Domingo Hernández Peña
Escritor, professor, consultor, Honoris Causa pela Anhembi Morumbi
***
Se os que ensinam e os que aprendem tivessem que levar em conta tudo quanto é dito e redito, escrito e reescrito, sobre a melhor forma de ensinar e de aprender, não fariam outra coisa, ao longo das suas vidas, que preparar-se para desafios infinitos, que nunca acabariam.
Alguém ensina se alguém não aprende? Alguém aprende se alguém não ensina? Há respostas para isso e para muito mais: idades, tamanhos, sexos, lembrando, repetindo, suspendendo, sentados, na distância, brincando, em sério, caro, barato, inovando, lendo, escutando, para ser, para estar, para poder, para ganhar...
O debate cresceu e engrossou de tal maneira, que até eu, alérgico a toda e a qualquer verdade absoluta, encontrei-me um dia desses, em Nova York, fazendo parte de um grupo de pessoas vindas do mundo mais afortunado e diplomado, porém dispostas a combater o Ensino Superior “desde dentro”, com esforço e com dinheiro próprios, por entender que esse ensino embrutece e não ensina, tanto em Boston quanto em Botucatu.
Para esse grupo de Nova York, um ensino que neste mundo em crise não serve para liberar o potencial criativo dos alunos é um ensino sem sentido e sem justificativa. E para demonstrar o que isso quer dizer, o tema da próxima reunião, que será em Washington, estará dedicado aos que nunca são lembrados pelos que tanto falam de ensinar e de aprender: os autodidatas (as multidões silenciosas que criam, porque sim, por impulso próprio).
O resumo da história verdadeira que eu vou levar a essa reunião de Washington é o seguinte, se você, leitor, estiver de acordo:
- Havia uma vez uma pequena ilha espanhola, de 846 km2, com 50.000 habitantes, perdida na imensidão do Atlântico, que se chamava Lanzarote. Lá, como no resto do país, o Magistério foi “depurado” pela ditadura do Generalíssimo Franco depois da guerra civil. Os professores formados pela República perderam o emprego, ou foram presos ou fuzilados. Os livros da “libre enseñanza” foram proibidos ou queimados. As escolas fecharam e os alunos ficaram nas ruas, esquecidos, durante anos e anos.
Além disso, Lanzarote era uma ilha pouco comunicada com o mundo. Não tinha aeroporto. O tráfego de pessoas e de mercadorias dependia de um barquinho a vapor que atracava duas vezes por semana em Arrecife. Os jornais de Las Palmas chegavam quatro dias depois de serem editados. Não chovia nunca. O vento do norte parecia um castigo da natureza. A paisagem era preta e desolada, assustadora, formada por uma grossa cobertura de lava vulcânica. A terra cultivável era escassa.
Os habitantes de Lanzarote mal viviam de uma agricultura incipiente, de uma pesca primitiva, e do recurso desesperado da emigração. Sem meios e sem educação, o seu futuro parecia inviável.
Porém, mesmo sem escolas, em Lanzarote nunca proliferaram os analfabetos. E, graças á capacidade criativa dos seus autodidatas, toda a sua pobreza extrema foi transformada em progresso, orgulho e bem-estar. Hoje, a ilha tem uma população residente de 150.000 habitantes, que vivem da população flutuante (50.000 turistas) que, substituindo-se continuamente, enchem as suas ruas, praças, praias e hotéis, todos os dias (...), de janeiro a janeiro.
Se alguém me perguntar, na reunião que temos programada em Washington, de onde saíram os autodidatas de Lanzarote, eu lhe direi que não sei. Da mesma forma que não sei como nasce e cresce a criatividade. A única coisa que está clara na minha cabeça é que, se Lanzarote tivesse esperado por uma educação bonitinha e convencional, carimbada, sem autodidatas e sem criativos, a ilha seria neste momento um pedaço de terra sem rumo, fora dos mapas.
O que mais me intriga é não saber, até hoje, como foi que aprendemos a ler e a escrever sem nunca ter estudado para isso, que parece tão complicado. Porque da música sim me lembro: todo mundo aprendeu música e canto gregoriano escutando de longe ao meu pai, que além de intratável era músico e cantava em latim.
Aprendemos literatura, teatro, cinema, falando de outras coisas com dona Manuela Spínola. E foi a sua irmã, dona Esperanza, solteira como ela, a que nos inoculou o interesse pelas artes plásticas, pela ética e pela estética, sem deixar de pintar grandes murais, e sem necessidade de livros, que não existiam.
Não era arquiteto, nem urbanista, nem paisagista, o amigo e vizinho que se chamava César Manrique, Era pintor. E foi ele, criando, quem transformou o vento, a lava, o sol, os camelos, a pobreza, a comida, o vinho, o mar, as pessoas humildes de Lanzarote, numa fortíssima, irresistível, atração turística. A ideia das casinhas brancas plantadas sobre os negros vulcões apagados saiu da sua mente portentosa.
Eu tinha treze anos quando, no meio de tanta criatividade, entendi que criando podia ser livre e completo, de verdade – que os criativos transformavam e engrandeciam o mundo e a vida, e os professores, pelo contrário, no ensino só repetiam o já sabido e vivido. Foi então - acreditem - quando decidi dedicar-me a ensinar, pensando, inocente, que as duas coisas podiam conciliar-se... Se, depois de tanto esperar, a reunião de Washington não acaba com o meu desencanto, estarei perdido para sempre.




