Educação Superior Comentada | O descaso dos gestores públicos com a educação básica e seus reflexos na educação superior

Ano 4 • Nº 32 • 21 de setembro de 2016

Na Coluna Educação Superior Comentada desta semana, o consultor jurídico da ABMES, Gustavo Fagundes, o descaso dos gestores públicos com a educação básica e seus reflexos na educação superior

21/09/2016 | Por: Gustavo Fagundes | 2167

O descaso dos gestores públicos brasileiros com a educação básica é fato público e notório, sendo certo que toda a pirotecnia empregada nos últimos anos, sobretudo com a agora evidenciada farsa da “Pátria Educadora”, não é capaz de esconder essa triste realidade.

Como a imensa maioria dos programas de governo dos anos recentes, temos muita mídia, muita conversa, muitos factoides e pouquíssimos resultados efetivos, como ocorre com o programa de transposição das águas do rio São Francisco, que já recebeu diversas cerimônias de inauguração, mas que, de fato, ainda não começou a funcionar em proveito efetivo dos pretensos beneficiários.

Com a educação tem acontecido exatamente a mesma coisa, ou seja, muita conversa, muito show midiático e pouquíssima ação efetiva capaz de gerar resultados concretos.

Nesse espaço, já demonstramos, algumas vezes, a farsa eleitoreira apresentada em 2014, com promessas de ampliação do Fies, do Prouni e do Pronatec, todas reiteradamente descumpridas, como apontamos em edições anteriores dessa coluna.

Restava, ainda que muito tênue e possivelmente infundada, a esperança de que os programas para a educação básica não trilhassem o mesmo rumo do engodo eleitoreiro.

Lamentavelmente, os recentes dados divulgados da edição 2015 do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) mostram que o mesmo destino estava reservado a esta etapa educacional primordial ao desenvolvimento de uma nação.

Com efeito, as metas estabelecidas para 2015, de forma global, somente foram atingidas nos anos iniciais do ensino fundamental, como divulgado em diversos veículos de comunicação, entre os quais o Correio Braziliense e o G1.

A situação se mostra ainda mais grave nos anos finais do ensino fundamental e, sobretudo, no ensino médio, níveis em que, desde 2013, o resultado global médio fica longe de atingir as metas propostas.

No ensino médio, a meta não foi atingida por 24 estados e pelo DF, o que mostra o péssimo nível do ensino ofertado nesse nível educacional, embora, registre-se, em parte significativa dos estados tenha havido uma melhora nos resultados, insuficiente, contudo, para autorizar qualquer tipo de comemoração.

Mais grave do que isso é perceber que, em cada um dos níveis educacionais avaliados pelo Ideb, existem estados que jamais obtiveram um resultado que atingisse a meta proposta, sem que qualquer tipo de providência fosse adotada em relação aos gestores públicos responsáveis por tamanho descaso com a educação.

É fato que muitos especialistas alegam ser irrelevante o atingimento ou não das metas, por terem sido traçadas de forma arbitrária, sem debate e estudos prévios que pudessem lastrear a sua fixação.

Nesse aspecto, qualquer semelhança com os indicadores de qualidade adotados na avaliação da educação superior, sobretudo com aqueles derivados do Enade não é mera coincidência, pois a definição arbitrária de critérios de qualidade é marca indelével da gestão educacional nos últimos anos.

Poderíamos passar muito tempo analisando as causas desse desempenho muito abaixo do esperado, passando pela péssima gestão dos recursos públicos destinados à educação, pela corrupção que drena ainda mais estes recursos e pelo evidente desinteresse de nossos gestores públicos em trazer efetivamente a melhoria da educação, certamente temendo as consequências que a evolução do pensamento crítico da população traria para suas pretensões de permanência no poder.

Mas voltemos ao foco do presente texto, que é o reflexo do descaso dos gestores públicos da educação básica para o ensino superior.

O efeito mais óbvio é o flagrante despreparo com que os estudantes chegam ao ensino superior, tornando ainda mais árdua a missão de prepara-los para a cidadania e para o mercado de trabalho, assegurando que possam, de fato, atingir seu pleno desenvolvimento.

Isso pode ser facilmente constatado pelas instituições que adotem um processo seletivo mais rígido do que a simples exigência de prova de redação imposta pelo MEC ou de mero aproveitamento do resultado do Enem.

Talvez a faceta mais perversa dessa situação seja a desabrida transferência de obrigações inerentes às instituições que ofertam educação básica para aquelas que atuam na educação superior.

Com efeito, isso fica absolutamente evidente com a imposição de obrigações que denotam essa indevida transferência, como contido no indicador de qualidade 1.14 (Apoio ao discente) do instrumento de avaliação de cursos de graduação, que contempla, como uma das exigências para a obtenção de conceito satisfatório (3) a presença de atividades de nivelamento.

Ficam, desse modo, as instituições de ensino superior obrigadas a, além de desenvolver as atividades educacionais decorrentes da aplicação das diretrizes curriculares nacionais dos cursos que ofertam, atuar para o saneamento do déficit de conteúdo trazido pelos acadêmicos dos bancos da educação básica.

E, como essas instituições não tem para quem empurrar a conta, como é feito pelas instituições de educação básica, terminam pagando o preço dessa incompetência e recebendo o rótulo da falta de qualidade em sua atividade educacional, quando, sabemos, essa não é exatamente a verdade dos fatos.

Ora, impor, indistintamente, a todas as instituições de ensino superior, que ofereçam programas de nivelamento, significa admitir a absoluta incompetência dos gestores educacionais públicos e privados para assegurar a oferta de educação básica com um padrão satisfatório de qualidade, de modo que suas deficiências deverão ser objeto de recuperação no ensino superior.

É certo, contudo, que não é atribuição do ensino superior recuperar conteúdos, competências e habilidades não desenvolvidos de forma adequada no âmbito da educação básica.

Todavia, é muito mais cômodo para o MEC simplesmente jogar esse encargo sobre os ombros das instituições de ensino superior e inserir indicadores de qualidade que as obrigue a fazer o que não foi feito adequadamente no tempo e modo devidos, para depois criticar a qualidade de sua atuação, desprezando as verdadeiras causas da alegada falta de qualidade na educação superior, muito mais ligadas ao descaso dos gestores escolares da educação básica do que à atuação efetiva das instituições superiores.

O problema é que assumir a incompetência dos gestores da educação básica, certamente, não atrai a mídia e não garante o palanque conseguido com o discurso de ataque às instituições de ensino superior, notadamente as particulares, como vem sendo praticado ao longo dos últimos tempos.

A forma de solucionar esta questão passa, necessariamente, pelo exercício efetivo e ativo da cidadania, pela supervisão incessante da atuação dos gestores educacionais de todos os níveis e modalidades, de modo a assegurar que as verbas destinadas à educação sejam, de fato, aplicadas de forma correta e eficiente, proporcionando o efetivo acesso universal à educação de qualidade.

Sem isso, continuaremos sem alcançar as metas de qualidade, independentemente de como sejam propostas, pois é certo que, sem seriedade, sacrifício e competência, não se chega a resultado positivo na educação.

Qualquer crítica, dúvida ou correções, por favor, entre em contato com a Coluna Educação Superior Comentada, por Gustavo Fagundes, que também está à disposição para sugestão de temas a serem tratados nas próximas edições.

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