Desde o advento da Lei n°. 13.146/2015, as instituições de ensino vêm se deparando com o problema da delimitação da obrigação de disponibilizar atendimento educacional especializado.
Apenas para recordar, pois este tema já foi tratado anteriormente neste espaço, cumpre registrar as obrigações impostas às instituições particulares de ensino no tocante ao atendimento educacional especializado, conforme expressamente lançado no artigo 28 da referida lei:
“Art. 28. Incumbe ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar:
I - sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida;
II - aprimoramento dos sistemas educacionais, visando a garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena;
III - projeto pedagógico que institucionalize o atendimento educacional especializado, assim como os demais serviços e adaptações razoáveis, para atender às características dos estudantes com deficiência e garantir o seu pleno acesso ao currículo em condições de igualdade, promovendo a conquista e o exercício de sua autonomia;
IV - oferta de educação bilíngue, em Libras como primeira língua e na modalidade escrita da língua portuguesa como segunda língua, em escolas e classes bilíngues e em escolas inclusivas;
V - adoção de medidas individualizadas e coletivas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social dos estudantes com deficiência, favorecendo o acesso, a permanência, a participação e a aprendizagem em instituições de ensino;
VI - pesquisas voltadas para o desenvolvimento de novos métodos e técnicas pedagógicas, de materiais didáticos, de equipamentos e de recursos de tecnologia assistiva;
VII - planejamento de estudo de caso, de elaboração de plano de atendimento educacional especializado, de organização de recursos e serviços de acessibilidade e de disponibilização e usabilidade pedagógica de recursos de tecnologia assistiva;
VIII - participação dos estudantes com deficiência e de suas famílias nas diversas instâncias de atuação da comunidade escolar;
IX - adoção de medidas de apoio que favoreçam o desenvolvimento dos aspectos linguísticos, culturais, vocacionais e profissionais, levando-se em conta o talento, a criatividade, as habilidades e os interesses do estudante com deficiência;
X - adoção de práticas pedagógicas inclusivas pelos programas de formação inicial e continuada de professores e oferta de formação continuada para o atendimento educacional especializado;
XI - formação e disponibilização de professores para o atendimento educacional especializado, de tradutores e intérpretes da Libras, de guias intérpretes e de profissionais de apoio;
XII - oferta de ensino da Libras, do Sistema Braille e de uso de recursos de tecnologia assistiva, de forma a ampliar habilidades funcionais dos estudantes, promovendo sua autonomia e participação;
XIII - acesso à educação superior e à educação profissional e tecnológica em igualdade de oportunidades e condições com as demais pessoas;
XIV - inclusão em conteúdos curriculares, em cursos de nível superior e de educação profissional técnica e tecnológica, de temas relacionados à pessoa com deficiência nos respectivos campos de conhecimento;
XV - acesso da pessoa com deficiência, em igualdade de condições, a jogos e a atividades recreativas, esportivas e de lazer, no sistema escolar;
XVI - acessibilidade para todos os estudantes, trabalhadores da educação e demais integrantes da comunidade escolar às edificações, aos ambientes e às atividades concernentes a todas as modalidades, etapas e níveis de ensino;
XVII - oferta de profissionais de apoio escolar;
XVIII - articulação intersetorial na implementação de políticas públicas.
§ 1o Às instituições privadas, de qualquer nível e modalidade de ensino, aplica-se obrigatoriamente o disposto nos incisos I, II, III, V, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI, XVII e XVIII do caput deste artigo, sendo vedada a cobrança de valores adicionais de qualquer natureza em suas mensalidades, anuidades e matrículas no cumprimento dessas determinações.”
Ainda buscando reavivar a memória, interessante recordar as exigências relativas à aplicação dos processos seletivos, como exigido pelo artigo 30 da norma prefalada:
“Art. 30. Nos processos seletivos para ingresso e permanência nos cursos oferecidos pelas instituições de ensino superior e de educação profissional e tecnológica, públicas e privadas, devem ser adotadas as seguintes medidas:
I - atendimento preferencial à pessoa com deficiência nas dependências das Instituições de Ensino Superior (IES) e nos serviços;
II - disponibilização de formulário de inscrição de exames com campos específicos para que o candidato com deficiência informe os recursos de acessibilidade e de tecnologia assistiva necessários para sua participação;
III - disponibilização de provas em formatos acessíveis para atendimento às necessidades específicas do candidato com deficiência;
IV - disponibilização de recursos de acessibilidade e de tecnologia assistiva adequados, previamente solicitados e escolhidos pelo candidato com deficiência;
V - dilação de tempo, conforme demanda apresentada pelo candidato com deficiência, tanto na realização de exame para seleção quanto nas atividades acadêmicas, mediante prévia solicitação e comprovação da necessidade;
VI - adoção de critérios de avaliação das provas escritas, discursivas ou de redação que considerem a singularidade linguística da pessoa com deficiência, no domínio da modalidade escrita da língua portuguesa;
VII - tradução completa do edital e de suas retificações em Libras.”
Evidente, portanto, a premissa de que todas as instituições de ensino superior devem estar adequadamente preparadas para prestar o atendimento educacional especializado, em conformidade com as necessidades apresentadas por seus estudantes e, registre-se, sem poder cobrar individualmente dos interessados pelos serviços especializados prestados, como expressamente contido no § 1º do acima transcrito artigo 28 da Lei n°. 13.146/2015, constituindo tal cobrança crime, nos termos do inciso I do artigo 8º da Lei n°. 7.853/1989:
“Art. 8o Constitui crime punível com reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa:
I - recusar, cobrar valores adicionais, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, em razão de sua deficiência;”.
A questão decorrente desse contexto normativo é acerca da limitação da obrigação de atendimento educacional especializado, assim como da ocasião de sua disponibilização.
Surge evidente a conclusão de que a necessidade de atendimento educacional especializado, sobretudo na educação superior, não é algo que, como regra geral, se deva presumir, dependendo sua disponibilização, essencialmente, de provocação do estudante interessado ou de seu representante legal, nos casos de incapacidade.
Além da necessidade de solicitação expressa por parte do estudante interessado, é impositivo que o requerimento seja devidamente instruído com laudo de profissional especializado ou equipe multidisciplinar fundamentando e individualizando a necessidade educacional especial, assim como o atendimento especializado adequado para a situação específica.
Em síntese, a necessidade e o alcance do atendimento educacional especializado não se presumem e nem são delimitados pelo interessado ou sua família, como usualmente temos visto acontecer, devendo ser objeto de manifestação expressa de profissional especializado ou equipe multidisciplinar.
Outro aspecto essencial relativo à questão em tela diz respeito à ocasião de solicitação do atendimento educacional especializado, que não pode, evidentemente, ser apresentada depois de eventual insucesso acadêmico, com pretensão de aplicação retroativa para reverter resultados insatisfatórios em procedimentos avaliativos.
Com efeito, não se pode admitir que o aluno, jamais tendo manifestado qualquer necessidade de atendimento educacional especializado, depois de uma vida acadêmica regular, busque, em virtude de reprovação em uma ou mais disciplinas, desconstituir este resultado sob a alegação de falta de atendimento especializado e com a solicitação retroativa de adoção de soluções de flexibilidade na avaliação do desempenho acadêmico.
Neste sentido, extremamente oportuno registrar a decisão abaixo transcrita, oriunda do Tribunal Regional Federal da 1º Região (TRF1), em situação como a ora apresentada:
“EMENTA
ADMINISTRATIVO. ENSINO SUPERIOR. DISCENTE PORTADOR DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE (TDAH) E, AINDA, BIPOLARIDADE. REPROVAÇÃO EM DISCIPLINAS DO CURSO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS. DISPOSIÇÃO DA UNIVERSIDADE EM OFERECER PROCESSO ESPECIAL DE APRENDIZAGEM NO SEMESTRE SEGUINTE. PRETENSÃO DO ALUNO DE REALIZAR AVALIAÇÃO INDIVIDUALIZADA APÓS ENCERRAMENTO DO ANO LETIVO. IMPOSSIBILIDADE. PEDIDO IMPROCEDENTE. SENTENÇA MANTIDA.
1. Apelação interposta de sentença que, em ação ordinária, julgou improcedente o pedido por meio do qual o autor objetiva que Universidade Federal de Alfenas - UNIFAL/MG lhe garanta o direito de realizar avaliações individualizadas das disciplinas de Estatística e Matemática, nas quais foi reprovado, sob o argumento de que teria sido diagnosticado como portador de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e bipolaridade.
2. O juízo a quo assim decidiu, negando o pedido, por entender que, embora existam indícios de que o autor é portador das patologias mencionadas, é descabida a aplicação de provas de forma individualizada, pois o pedido na via administrativa foi feito após o encerramento do ano letivo e depois de realizadas as provas pelo procedimento regular, com a reprovação do apelante nas matérias que pleiteia reavaliação especial.
3. A sentença não merece reparos, uma vez que é vedado ao Poder Judiciário se substituir à banca examinadora de concurso, a fim de aferir o acerto ou o erro dos critérios adotados para formulação de questões, correção de provas ou atribuição de notas, exceto quando evidenciada a ocorrência de alguma ilegalidade nos atos praticados.
4. O autor não apontou nenhuma ilegalidade na realização das provas das disciplinas de Estatística e Matemática, limitando-se a sustentar seu direito a avaliações individualizadas em razão de ter sido diagnosticado como portador de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e bipolaridade.
5. A Lei 9.394/1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, em seu artigo 59, dispõe que os educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação receberão atendimento especial de acordo com as suas necessidades, todavia, o atendimento especial para aqueles que não conseguirem atingir o nível exigido se refere, expressamente, aos alunos do ensino fundamental.
6. O estudante é concluinte do curso superior de Ciências Biológicas e afirma que precisa colar grau para ingressar no programa de mestrado em Ecologia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA para o qual foi aprovado, ou seja, o autor cursou a graduação regularmente até então e, ao ser reprovado nas disciplinas de Estatística e Matemática requereu atendimento especial ante as patologias que alega ser portador.
7. Importante observar que a faculdade apelada decidiu que o aluno deve cursar novamente as disciplinas em que não obteve o devido rendimento e, por meio do Núcleo de Acessibilidade e Inclusão da faculdade, receberá acompanhamento especial com professores responsáveis em formato diferenciado de ensino. Nota-se que a instituição de ensino não se recusou, a partir do requerimento administrativo do autor, a oferecer processo especial de aprendizagem.
8. Observo que a insatisfação do recorrente se deve ao fato de não ter obtido aprovação, não havendo que falar em erro ou ilegalidade por parte da instituição de ensino.
9. É pacífica a jurisprudência no sentido de que não cabe ao Poder Judiciário examinar os parâmetros de formulação e avaliação de provas tampouco das notas atribuídas aos candidatos, ficando sua competência limitada ao exame da legalidade do procedimento administrativo.
10. Apelação a que se nega provimento.” (TRF da 1ª Região, APC n° 0000791-95.2015.4.01.3809/MG, 5ª Turma, Rel. Des. Federal Néviton Guedes, v.u., e-DJTRF da 1ª Região, Caderno Judicial, 27.3.2017, pág. 873).
Desse modo, se por um lado é evidente que as instituições de ensino superior estão obrigadas a disponibilizar atendimento educacional especializado adequado às necessidades de seus estudantes, por outro é também cristalina a premissa de que esta necessidade não se presume, devendo ser expressamente informada pelo interessado ou seu representante, com as devidas fundamentação e delimitação elaboradas por profissional especializado ou equipe multidisciplinar.
Resta também isenta de dúvidas a conclusão de que a necessidade de atendimento educacional especializado jamais formalizada pelo estudante não pode ser utilizada como ferramenta de uso retroativo para eliminar eventual insucesso em atividades acadêmicas ou para reverter, a posteriori, reprovação em disciplinas ou resultados insatisfatórios em procedimentos avaliativos.
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