Educação Superior Comentada | A ampliação das finalidades da educação superior

Ano 3 • Nº 38 • 04 de novembro de 2015

Nesta semana, o consultor jurídico da ABMES, Gustavo Fagundes, aborda a ampliação das finalidades da educação superior

04/11/2015 | Por: Gustavo Fagundes | 22496

A AMPLIAÇÃO DAS FINALIDADES DA EDUCAÇÃO SUPERIOR

Tem se mostrado uma crença típica de nossa cultura positivista o entendimento de que os eventuais problemas sociais e culturais podem ser resolvidos com a açodada criação de normas legais.

Também tem sido prática recorrente do Estado transferir para os ombros da iniciativa privada encargos que sua incompetência não permite executar de forma satisfatória, sendo exemplos claros disso a formatação imposta pelo Programa Mais Médicos para os cursos de Medicina e a ampliação das exigências de atendimento aos portadores de necessidades educacionais especiais pelas instituições privadas, sempre em evidente substituição à histórica incapacidade do poder público nacional de atendimento dessas relevantes demandas.

O exemplo mais recente desta política de transferência de obrigações, combinada com a crença de que leis formais resolvem problemas sociais e culturais, foi a edição da Lei n° 13.174/2015, acrescentando ao texto do artigo 43 da LDB uma nova finalidade para a educação superior.

Com efeito, a recente norma legal acresce o seguinte inciso VIII ao artigo 43 da LDB, no qual estão elencadas as finalidades da educação superior:

“Art. 43. A educação superior tem por finalidade:

 .....

VIII - atuar em favor da universalização e do aprimoramento da educação básica, mediante a formação e a capacitação de profissionais, a realização de pesquisas pedagógicas e o desenvolvimento de atividades de extensão que aproximem os dois níveis escolares.”

 

O dispositivo legal recém aprovado pretende, portanto, impor às instituições de educação superior a obrigação de “atuar em favor da universalização e do aprimoramento da educação básica”, estabelecendo que esta obrigação deva ser desempenhada através da “formação e capacitação de profissionais e realização de pesquisas pedagógicas”, bem como pelo “desenvolvimento de atividades de extensão que aproximem os dois níveis escolares”.

Vale dizer: pouco importam a missão e os objetivos das instituições de ensino superior, pois deverão, doravante, por força de mais um ato atentatório à sua autonomia didático-científica, desempenhar atividade inerente à atuação do poder público na esfera da educação básica.

Com efeito, cumpre registrar que a oferta adequada de educação básica, compreendendo a educação infantil e os ensinos fundamental e médio, é atribuição legal dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, nos termos cristalinos dos artigos 10 e 11 da LDB:

“Art. 10. Os Estados incumbir-se-ão de:

.....

II - definir, com os Municípios, formas de colaboração na oferta do ensino fundamental, as quais devem assegurar a distribuição proporcional das responsabilidades, de acordo com a população a ser atendida e os recursos financeiros disponíveis em cada uma dessas esferas do Poder Público;

III - elaborar e executar políticas e planos educacionais, em consonância com as diretrizes e planos nacionais de educação, integrando e coordenando as suas ações e as dos seus Municípios;

.....

VI - assegurar o ensino fundamental e oferecer, com prioridade, o ensino médio a todos que o demandarem, respeitado o disposto no art. 38 desta Lei;”.

“Art. 11. Os Municípios incumbir-se-ão de:

I - organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais dos seus sistemas de ensino, integrando-os às políticas e planos educacionais da União e dos Estados;

.....

V - oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino.”

Claramente delineadas, portanto, as competências e responsabilidades pela oferta, com garantia de qualidade, dos diversos níveis educacionais que integram a educação básica, entre as quais se incluem, decerto, seu aprimoramento e universalização, com a adoção dos meios necessários.

É certo, contudo, que as instituições de ensino superior podem colaborar no processo de aprimoramento da educação básica, desde, é claro, que respeitadas as prerrogativas constitucionais de autonomia didático-científica.

Ou seja, as IES, se assim previsto como parte de sua missão e de seus objetivos, podem e, neste caso, devem, colaborar de forma ativa em favor da universalização e do aprimoramento da educação básica.

Por outro lado, esse tipo de atuação, por mais relevante que venha a ser, não lhes deve ser imposto em confronto com o princípio constitucional da autonomia didático-científica, ou seja, não havendo previsão para este tipo de atuação em seus documentos institucionais, não nos parece legítima a sua imposição pela recente alteração da LDB, por motivos óbvios.

Registrada essa premissa fulcral, podemos tentar vislumbrar como a “nova” finalidade da educação superior poderia ser trazida para a realidade das instituições.

Naturalmente, as instituições que oferecem cursos de licenciatura, possuem a vocação e, até pela obrigação de atendimento das diretrizes curriculares nacionais vigentes, a finalidade inequívoca de atuar em prol da universalização e aprimoramento de todos os níveis da educação básica.

Com efeito, a “formação e capacitação de profissionais e realização de pesquisas pedagógicas”, assim como o “desenvolvimento de atividades de extensão que aproximem os dois níveis escolares” são, ou pelo menos deveriam ser, atividades inerentes à oferta adequada dos cursos de licenciatura, sendo, por este prisma, absolutamente despicienda a alteração trazida no artigo 43 da LDB pela Lei n° 13.174/2015.

As instituições que não ofertam cursos de licenciatura, por seu turno, também poderiam desenvolver programas e ações neste sentido, sem o foco de formação de pessoal docente, mas atendendo à necessidade de qualificação dos gestores educacionais e articulando, por exemplo, as ações ligadas à educação ambiental à melhoria das condições de oferta da educação básica em todos seus níveis e modalidades.

De qualquer modo, entendo que, inquestionavelmente, teria sido muito mais produtivo destinar os recursos vultosos que movimentaram a máquina legislativa para aprovação da referida lei à realização de um projeto consistente de rediscussão e revisão da forma como é conduzida e regulamentada a oferta dos cursos de licenciatura no País.

Mas, aparentemente, debates sérios e produtivos sobre questões ligadas à melhoria efetiva da educação não parecem estar na pauta da “Pátria Educadora”.

Enquanto isso, vamos, passivamente, aceitando a descabida transferência de encargos constitucionais e legais do poder público para os ombros da iniciativa privada, observando o aumento da já excessiva carga tributária, acompanhado pela imposição do cumprimento de obrigações típicas dos gestores públicos...

 

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