As exclusões já começam pela massificação de metodologias de ensino em nome de um objetivo único a que as escolas se propõem em detrimento da riqueza de individualidades e potencialidades que carregam nossos jovens. Desde bem cedo, já no 6º ano do fundamental II, para ser otimista, as crianças são doutrinadas às provas. Uma maratona de olimpíadas e simulados que obriga, mesmo que enfatizem que as adesões às provas extras são voluntárias, crianças à exaustão de estudos, por horas a mais na escola, por fins de semana mergulhados em aulas extras imersas em pressões por resultados. Em um sábado desses, fui à casa de uma prima, que possui uma filha de 11 anos. Ao perguntar pela garota soube que ela estava participando de um “simuladinho”. Mesmo sabendo do que se tratava, demonstrei curiosidade. “É, lá começa cedo a preparação para o vestibular”, a mãe me confirmou.
São pressões que, muitas vezes, não vêm apenas da escola, da família, pior: uma grande pressão vem das próprias crianças, dos próprios adolescentes, porque querem se destacar no grupo de amigos, porque estão na idade de se sentirem valorizados na turma, porque, todos os meses, existem lá os destaques da escola expostos a todos no mural e é uma vergonha que não se esforce, não ostente estar lá, pelo menos uma vez no ano. “Por que eles conseguem notas altas e eu não? Estudo tanto e não consigo”, como ouvi certa vez de um estudante.
O ambiente de uma escola tradicional, principalmente, as maiores, exala a pedagogia da busca por resultados, expondo conquistas e vitoriosos por suas paredes. Em todo canto, há frases motivacionais e números de quem já chegou lá, viajou o mundo inteiro representando a escola e o estado em exames de várias áreas do conhecimento. Uau! Demais! Inspirador! .... Mas torturante para quem não se encaixa nessa lógica. Arrisco dizer, torturante para a maioria, que não sabe ainda conceituar nem expressar essa exclusão implícita (?) que sofre.
Uma maioria que segue na escola cumprindo o protocolo de provas para a aprovação do fim do ano. No fundo, um monte de conteúdo que não faz muito sentido e não está tão conectado com o seu potencial, com as suas habilidades. Um protocolo, acredite, que não é encarado como tal apenas pelo aluno que não se sente tão instigado assim a seguir a lógica das provas e da competitividade, mas protocolo cumprido morno pela própria escola. Coordenei por anos a disciplina de português em algumas escolas e, diversas vezes, fui coagida a orientar minha equipe de professores a ajudar alunos a passarem de ano, “porque eles não rendem mais do que isso, tem pelo menos presença, aprove”. Para mim, conhecer a dificuldade de um estudante, além de outros potenciais, e se eximir de tentar fazer dele também um destaque é mais grave que aprovar para cumprir tabela.
A verdade é que boa parte das escolas do ensino tradicional desiste da maioria dos seus estudantes, logo quando percebem que eles não lhes darão os primeiros lugares almejados, os números de ouro, de prata, de bronze, a fama de super aprovador nos exames fora da escola. São postos em turmas regulares para que cumpram o protocolo de concluir a educação básica. Sim, porque as turmas especiais são para alunos brilhantes. Alguns professores são os mesmos para as duas turmas, mas a profundidade de conteúdos é diferente. Com sorte, dos estudantes, muitos são aprovados no vestibular, mas não com o mesmo destaque dos especiais, pelo menos, aumentarão a contabilidade total da escola, dos que foram além.
Eu ensinei em turmas regulares e especiais. Aliás, em turmas também formadas por alunos colhidos de outras escolas, estudantes brilhantes que vinham, inclusive, de escola pública, para encorpar a turma dos especiais. Meninas e meninas que estudam a vida inteira em outras escolas e chegam, principalmente, no ensino médio das escolas grandes, com bolsas integrais de incentivo, sob a condição de estudar, estudar e estudar. Vi bem pouco ou quase nada, conhecimentos no ensino médio sendo construídos pela cooperação, pela empatia, pela solidariedade.
Como professora, eu passei por todas essas turmas, e senti tristeza no olhar de estudantes em todas elas. A partir do 9º ano, em boa parte das escolas, os alunos não podem participar de projetos paralelos, de cultura, de artes, de música. “Não, não, professora, esse projeto não pode para os alunos do ensino médio para que eles não se dispersem dos estudos”. Ouvi muito. Há um passar dos dias para os regulares, uma pressão fora do normal para os especiais e convidados.
No fim das contas, temos uma leva de adolescentes que termina o ensino médio como foi tratado lá: de maneira regular, regular nos estudos, regular no estado emocional; sem aprovação no vestibular e sem nenhuma formação, de fato, para a cidadania. Sai alienado por um estudo não significativo, que não o prepara para outras perspectivas, para um olhar para si, que o faça compreender suas habilidades mais particulares, que lhe são próprias. Sai do ensino médio com uma formação que não o faz enxergar o que ele e sua individualidade podem fazer pelo mundo, seja na música, na dança, no teatro, na pintura, na mecânica, nas mídias digitais, no empreendedorismo. Partem do ensino médio para recomeços e para uma busca de si, e não para continuações.
No fim das contas, muitos dos estudantes aprovados com excelência nas provas dos vestibulares, desistem, logo depois, das escolhas dos cursos mais concorridos que fizeram por ele. Descobrem que não era bem isso que queriam. Depois das pressões e do brilho, voltam-se de fato para si, se frustram, e também recomeçam.
Uma vez conversando com o professor aposentado da Faculdade de Educação da UFC, Idevaldo Bodião, ouvi dele a melhor justificativa do sucesso do sistema de ensino tradicional que ainda se destaca no Brasil. Os pais, disse-me ele, querem segurança para os seus filhos, sabem que não estarão perto deles a vida inteira. A entrada em um curso superior, na visão dos pais, segundo o professor aposentado, ainda é uma garantia. E outra: a entrada do filho na faculdade, logo depois do Ensino Médio, é a validação de que a principal parte da educação formal do filho que cabe aos pais foi realizada com sucesso. A partir dali, os pais relaxam mais e sabem que cabe muito mais ao filho essa continuação da formação dele. Pelo menos, os pais não serão mais tão julgados. Assim, até meio inconscientes, os pais buscam também o próprio status desse papel de pais que assumiram, a certificação de que fez o melhor para o filho, tanto que o filho já está na universidade.
E eu compreendo perfeitamente a opinião do pesquisador e a postura dos pais. Não é fácil educar. São muitos dias de doação, de preocupação, de julgamentos externos, de renúncias de si, de riscos de más influências que podem atravessar o caminho, de amor mesmo. Nós amamos tanto os filhos, queremos o melhor para eles e acreditamos que o melhor jeito de começar a vida adulta é na segurança da universidade. E as escolas se valem dessa crença. Em uma reportagem que fiz para o jornal O POVO, em outubro de 2015, o dono de uma grande escola me confessou. “Nós damos o que os pais querem”, justificou a opção por um projeto político pedagógico que foca no vestibular. E eu entendo perfeitamente a postura do diretor da escola.
Meu convite ao pais, com a reflexão feita por este texto, é para que observemos melhor os nossos filhos, tentem compreender o que dizem os silêncios, as rebeldias, as desculpas para não irem para a aula, a exaustão que eles denunciam; ouçam o que eles têm para dizer sobre si mesmos, o que acham da escola, o que mudariam nela, o que gostariam de viver nela e fora dela, verdadeiramente. Se já forem maiores, relembrem as crianças que os seus adolescentes foram, o que mais gostavam de fazer que se perdeu com o tempo? Pais, se permitam olhar para os seus filhos e sentir o que eles sentem, antes de olhar para si mesmos e para todo o dinheiro que já gastaram em escolas caras e por não admitirem que eles cheguem ali e não valorizem a educação que recebem.
Há uma problema sério vivido pela escola hoje que está dissonante com o que quer a juventude. Os índices de evasão só crescem, o que não parece tão evidente na escola particular. Não por inexistência de realidade semelhante. A escola não consegue atrair. A violência tem aumentado, mais e mais jovens se sentem sem rumo, há depressão, suicídios que não são alarmados pela mídia. Eu acredito que só vamos conseguir fazer a roda toda da sociedade girar ao contrário, quando partir dos pais uma maior consciência sobre os próprios filhos, quando passarem a ouvir e dialogar mais, a impor menos.
Eu acredito, e pode ser que eu esteja errada e descubra isso na jornada daqui até o dia em que os meus filhos ingressem no EM, ou antes disso, acredito que há muito mais para além do vestibular, que a escola pode ser sim muito muito mais. E acredito que se focássemos menos em nós mesmos, na nossa vaidade de pais, no futuro que nós escolhemos para os nossos filhos e olhássemos mais para a essência deles, saberíamos dialogar e exigir qualidade, de fato; exigir uma escola que esteja mais ao alcance de uma realização pessoal de cada criança e adolescente, de uma cidadania real, porque é daí que vem a criticidade que muda e transforma o que está posto. Porque, a menos que você esteja bem satisfeito com o país que temos, não vai ser com a ajuda da escola que está aí, "formando" novos seres sociais, que ele será transformado.