Silvio Tendler* Professor da PUC - Rio, Cineasta e Historiador. ***A cultura nacional no mundo globalizado - o papel da arte e da educação no século XXI ou o lugar do saci-pererê e da Índia Potira no mundo de Harry Potter
“Utopia,” “barbárie” e “desenvolvimento sustentável” são expressões pronunciadas nos dias de hoje com reiterada frequência.
Barbárie como sinônimo de fatos vividos. Utopia, não como projeto inatingível, mas como sonho possível, desejo. Desenvolvimento sustentável como construção, possibilidade de conciliar consumo e natureza.
Um novo mundo se anuncia. As promessas de um futuro radiante para todos borbulham nas páginas das ciências. As células-tronco nos garantem que, com um trabalho de lanternagem, será possível recuperar corações combalidos, fazer cego enxergar, paralítico andar.
A economia promete um mundo mais rico para todos. Desde que saibamos conviver com a natureza, que, democrática, não diferencia classes sociais, cor, credo, sexo, entre as vítimas que as catástrofes provocam causadas pelo desenvolvimento predatório.
Uma dúvida atormenta: e quando começarem os implantes cerebrais de chips capazes de armazenar em nossas cabeças a Biblioteca de Alexandria completa, o que faremos com tal volume de informação a nosso dispor?
Se não formos capazes de discernir o que queremos para nossas vidas, nos tornaremos frágeis robôs manipulados pelos que controlam as informações, o que já ocorre hoje, à medida que é a grande mídia que nos controla e não o contrário, como deveria ser.
Dentro de novos paradigmas, como será o Brasil em 2030? Que país estamos construindo para o futuro? Quais valores éticos estamos semeando? Que modelo de desenvolvimento econômico? Democrático, para todos, ou concentrador de riquezas para uns poucos? Que língua será falada no Brasil?
Uma contradição aflora entre a cultura do desenvolvimento sustentável e o desenvolvimento sustentável da cultura, ou seja, qual será o papel das culturas nacionais na construção de uma identidade própria no mundo globalizado? Qual é a importância do nacional nos desafios universais e do universal nos desafios da preservação das culturas regionais (línguas, comidas e costumes), num conflito entre ancestralidade e renovação?
Em nome do desenvolvimento sustentável, o mundo se mobiliza pela preservação da floresta, de suas árvores e de seus rios, abandonando à própria sorte o imaginário e suas lendas, sonhos, fantasmas, fantasias e os personagens que nela brotam e habitam.
A Índia Potira e o Saci-Pererê são abandonados à própria sorte sem espaço no imaginário das crianças de hoje, que preferem, por falta de formação e informação adequada, cultivar heróis alheios.
Na minha infância sempre houve espaço para Roy Rogers, Búfalo Bill, Robin Hood e Rintintin ao lado de Pedrinho, Narizinho, Emília e Marquês de Rabicó. Eram mundos conciliáveis os da cultura de massas e os dos personagens de Monteiro Lobato.
Hoje convivemos com uma cultura avassaladora hegemônica. Para citar um exemplo do que ocorre no cinema, notícia recente publicada na imprensa brasileira informa que, durante o mês de julho de 2010, três filmes ocuparam 95% das salas de cinema – todos norte-americanos.
O que sabe o jovem brasileiro sobre Josué de Castro, Darcy Ribeiro, Milton Santos?
Com o que sonha o jovem de hoje, adulto de amanhã?
A maior parte dos municípios brasileiros não tem nenhuma atividade cultural para oferecer aos jovens. Não tem sala de teatro nem sala de cinema. O Governo Federal pretende ampliar o número de bibliotecas municipais, mas ainda é projeto. Também ainda não passa de medida provisória o número de salas de cinema no Brasil (a imensa maioria de municípios não tem nenhuma. As salas de cinemas encontram-se concentradas em shoppings nas grandes cidades. São muito poucos os cinemas de rua. Nas cidades do interior, os jovens sonham com a construção de shoppings. O período eleitoral é sempre bom para ampliar discussões de interesse da Nação.
Os desafios do futuro são promissores; num mundo pautado pela globalização, onde capitais e mercadores circulam livremente e humanos são segregados por muros; num mundo de marcas, sem territórios ou bandeiras que as identifiquem, as marcas de empresas se sobrepõem às nações e seu território é o planeta. Elas compram os serviços onde a mão de obra é a mais barata e vendem os produtos de forma hipervalorizada mundo afora.
A indústria da comunicação é o grande sustentáculo e alavanca desse mundo globalizado onde o homem não é mais o centro do progresso. As culturas nacionais vêm perdendo espaço para a cultura hegemônica produzida pela indústria do entretenimento, promiscuamente sustentada por forças que sincronizadamente ordenam a política e a economia mundial: mídia internacional, sistema financeiro e indústria de armamentos.
Dentro desse quadro, a importância da Cultura cresce na construção do mundo do futuro e está intimamente ligada à educação.
Hoje a cultura submete-se ao domínio do mercado e que os “donos do mundo” inventam inúmeros artifícios para manter seu sistema de dominação, os chamados meios de comunicação de massa são peças-chave na sedimentação de valores de uma cultura consumista e predatória, que devasta o planeta ao mesmo tempo que finge preocupação com a preservação do meio ambiente.
É a educação que pode reverter esse quadro por meio da formação da infância e da juventude estimulada pela intercessão da cultura e das artes desde a mais tenra infância dentro do processo pedagógico na formação de uma consciência coletiva voltada para a paz, para o progresso, o respeito à natureza e a qualidade da vida compartilhada por todos.
O ensino da literatura, do cinema, do teatro, das artes plásticas nas escolas e nas universidades brasileiras é que pode sinalizar homens e mulheres melhores, num futuro melhor.
Ocupar nossas salas de aula com a produção do cinema brasileiro é um passo importante para que logo no futuro reocupemos nossas salas de cinema com nossos filmes e que logo elas estejam repovoadas por espectadores que serão incentivados, dentro das escolas, a conhecer e admirar nossos valores próprios.
Ensinemos a fazer do cinema um espetáculo criativo, emulador de valores humanísticos e não a permanente fábrica de violência com que nos defrontamos hoje.
A cada eleição, a política vem se revelando mais pragmática; os programas eleitorais e os candidatos omitem planos específicos para a educação e a cultura por não representarem fontes vultosas de votos.
Da educação só comentam generalidades, sem projetos, e das artes querem apenas o sorriso dos artistas nas fotografias de propaganda ao lado do candidato.
Considerando que são justamente os valores culturais que ajudam a demarcar territórios, preservar as riquezas e dar amálgama à nação, é fundamental adequar o sistema educacional aos desafios que os novos paradigmas trazem para a construção desse mundo futuro. Conciliar cosmopolitismo, internacionalismo e nacionalidade. Se antes o desenvolvimento era o desafio do progresso a qualquer preço, hoje a noção de desenvolvimento sustentável é fundamental para a sobrevivência da vida no planeta ameaçado pela fúria da natureza. Num mundo cada vez mais mercantilizado, a civilização minada por guerras e violência, a construção de um mundo de paz e tolerância, a educação representa a ponte entre o presente e o futuro. O desafio nessa sociedade globalizada é estabelecer a ponte entre educação e a cultura nacional.
_____________________________________
* Cineasta. Professor do Curso de Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) – área de Cinema. Mestre em Cinema e História pela École des Hautes-Études – Sorbonne. Especializado em Cinema Documental Aplicado às Ciências Sociais pelo Musée Guimet – Sorbonne. Diretor da Caliban Produções Cinematográficas. executivo@caliban.com.br
** O texto, na íntegra, foi publicado na edição de nº 39 da Revista Estudos - ABMES, na seção Pontos de Vista sobre Políticas Públicas para o Ensino Superior Particular. Mais informações sobre a publicação pelo número (61) 3322-3252.




