Historicamente, o MEC insiste em exigir das instituições de ensino superior a apresentação de certidões negativas como condição para a tramitação dos processos relativos às atividades de regulação e avaliação.
Com efeito, esse costume já estava presente no revogado Decreto n° 3.860/2001, que exigia para os processos que pleiteassem obtenção de atos autorizativos institucionais e de cursos de graduação, a apresentação de certidões de regularidade fiscal perante as Fazendas Federal, Estadual e Municipal, além do INSS e FGTS, nos seguintes termos:
“Art. 20. Os pedidos de credenciamento e de recredenciamento de instituições de ensino superior e de autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos superiores serão formalizados pelas respectivas entidades mantenedoras, atendendo aos seguintes requisitos de habilitação:
(...)
III - prova de regularidade perante a Fazenda Federal, Estadual e Municipal;
IV - prova de regularidade relativa à Seguridade Social e ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço;”.
Naqueles tempos, as instituições buscaram, com sucesso, junto ao Poder Judiciário, a obtenção de decisões que determinassem a regular tramitação e conclusão dos referidos processos regulatórios sem a necessidade de apresentação das certidões acima mencionadas.
Com a edição do Decreto n° 5.773/2006, a exigência de apresentação de certidões negativas deixou de ser formulada para os processos relativos aos cursos superiores, sendo mantida apenas nos processos relativos às instituições (credenciamento e recredenciamento), nos termos de seu artigo 15, inciso I, alíneas “d” e “e”:
“Art. 15. O pedido de credenciamento deverá ser instruído com os seguintes documentos:
I - da mantenedora:
.....
d) certidões de regularidade fiscal perante as Fazendas Federal, Estadual e Municipal;
e) certidões de regularidade relativa à Seguridade Social e ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS;”.
Todavia, a referida exigência não encontra amparo legal, sendo, portanto, manifestamente descabida.
Com efeito, a educação é tratada no Título VIII da Constituição Federal, que trata da Ordem Social, sendo certo que se encontra dedicada a ela a Seção I do Capítulo III, dividido com os temas da cultura e do desporto, relevando destacar que o art. 206 da CF/88 tem como princípio norteador da educação a “garantia de padrão de qualidade”, esteira na qual o art. 209 da Carta Magna, ao franquear a liberdade de ensino à iniciativa privada, estabelece como condições o “cumprimento das normas gerais de educação nacional” (inciso I) e a “autorização e avaliação de qualidade do poder público” (inciso II).
Justificam-se plenamente tais condições em virtude da sobeja relevância da matéria em discussão – a educação -, sendo certo que, na esteira da norma constitucional, o legislador ordinário tratou de explicitar tais condições, sempre observando, como não poderia deixar de ser, o balizamento constitucional da questão.
Tanto é que, ao tratar da liberdade do ensino à iniciativa privada, a Lei nº. 9.394/96, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em seu art. 7º., elenca como condições para esta liberdade aquelas mesmas estabelecidas no art. 209 da Constituição Federal, apenas incluindo a necessidade de “capacidade de autofinanciamento” (inciso III).
No caso específico das instituições de educação superior, exatamente como ocorre com a entidade mantida pela Impetrante, aplica-se a disposição contida no art. 46 da Lei nº. 9.394/1996 relativamente aos processos de autorização e reconhecimento de cursos superiores, bem como de suas respectivas renovações, assim dispondo a mencionada norma legal:
“Art. 46. A autorização e o reconhecimento de cursos, bem como o credenciamento de instituições de educação superior, terão prazos limitados, sendo renovados, periodicamente, após processo regular de avaliação.”
Absolutamente inequívoca, portanto, a conclusão de que a teleologia da norma constitucional e da legislação ordinária relativas à educação superior é a manutenção constante da qualidade do ensino ministrado pelas instituições de educação superior, qualidade esta que deverá ser objeto de avaliação pelo poder público nos eventos e intervalos definidos, na defesa exclusiva do interesse do destinatário de tais serviços.
Força é admitir, portanto, que, no exercício do poder regulamentar, a avaliação deve restringir-se aos critérios objetivos que guardem exclusivamente relação direta com a finalidade da norma constitucional e da legislação ordinária, qual seja, a aferição da qualidade do ensino ministrado.
Emerge, assim, cristalina a conclusão de que qualquer exigência inserida na regulamentação e que seja estranha às finalidades da avaliação estabelecidas na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei nº. 9.394/1996), ou seja, a avaliação exclusiva da qualidade do ensino ministrado, ultrapassa os limites estabelecidos para o exercício do poder regulamentar, incidindo em manifesta ilegalidade e inconstitucionalidade.
Não obstante a clareza solar do enquadramento constitucional e legal da questão da avaliação das instituições de educação superior, que deve ater-se aos critérios que afiram a qualidade do ensino ministrado, o Poder Executivo, em sua sanha arrecadadora, ao editar o Decreto nº. 3.860/2001 e, posteriormente, o Decreto n° 5.773/2006, neles inseriu o ardiloso artifício da exigência de comprovação de quitação com as Fazendas, INSS e FGTS, com a finalidade exclusiva e indisfarçável de pura e simplesmente ver aumentar a sua arrecadação, como se pode facilmente verificar da leitura dos incisos III e IV do art. 20 do Decreto nº. 3.860/2001 e nas alíneas “d” e “e” do inciso I do artigo 15 do Decreto n° 5.773/2006, dispositivos anteriormente já transcritos.
Verifica-se de plano que as exigências contidas nas alíneas “d” e “e” do inciso I do art.15 do Decreto nº. 5.773/2006 não guardam a mínima relação com os preceitos dos artigos 206 e 209 da Constituição e nem com os artigos 7º. e 46 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que estabelecem como fator de avaliação a ser observado a qualidade do ensino ministrado.
Ora, na verdade, os referidos dispositivos legais dizem respeito única e exclusivamente à situação fiscal e parafiscal das mantenedoras das instituições de educação superior, em nada guardando relação com a avaliação da qualidade do ensino ministrado.
Em outras palavras, o interesse tutelado por tais dispositivos, longe de contemplar os relevantes fundamentos da atividade educacional, possui indisfarçável viés fazendário, nitidamente arrecadatório.
Destarte, as exigências traçadas pelas alíneas “d” e “e” do inciso I do artigo 15 do Decreto nº. 5.773/2006 mostram-se flagrantemente inconstitucionais, à medida que lesam a liberdade de ensino conferida à iniciativa privada pelo art. 209 da Constituição Federal, por este dispositivo condicionada tão-somente à autorização e à avaliação permanente de qualidade pelo poder público.
Mostram-se ainda totalmente ilegais quando cotejadas com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que não traz menção à necessidade de comprovação de regularidade fiscal ou parafiscal das mantenedoras.
Esta exigência, portanto, constitui-se em inovação trazida pelo Decreto nº. 3.860/2001 e reiterada pelo Decreto n° 5.773/2006, violando ainda o princípio constitucional da legalidade, insculpido no inciso II do art. 5º. da Carta Magna, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Ora, restou sobejamente demonstrado que nem a Constituição Federal e nem a Lei nº. 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) trazem qualquer menção à exigência de comprovação de regularidade fiscal, previdenciária ou fundiária para fins de reconhecimento ou renovação de reconhecimento dos cursos superiores, motivo por que não se poderia validamente impor tal exigência às instituições de educação superior, como pretendido pelos dispositivos acima apontados.
O poder regulamentar, como é sabido, encontra limites intransponíveis, decorrentes do princípio constitucional da separação dos poderes. Estes limites, por certo, são os ditames da norma legal a ser regulamentada, que não pode ter seu objeto restringido ou elastecido pelo titular de tal poder.
Neste sentido, vale lembrada a magistral lição do saudoso Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, segundo a qual o poder regulamentar “não cria, nem modifica e sequer extingue direitos e obrigações, senão nos termos da lei, isso porque o inovar originalmente na ordem jurídica consiste em matéria reservada à lei” (in Princípios Gerais de Direito Administrativo, Vol. I, Ed. Forense, 1979, pág. 360 – grifou-se).
Evidente, portanto, que no caso do atualmente vigente Decreto nº 5.773/2006, estamos diante de exercício do poder regulamentar do qual somente poderia advir um “regulamento executivo”, posto que destinado o mencionado decreto a promover a “fiel execução da lei”, no caso a Lei nº. 9.394/1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de modo que é ato normativo derivado.
Verifica-se, portanto, que inexiste qualquer liame lógico entre o “regular processo de avaliação” preconizado nas normas legais que regem a educação superior e a exigência de apresentação de certidões negativas fiscais, previdenciárias e do FGTS exigidas pelo Decreto nº. 5.773/2006, de modo que o referido decreto nitidamente extrapolou, de forma indevida, suas atribuições de ato normativo derivado, afastando-se da obrigação legal de limitar-se a explicitar a forma de execução da lei, inovando no mundo jurídico criando exigências não previstas no ato normativo originário.
Com efeito, o preconizado “regular processo de avaliação” guarda relação única e exclusivamente com a aferição da qualidade do ensino ministrado, este sim o bem jurídico tutelado pela CF/88 e pela LDB, e não a sanha arrecadatória do Poder Executivo e seu interesse meramente financeiro.
Evidencia-se, em mais esta oportunidade, a desabrida intenção do Poder Executivo de se valer de uma prerrogativa legal, qual seja, exercer o poder de fiscalização e expedir os atos de autorização de funcionamento, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos superiores, para claramente coagir o contribuinte a promover o recolhimento de pesados tributos, como se não bastassem os inúmeros instrumentos legais já postos à sua disposição para tal finalidade, como, por exemplo, a Lei de Execução Fiscal e tantos outros.
Assim como não é novidade esta conduta do Poder Executivo, também não é novidade a posição do Poder Judiciário contrária a esta prática verdadeiramente medieval e ditatorial, constante de condicionar o livre exercício da atividade econômica lícita, constitucionalmente assegurada e protegida, à comprovação do recolhimento de tributos.
Já em 1963, o Supremo Tribunal Federal, editou a Súmula nº. 70, que preceitua ser “inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para a cobrança de tributo”.
Neste mesmo passo, o Excelso STF reiterou este posicionamento em diversas outras ocasiões, exatamente como o fez ao editar a Súmula nº. 574, de 1969, segundo a qual “não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”, e também a Súmula nº. 323, que enuncia ser “inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”.
Caminhando sempre em conformidade com esse entendimento, os tribunais brasileiros entendem, de forma unânime, ser impositivo o afastamento da descabida exigência de apresentação de certidões negativas como condicionante para a tramitação dos processos de credenciamento e recredenciamento institucional, conforme demonstram, em caráter meramente exemplificativo, os acórdãos abaixo transcritos:
“EMENTA
AGRAVO LEGAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXIGÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE REGULARIDADE FISCAL PARA CREDENCIAMENTO DE INSTITUIÇÃO DE ENSINO. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL.” (e-DJ TRF 3ª Região, Agravo Legal em AGI n° 0024274-23.2011.4.03.0000/MS, Rel. Des. Federal Consuelo Yoshida, 19.4.2012, p. 1084).
“EMENTA
APELAÇÃO. CREDENCIAMENTO OU RECREDENCIAMENTO DE INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR. REGULARIDADE FISCAL. EXIGÊNCIA. DECRETO Nº 5.773/2006. RESERVA LEGAL. REGULAMENTO AUTÔNOMO. IMPOSSIBILIDADE.” (e-DJ TRF 5ª Região, AC n° 517377/PE, Rel. Des. Federal Edilson Pereira Nobre Júnior, 23.8.2012, p. 658).
“EMENTA
ADMINISTRATIVO. TRIBUTÁRIO. INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR. CREDENCIAMENTO. CDN. INEXIGÊNCIA DE APRESENTAÇÃO. REGULARIDADE FISCAL. COBRANÇA INDIRETA DE TRIBUTOS. IMPOSSIBILIDADE.” (e-DJ TRF 3ª Região, APC n° 0002667-87.2011.4.03.6002/MS, Rel. Des. Federal Consuelo Yoshida, 7.6.2013, p. 1338).
“EMENTA
APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO. ADMINISTRATIVO. DECRETO 5.773/06. EXIGÊNCIA DE CERTIDÕES DE REGULARIDADE FISCAL PARA CREDENCIAMENTO E RECREDENCIAMENTO DE INSTITUIÇÃO DE ENSINO. ABUSO DE PODER POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO. MEIO DE COERÇÃO AO PAGAMENTO DE TRIBUTOS. IMPOSSIBILIDADE. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS PROPORCIONAIS. DESPROVIMENTO.” (e-DF TRF 2ª Região, Ap/Reexame Necessário n° 2006.51.01.015179-5, Rel. Des. Federal Aluísio Mendes, 24.7.2013, pág. 219).
Desse modo, embora recomendando que as instituições mantenham, sempre, a sua regularidade contributiva, entendemos necessário registrar que, na hipótese de eventual indisponibilidade de alguma das certidões negativas exigidas pelas alíneas “d” e “e” do inciso I do artigo 15 do Decreto n° 5.773/2006, não é legítimo que o MEC imponha obstáculos à regular tramitação e conclusão dos processos de credenciamento e recredenciamento institucional.
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