Daniel Medeiros
Doutor em Educação Histórica pela UFPR, Consultor de conteúdos em Humanidades e professor no Curso Positivo, em Curitiba
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Minha primeira professora se chamava Adla. Só depois de muitos anos percebi que seu nome é quase “Aula”. Não lembro o que ela me ensinava, mas sinto que devo tudo o que sou a ela. Eu era um menino de família pobre, que queria muito saber ler para descobrir o que se passava nas revistas e nos poucos livros da casa. Meu pai estudava algo naquele tempo e, por vezes, deixava folhas cheias de frases sobre a mesa. Eu as pegava e fingia que lia, passando o dedo sobre as palavras e dando inflexões de surpresa ou angústia, raiva ou comicidade. Ali eu era a pessoa que eu queria ser.
Um dia, lembro de ouvir minha mãe me dizer: "esse ano você vai para a escola. Venha cá que vou tirar as medidas do teu uniforme". Salto na minha memória. Lembro-me agora do ônibus que me apanhou para levar ao grupo escolar e minha mãe me dando adeus. Eu ia duro naquela camisa branca e aquele short azul escuro, um caderno verde esmeralda na mão e um lápis com uma borracha em forma de gota na ponta. Diz minha mãe que sequer olhei para ela e que ficou balançando a mão feito tonta. Mãe. Mão. Âncora de toda a vida.
Como disse, não me recordo do que aprendi. Mas nunca esqueço do dia que cheguei em casa, com o livro da escola na mão, e corri para minha mãe, que lavava roupa no tanque: “eu já sei ler a última lição da cartilha!”, disse em um único fôlego. E então comecei a contar a história comprida de duas páginas que encerrava o pequeno livro. Ler. Ser. Eu nunca mais seria o mesmo.
Hoje, sou professor. Há 36 anos. Nunca pensei que seria, mas sempre soube que aconteceria, como uma profecia: “busque sempre o melhor, sonhe sempre alto, você pode, você é capaz.” Ora, o que mais se parece com isso tudo? Ser professor.
Meu pai, homem simples e prático, sofrido pela vida que dá somente o suficiente para sentir falta de tudo, condenou-me a escolha. Disse-me não: "vai fazer algo que dê dinheiro!". Sábio e triste, meu pai, preso na realidade de seus fatos. Depois que aprendi com o poeta Ferreira Gullar que “a arte existe porque a vida não basta”, compreendi suas angústias. Mas se o mundo vivesse só do que é prático, não faria a flor desabrochar em mil cores, nem a lagarta virar borboleta. É preciso arriscar sofrer um pouco na vida para fazer arte. Um pouco como as dores nos ossos quando o corpo cresce. Ninguém quer ficar pequenininho para escapar desses incômodos, sempre pensei. Meu pai foi claro, ríspido até. Lutava por algo que não queria que eu vivesse, ou por algo que, se eu vivesse, tornasse a vida dele menos lógica. Resolvi ser professor, mesmo assim.
E como é ser professor? Não é fácil trabalhar com pessoas que querem ser diferentes do que são e que têm em você uma ponte, mas que pode ser um muro. Ensinar e aprender é, antes de tudo, disposição para o diálogo, essa mágica infernal de difícil. Mas tem mais: aprender e ensinar não pode ter fim previsto, nem programado. Tem só começo. Você disposto, o outro disposto. Um confiando no outro. Um aberto à palavra do outro, não para aceitá-la de pronto, como sopa rala, mas para mastiga-la , degusta-la, como banquete farto.
No dia do professor, recebo parabéns. Não compreendo. Agradeço pelo que faço. Não é sacrifício exercer minha humanidade, amar meu planeta - e por isso ensinar sobre como protegê-lo - e assumir a responsabilidade por estar aqui há mais tempo do que os jovens que me ouvem e lembrá-los da gravidade do passado e da importância do futuro. Esse é o meu papel. Como a folha de papel riscado sobre a mesa da minha infância, mas agora com a minha letra, com as minhas palavras.
Como professor, represento todos os adultos do mundo, dizendo para todas as crianças do mundo: “sejam bem-vindas. Agora vou mostrar a vocês como o mundo é, o que é frágil, o que é divertido, o que é importante, para vocês saberem o que devem cuidar e como vão ajudar a melhorar. Bem vindos à minha casa. À sua casa.” Isso! Foi isso que a professora Adla me ensinou. Muito obrigado!




