AS INQUIETAÇÕES DECORRENTES DAS ALTERAÇÕES IMPOSTAS NA FORMAÇÃO MÉDICA PELA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 621/2013
Na coluna da semana passada, abordamos o atingimento do princípio constitucional da livre iniciativa com a sistemática para autorização de funcionamento de novos cursos de Medicina imposta pela Medida Provisória nº 621/2013, que traz indisfarçável caráter de concessão ou permissão ao processo de autorização desses cursos, condicionando a obtenção desta ao prévio chamamento público.
Se a modificação na sistemática já causa graves inquietações, a análise nas alterações impostas para a formação médica no Brasil não traz mais tranquilidade.
Com efeito, a alteração imposta, sem qualquer debate nos meios acadêmico e profissional, prevê a obrigatoriedade de implantação de um segundo ciclo no processo formativo, a ser realizado sob a forma de “treinamento em serviço, exclusivamente na atenção básica à saúde e em urgência e emergência no âmbito do SUS”, estipulando ainda que este novo ciclo deverá ter “duração mínima de dois anos”, como estabelecido pelo inciso II do artigo 4º da prefalada Medida Provisória, nos seguintes termos:
“Artigo 4º. Para os ingressantes nos cursos de medicina a partir de 1º de janeiro de 2015, a formação do médico abrangerá dois ciclos distintos e complementares entre si, correspondendo:
I – o primeiro ciclo, à observância das diretrizes curriculares nacionais, com o cumprimento da carga horária não inferior a sete mil e duzentas horas; e
II – o segundo ciclo, a treinamento em serviço, exclusivamente na atenção básica à saúde e em urgência e emergência no âmbito do SUS, com duração mínima de dois anos, conforme regulamentação do Conselho Nacional de Educação – CNE, homologada pelo Ministro de Estado da Educação.”
A alteração imposta, na prática, transforma os atuais cursos de Medicina no primeiro ciclo da formação médica, impondo, ainda, aos estudantes o cumprimento de um segundo ciclo, de prestação compulsória de serviços ao SUS, na atenção básica à saúde ou em urgência e emergência.
Essa imposição de prestação de serviços compulsórios ao SUS esbarra na cláusula constitucional que assegura os direitos e garantias individuais, de aplicação imediata e insuscetíveis de alteração pelo legislador ordinário, daí, justamente, serem conhecidas como cláusulas pétreas.
Com efeito, o artigo 5º da Constituição Federal, ao tratar dos direitos e garantias individuais, assegurou, em seu inciso XII, o livre exercício de qualquer trabalho, nos seguintes termos:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
...
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;”.
Impor a qualquer cidadão a prestação de serviços a determinado patrão, ainda que seja o poder público e mesmo que se pretenda descaracterizar a relação de emprego no caso sob análise, é violar o direito à liberdade ao exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão.
Não param por aqui, contudo, as inquietações decorrentes das alterações impostas arbitrariamente na formação médica.
Com efeito, surge outra questão de importância fulcral, sobretudo se considerada a oferta de cursos de Medicina por instituições privadas, qual seja, a obrigatoriedade de supervisão acadêmica dos alunos durante a realização do segundo ciclo de formação médica e o custeio desse serviço imposto às instituições de ensino superior.
As entrevistas concedidas pelos idealizadores destas alterações afirmam que o aluno não terá que arcar com nenhum custo com anuidades ou semestralidades para as instituições de ensino privada durante a realização do segundo ciclo de formação médica, mas, além de não existir menção na Medida Provisória nº 621/2013 a este suposto benefício, há que se registrar, ainda, que, existindo expressa imposição de “supervisão acadêmica a cargo da instituição de educação superior à qual o estudante de medicina esteja vinculado”, existe um custo que deverá, evidentemente, ser suportado pelo usuário deste serviço de supervisão.
Outra questão que gera inquietação é a constatação evidente de que não são apenas médicos os responsáveis pela atenção básica à saúde e pelo atendimento de urgência e emergência no SUS.
Na realidade, o atendimento efetivo demanda a existência de equipes multidisciplinares, com participação ativa e fundamental de enfermeiros, nutricionistas, odontólogos, farmacêuticos e biomédicos, para citar os mais evidentes.
Serão esses os próximos profissionais a serem compelidos a prestar serviço compulsoriamente ao SUS como parte de sua formação acadêmica?
As instalações do SUS também precisam, urgentemente, de reformas e ampliações. A solução, nessa ótica, seria impor, também aos estudantes de Engenharia, o ciclo obrigatório de serviços ao SUS.
A gestão da saúde pública também é caótica. Será que, em um próximo momento, o Estado vai querer impor, também, aos alunos de Administração o ciclo obrigatório de serviços no âmbito do SUS?
Como o espaço desta coluna é pequeno, apresento, para finalizar o texto e despertar a necessidade de debate, a questão do ENADE.
Quem serão os concluintes dos cursos de Medicina para fins de realização do ENADE? Os concluintes do primeiro ciclo ou os concluintes do segundo ciclo?
Estas questões devem ser levadas ao debate que, espero, será iniciado para tratar, ainda que tardiamente, das alterações impostas à formação médica no Brasil pela Medida Provisória nº 621/2103, uma vez que debate de tal magnitude, envolvendo a sociedade civil e as comunidades acadêmica e profissional, deveria ter sido o ponto inicial do processo, ao contrário do que está sendo coercitivamente empurrado de forma autoritária neste momento.
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Qualquer crítica, dúvida ou correções, por favor, entre em contato com a Coluna Educação Superior Comentada, por Gustavo Fagundes, que também está à disposição para sugestão de temas a serem tratados nas próximas edições.