Domingo Hernández Peña
Escritor, professor, consultor, Honoris Causa pela Anhembi Morumbi
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Alguém, otimista, teve a ideia de publicar no The Washington Post uma longa série de trabalhos, perfeitamente documentados, para negar com contundência e bastante ironia o que os pessimistas como eu reiteramos uma e mil vezes: que neste mundo globalizado estamos vivendo uma crise profunda e complexa, que assusta, desconcerta e humilha às pessoas, mas que ninguém a explica nem a resolve.
Segundo o Post, no planeta Terra nunca antes se viveu melhor, nem, jamais, o homem tinha sido como agora tão dono do seu próprio destino.
Segundo os que pensam como eu, isso não é exatamente assim, e, para demonstrar o contrário, também têm publicado, e continuam publicando, montanhas de trabalhos.
Para um grupo específico de intelectuais de Massachusetts, que me honra com a sua amizade, a existência e os efeitos da crise são indiscutíveis, mas não assim a causa ou as causas.
Entre outros fracassos, o fracasso do Ensino Superior dominante poderia ser uma das causas... Na dúvida, programamos um longo e intenso debate em contato direto com as melhores universidades da Nova Inglaterra, e de lá estou voltando, cansado. Nunca antes, na minha vida, tinha discutido e aprendido tanto, em tão pouco tempo...
Como não há debate sem contradição, as verdades do Washington Post nos serviram para uma perfeita contraposição com as verdades opostas que nos levaram a Boston, Worcester, Providence, Newport: o desprezo crescente pela pessoa – pelo indivíduo; a desintegração conceitual das universidades; as dúvidas sobre o que seja ou deixe de ser, hoje, aquilo de ensinar e de aprender; o divórcio entre os conteúdos e as necessidades; os professores sem profissão e sem compromisso; o conhecimento emergente; a troca do universal pelo episódico – da plenitude pela especialização; o desemprego; a globalização; o sofrimento pela evidência de não ser e de não estar – de não encontrar a própria personalidade, nem a felicidade, depois de tanto diploma...
Para encontrar a síntese das muitas verdades que nos levaram a Nova Inglaterra, e com a síntese chegar a uma conclusão inteligível, não era suficiente o exemplo europeu da nova estratégia, que propõe reduzir os cursos de grau a uma duração máxima de três anos, e de ampliar os cursos de pós-graduação a uma duração mínima de quatro anos. De aí a importância de introduzir no debate a visão oposta, documentada e detalhada do Post. Ou encontrávamos argumentos para desbaratar essa visão, ou não nos quedava mais alternativa que a de deixar-nos convencer pela sua prevalência...
Por muito que o Washington Post insista em dizer outra coisa, é evidente que o fracasso do ensino superior se deve a uma causa principal: a que as universidades não estão se dedicando a colocar o universo a disposição do homem, e sim, pelo contrário, a colocar o homem - o aluno - a disposição do mercado. O aluno já não é o epicentro do interesse universitário. As universidades não trabalham para os alunos. Trabalham para uma força oculta, opaca, chamada “demanda”, que nunca se sabe com certeza se sopra os ventos da economia, do emprego, da política, da moda, do lucro, do oportunismo, das ideologias, ou de outros poderes igualmente intangíveis. Não é casualidade que o ensino superior seja uma atividade cada vez mais instável e mais volátil – que nunca se consolide, mesmo sendo das mais estudadas, discutidas, reformadas, diversificadas, complementadas, observadas, analisadas, censuradas, legisladas... Pois não há governo, democrático ou não, que não esteja interrompendo, alterando constantemente, o processo de consolidação das universidades. Nem há partido político, sindicato, igreja, associação empresarial, que não interfira, ou queira interferir, no que se ensina e no que deixa de ensinar-se. Todo mundo interfere. Todo mundo opina. Com todo mundo se dialoga e se pactua. Menos com o estudante, que só é escutado, ocasionalmente, quando já é tarde para decidir se ele quer ser ele mesmo, ou se conforma com aceitar, mais ou menos, o já decidido pelos tais poderes intangíveis... A causa principal, sim, é essa: quando o estudante assina os papéis para se matricular numa das muitíssimas universidades que se consideram “modernas”, está aceitando, por escrito, selado, rubricado e carimbado, de forma implícita, a renúncia a ser ele mesmo. A degradação do ensino superior é tanta, que todo mundo acha “normal” que as pessoas queiram ser especialistas, ferramentas, e não seres humanos; que se trunque a vida em troca do emprego fácil; que se despreze a plena capacidade de pensar e de sentir, optando por uma parte pequeníssima da capacidade de entender... O resultado é isso que estamos vendo pelo mundo afora: a orfandade de uma sociedade incompetente, medíocre, em crise, paralisada, vazia, incapaz de reagir por si mesma, porque foi educada, treinada, embrutecida, na crença de que o Bem só pode chegar do céu, da sorte, do governo, dos empregadores, dos misteriosos poderes intangíveis, e não, nunca, do domínio da própria inteligência... Não, tampouco é casualidade que seja nos países menos avançados e menos estruturados, com populações menos “protegidas” pelos poderes intangíveis, onde menos se fala de crise. Neles, pode-se falar de pobreza, e até de miséria, mas não de crise. Não se fala de crise, porque nesses países todo mundo sabe que não há mais caminho que o caminho próprio – que o caminho da iniciativa individual e particular... O que não quer dizer que a solução seja o subdesenvolvimento. Quer dizer que não haveria crise, em lugar nenhum, se, em toda parte, cada pessoa fosse dona do seu próprio destino... A lição é simples: não há poder, tangível ou não, que possa resolver, de golpe, em toda parte, de forma simultânea, qualquer problema essencial da humanidade inteira; mas haverá solução, sim, quase sempre, em qualquer lugar, para qualquer problema individual, grande ou pequeno, que possa afetar a um ser humano com capacidade de pensar, sentir e decidir por conta própria...
Com a proposta europeia de reduzir os cursos de formação a uma duração máxima de três anos, e de ampliar os de pós-graduação a uma duração mínima de quatro anos, estaria se dando um primeiro e importante passo no caminho da racionalidade e da excelência. Pois, quando pouco, estaria se facilitando a separação do que seja formar pessoas do que seja formar profissionais, que não é a mesma coisa. A formação de pessoas seria uma questão do ensino superior e das universidades. A formação de profissionais seria uma questão complexa (e interminável, porque o conhecimento emergente não tem fim) que só poderá encaminhar-se com muita flexibilidade e muita imaginação, como na Suíça, utilizando sem restrições os canais cotidianos com mais experiência e mais solvência técnicas: escolas especializadas, fábricas, hospitais, hotéis, etc. Só que, com a simples separação dos tempos, e com a melhoria das definições, não estaria se logrando por completo a reconversão necessária, capaz de devolver aos humanos o controle das suas vidas, e aos profissionais a suficiência perante qualquer ameaça de crise... Não se trata, só, de saber o que é e o que não é uma universidade. Trata-se também de atuar em consequência, para que a teoria possa transformar-se em prática. E aí aparecem as grandes pedras do caminho. Pois haveria que desbaratar o intervencionismo, os interesses criados, as apetências de lucro, o falso prestigio dos diplomas, a febre digital, a inércia cultural, a incompreensão generalizada, etc. Não podemos esquecer que, agora, o ensino superior é tratado, desde todos os poderes, e desde a própria sociedade, como um perigo potencial. E, como todos os perigos e todas as epidemias potenciais, está submetido a todos os controles e condicionamentos prévios de todas as catástrofes temidas. Não é médico quem sabe muito de medicina, e sim quem cumpre os requisitos impostos pela burocracia. Não há vaga para estudar Magistério, quando alguém, por alguma razão, limita as admissões. Não pode ser professor de inglês no Brasil ou na Bolívia, sem muita papelada, quem já era professor de inglês na Inglaterra... Ou seja: o ensino superior que aí está não é nem pode ser um exercício de liberdade. E, sem liberdade, não é possível formar pessoas livres e autênticas, nem profissionais com capacidade de competir por conta própria, com critérios próprios... Quebrar tanto inconveniente levaria décadas, talvez séculos. Para recuar (...) até a racionalidade e até a excelência só contamos atualmente com pequenos espaços de clandestinidade e de audácia, que só poderão ser contaminantes, em sentido positivo, na medida em que possa demonstrar-se a incongruência do que estamos combatendo e denunciando. De aí a conveniência, e o compromisso, de institucionalizar a luta do grupo que agora, comigo, está voltando da Nova Inglaterra.
Na volta de Massachusetts, de Rhode Island, de Connecticut, fomos convidados a participar da tradicional festa anual de formatura (de entrega de diplomas) da Columbia University, em Nova York. E foi lá, naquele pátio maravilhoso, por boca de Lee C. Bollinger, que recebemos uma dupla lição magistral:
- O que “move” os norte-americanos já não é a política, nem o dinheiro, nem a origem social. É, definitivamente, a Educação. A prioridade das famílias já não é o bairro mais badalado nem o trabalho mais lucrativo. É o melhor colégio para seus filhos.
- O saber, como simples saber, é igual no mundo todo, e pode cultivar-se de muitas maneiras, até mesmo pela Internet. Mas já não se estuda só para aprender. Também se estuda para relacionar-se. O futuro depende mais dos contatos e das amizades que dos diplomas. E os contatos da Columbia, por exemplo, são “únicos”.




