A universidade e a formação de uma cosmovisão integral

Espaço destinado à atualização periódica de tecnologias nacionais e internacionais que podem impactar o segmento educacional e, portanto, subsidiar gestores das instituições de ensino para que sejam capazes de agir proativamente olhando para essas tendências.

04/11/2025 | 1892

A universidade e a formação de uma cosmovisão integral

*Por: Carmen Tavares

Nas últimas décadas, tornou-se comum encontrar estudantes universitários que enfrentam uma crise de sentido. Muitos não sabem por que escolheram seus cursos ou o que desejam construir com suas vidas. Outros convivem com ansiedade, exaustão e uma sensação de vazio existencial, mesmo em meio à hiperconectividade digital. A universidade, nesse contexto, emerge como o último espaço formal de formação integral — um ambiente decisivo para a construção da identidade e da visão de mundo dos jovens.

1. A crise de sentido e a fragmentação do eu
Estudos indicam que os jovens chegam à universidade com valores indefinidos e identidade em formação. A secularização, o individualismo e a desestruturação familiar geraram uma geração que busca autonomia sem ter experimentado pertencimento. Heber Campos Jr. aponta que a cultura atual prioriza o desempenho em detrimento da formação do caráter. A educação, antes voltada ao ser, tornou-se um meio de conquista de status.

Mário Sérgio Cortella observa que isso gera indivíduos “altamente competentes, mas nem sempre bons” — no sentido ético e empático. Quando a educação perde sua dimensão humanizadora, o conhecimento se torna técnica vazia: útil, mas incapaz de transformar.

2. Universidade: o último espaço formal de formação do caráter
Allen Porto defende que a universidade é o momento mais decisivo na construção da cosmovisão — a forma como o indivíduo vê o mundo e a si mesmo. Ao ingressar nesse ambiente, o jovem já não está sob influência direta da família e ainda não desenvolveu plenamente sua responsabilidade pessoal. A universidade torna-se, assim, um espaço de fronteira, onde valores são consolidados ou abandonados.

Essa vulnerabilidade é também cultural. A pressão por desempenho e a velocidade das mudanças contribuem para a “síndrome do pensamento acelerado”, descrita por Augusto Cury. O estudante pensa demais, sente pouco e quase não reflete, vivendo no piloto automático. O desafio das universidades é ajudar os alunos a compreender o significado do conhecimento, evitando que a formação acadêmica se reduza a tarefas sem propósito.

3. Ética e laicidade: o papel social da formação integral
A laicidade do Estado não exclui a dimensão ética da educação. Pelo contrário, ela permite o diálogo entre diferentes visões de mundo, contribuindo para a formação de cidadãos conscientes. Universidades, sejam confessionais ou não, têm buscado incorporar valores éticos e sociais à formação acadêmica, reconhecendo que formam não apenas profissionais, mas também líderes, pais e agentes de transformação.

Campos Jr. ressalta que toda proposta educacional carrega uma visão de ser humano e sociedade, mesmo que não explicitamente. Assim, o ensino superior inevitavelmente forma convicções sobre o bem, a verdade e o papel do indivíduo no coletivo. Cortella complementa: “educar é ajudar alguém a ser mais do que já é”. A missão da universidade deve ser formar boas pessoas — críticas, empáticas e comprometidas com o bem comum.

4. A interdisciplinaridade como caminho para a formação integral
A especialização excessiva fragmentou o conhecimento, tornando o ensino eficiente, mas desarticulado. O aluno aprende conteúdos, mas não compreende seu sentido na totalidade da vida. Porto e Campos Jr. defendem a interdisciplinaridade como forma de recompor essa unidade, integrando razão, emoção e ética.

Projetos que envolvem filosofia, psicologia, tecnologia, artes e ciências sociais ajudam a desenvolver pensamento crítico e consciência existencial. Essa integração deve ser humana, não apenas metodológica. O professor torna-se mediador de sentido, despertando perguntas e promovendo autoconhecimento.

5. Tecnologia e o novo isolamento: quando o mundo digital distancia o humano
A tecnologia, que prometia aproximação, frequentemente isola. O hiperconectivismo cria uma ilusão de pertencimento, mas esvazia vínculos reais. Jovens passam horas conectados, mas sentem-se emocionalmente distantes. Cury chama isso de “era dos especialistas em máquinas e dos amadores em sentimentos”. O domínio tecnológico sem maturidade emocional gera dependência.

O resultado é um novo analfabetismo: o relacional. Saber ouvir, dialogar e cooperar tornou-se raro. A tecnologia precisa ser reeducada, usada como ferramenta de inteligência, não de fuga. Cortella afirma que “a tecnologia é neutra; o uso que fazemos dela revela nossa ética”. A universidade deve incluir o debate sobre o uso consciente dos meios digitais como parte da formação ética.

6. Reconstruindo a unidade entre razão, emoção e propósito
A educação superior precisa devolver coerência ao ser humano. O excesso de informação fragmenta; a falta de propósito paralisa. Porto propõe que a universidade ensine não apenas o “como”, mas o “porquê”. A reflexão sobre sentido é uma necessidade pedagógica.

Campos Jr. alerta que conhecimento sem autoconhecimento gera arrogância; técnica sem ética gera desumanização. Integrar razão e emoção é essencial para uma cosmovisão equilibrada. Essa integração combate o isolamento tecnológico. Projetos de convivência, voluntariado e diálogo intergeracional promovem pertencimento. Universidades que estimulam empatia e escuta ativa formam profissionais mais preparados para lidar com a complexidade humana.

7. Propostas para uma formação mais integral e conectada ao real
A formação universitária deve ir além da sala de aula. Mentorias, rodas de conversa sobre saúde mental, ética digital e projetos sociais são formas de exercer a missão integral da universidade. Cury sugere programas para ajudar os alunos a “gerir a própria mente”, desacelerando o pensamento e desenvolvendo autodomínio emocional — uma prevenção à ansiedade e estímulo à reflexão.

Cortella propõe resgatar o diálogo como método educativo: perguntas bem formuladas em vez de respostas prontas, cooperação em vez de competição, conversas que toquem a vida real em vez de discursos técnicos. O diálogo humaniza o saber e devolve sentido ao aprendizado.

8. Conclusão: restaurar o humano em meio à técnica
O maior desafio da universidade contemporânea é restaurar o humano em meio à técnica. A crise de sentido dos jovens não será resolvida apenas com currículos novos ou tecnologias de ensino. É preciso coragem institucional para recolocar o ser humano no centro do processo educativo.

Como resume Cortella, “ensinar é um ato de coragem” — coragem de lidar com dúvidas, erros e sofrimento; coragem de formar pessoas que pensem por si e cuidem umas das outras. Porto e Campos Jr. alertam que a ausência de formação integral gera especialistas desorientados. Cury reforça a urgência de educar mentes saudáveis. Todos convergem em um ponto: conhecimento sem propósito não transforma.

A universidade deve ser o espaço onde razão, emoção e ética se reencontram. Ali, o estudante aprende a pensar, sentir e agir com coerência — não apenas para o mercado, mas para a vida. Num tempo em que a tecnologia tudo promete, talvez o maior avanço educacional seja este: reaprender a ser humano.

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*Maria Carmen Tavares Christóvão é Mestre em Gestão da Inovação com área de pesquisa em Inovação Educacional. Diretora da Pro Innovare Consultoria de Inovação, atuou como Reitora, Pró Reitora e Diretora de Instituições de Ensino de diversos portes e regiões no Brasil.

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Carmen Tavares

Gestora educacional e de inovação com 28 anos de experiência em instituições de diversos portes e regiões, com considerável bagagem na construção de políticas para cooperação intersetorial, planejamento e gestão no ensino privado tanto na modalidade presencial quanto EAD. Atuou também como executiva em Educação Corporativa e gestora em instituições do Terceiro Setor. É mestre em Gestão da Inovação pela FEI/SP, com área de pesquisa em Capacidades Organizacionais, Sustentabilidade e Marketing. Pós-graduada em Administração de Recursos Humanos e graduada em Pedagogia pela UEMG.

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