar tudo de novo, reduzindo (...) os cursos de graduação a uma duração máxima de três anos, e ampliando (...) a infinidade de cursos de pós-graduação a uma duração mínima de quatro anos.
O objetivo não é outro que atualizar, diversificar, flexibilizar e estender o conhecimento, recuperando em alguma medida e com certa disciplina a esquecida liberdade de ensinar e de aprender das verdadeiras universidades, para que as pessoas possam ser elas mesmas, como já foram em tempos idos, completas, complexas, ao longo das suas vidas, oferecendo e recebendo o melhor em cada momento, lugar e circunstância, sem as limitações do enferrujado diploma de costume e sem as misérias da aposentadoria fatal.
Sem prejuízo do que possa acontecer com os conteúdos, quebrar a inércia do estabelecido, invertendo o peso das cargas temporais, já é por si só uma revolução que parecia impossível na Europa dos nacionalismos. Porém, o enorme projeto emergente não se deve, só, à vontade de deixar-se levar pelo exemplo suíço e pela evidente necessidade de diversificar e de inovar. Deve-se também a duas verdades que dão medo:
- Na Europa, o coletivo mais castigado pela crueldade da crise que não acaba é o formado - constituído - precisamente pelos diplomados que sofreram a loucura do Ensino Superior voltado cegamente para as conveniências do mercado, e que continua desprezando os valores humanos e as capacidades individuais.
- Na Europa, o grosso do escasso emprego que atualmente se cria é obra da iniciativa individual (...) dos trabalhadores com mais experiência que diplomas que foram demitidos pela impiedade das grandes empresas e multinacionais, e pela pavorosa injustiça dos poderes públicos.
Sendo assim, caberia a esperança de que a espetacular reviravolta do Ensino Europeu pudesse contar com o apoio incondicional (indispensável) dos estudantes agora ameaçados. Porém, para meu espanto, não é isso o que está acontecendo. Vejam as notícias da televisão, leiam os jornais, e ficarão sabendo que na Europa, começando pela Espanha, os estudantes, mais embrutecidos que nunca, estão em pé de guerra defendendo com fúria a permanência do vigente ensino superior, longo, decadente e disparatado, que os despreza e que os condena ao fracasso – que os obriga a compreender, por lei, “el origen divino del cosmos”. Não entenderam nada, nem nada lhes foi explicado com clareza, inteligência e precisão...
Uma pena. Um drama histórico. Quando parecia que Europa se adiantava aos Estados Unidos, em algum aspecto, na modernização do Ensino, são os Estados Unidos os que se aproveitam mais uma vez das debilidades europeias para seguir ocupando o lugar privilegiado que já ocupavam, assumindo com a maior naturalidade (como estou comprovando em Massachusetts) a ideia básica: que o epicentro de tudo é a pessoa; que não há mais soluções que as soluções individuais...
Enorme contradição aparente, a de que seja nos Estados Unidos, na terra da globalização e do consumismo, onde mais e melhor se entenda que o Conhecimento não pode manter o Homem por mais tempo como escravo do Mercado e da Economia sem alma – que são a Economia e o Mercado os que têm que servir ao Homem, como no começo do começo!
E não falo do Brasil - que conste - para não falar dos meus desencantos nem das minhas amarguras. Até logo.




