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Bacharéis obsoletos em 10 anos

04/06/2017 | Por: Correio Braziliense | 3671
Rafael Cavalli/CBESP Congresso em Gramado reuniu especialistas e interessados em educação para discutir o futuro do ensino superior

O ritmo das mudanças trazidas pela tecnologia é tão acelerado que as universidades não têm conseguido acompanhar: o modelo de graduação atual deixará bacharéis obsoletos em menos de 10 anos. Com  formato ultrapassado, não é à toa que um terço dos alunos do ensino médio e 15% dos universitários duvidem do retorno que investir numa graduação pode oferecer
 
“O século 21 transforma, constantemente e em ritmo acelerado, os cenários em que vivemos. A universidade faz parte dessa mudança e precisa se alinhar às necessidades dos alunos e da sociedade de preparar profissionais não só para o país, mas para o mundo”, afirma Ana Elena Schalk, doutora em ciências da educação pela Universidade de Sevilha. A chilena esteve presente no 10º Congresso Brasileiro de Educação Superior Particular (CBESP) e, com outros profissionais do ramo, debateu demandas atuais da educação. O evento ocorreu entre 25 e 27 de maio em Gramado (RS). Cerca de 450 pessoas, entre reitores, professores e outros interessados, participaram presencialmente e 2 mil assistiram à programação pela internet. O tema da edição foi inovação e sustentabilidade na educação superior no século 21. Uma das conclusões de Ana Elena Schalk, que participa do Programa de Formação de Diretores da Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI), sobre o assunto é a de que o modelo de graduação que predomina na América Latina deixará bacharéis obsoletos em menos de 10 anos.

“O formato atual é do século 18, com estrutura ultrapassada. Além disso, estamos oferecendo cursos que estarão extintos daqui a alguns anos e não temos nos preparado para as novas profissões nem atualizado as existentes”, pontua. A constatação da pesquisadora pode se refletir nas dúvidas de estudantes brasileiros com relação à capacidade das instituições de ensino superior (IES) de preparar para o mercado de trabalho. Estudo promovido pelo ambiente virtual de aprendizagem Canvas, da empresa de tecnologia de software Instructure, constatou que 30% dos alunos do ensino médio não acreditam que o curso superior trará retorno compensatório. Outros 44% não têm opinião sobre o assunto. O levantamento sugere duas razões principais pelas quais os jovens não estão convencidos de que o terceiro grau compensa: a primeira é que 45% dos alunos buscam um currículo com conteúdos relevantes para o mercado de trabalho e 30% acreditam que terão que complementar a graduação com outros cursos para se sentirem prontos para a vida profissional.
 
Recursos tecnológicos

Outra razão para o desânimo é a percepção de secundaristas de que as faculdades não oferecem as tecnologias necessárias para o ensino moderno. Além disso, há uma sensação de que elas não entregam adequadamente o que se espera. Anna Clara Magalhães Pequeno, 17 anos, aluna do 3º ano do Centro Integrado de Ensino Médio (Cemi) do Gama, não deseja fazer faculdade logo após deixar a escola. “Quero trabalhar e ter independência financeira logo. Eu não acho que nenhum dos cursos oferecidos vai me ajudar muito”,diz. “A maioria dos meus amigos está correndo atrás de professores, cursinho, Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), mas eu estou deixando a vida me levar”, completa. André Victor Batista, 17, estuda na mesma escola e ainda está em dúvida sobre o ensino superior. “Fazer faculdade para mim é indiferente. Apesar da pressão dos pais, dos professores e do próprio colégio, no momento não tenho um curso na minha cabeça, não tenho ideia do que eu quero fazer”, conta.

Já Maria Eduarda da Costa Kyt, 17, aluna do 3º ano do Colégio Pódion, não titubeia sobre o futuro: quer cursar economia. “É a ordem da vida: escola e, depois, faculdade. Acredito que o curso superior tem retorno, sim. Especialização é muito importante. A expectativa é que o curso me prepare para o mercado de trabalho”, revela. No entanto, ela não está certa de que a graduação acompanha as tendências tecnológicas para atender essa expectativa. “Tenho certo medo de que o curso seja muito focado só em história e teoria da economia, não sei se serão ensinados parâmetros atuais, com debates, dinamismo. É uma preocupação que tenho.” As dúvidas da adolescente com relação à empregabilidade não é à toa. Para Thomas Jepsen, vice-presidente internacional da plataforma de inserção profissional de estudantes Symplicyt, “esse é um dos maiores desafios — se não o maior — das universidades em todo o mundo”.

Ana Elena Schalk concorda com a gravidade da questão. “Para superar esse problema, a instituição precisa estar ligada à realidade ao mesmo tempo em que estuda os avanços do setor produtivo, da tecnologia e da economia que abrem lugar e requerem novas funções e profissionais para este mundo”, observa Ana Elena Schalk. Bacharel em negócios executivos com 20 anos de experiência em tecnologia educacional, Thomas Jepsen acredita que a solução para aumentar o grau de empregabilidade obtido após a formatura depende de diversos fatores. “Uma abordagem de sucesso precisa ser definida e coordenada por todos os envolvidos — educadores, gestores e outras equipes — e deve ter o suporte da tecnologia e integração de sistemas, como estruturas computadorizadas de gestão de carreira que acompanhem o aluno desde o ingresso na instituição”, sugere.

Fator financeiro

Thomas Jepsen, vice-presidente internacional da plataforma de empregabilidade de estudantes Symplicyt, afirma que a incerteza de alunos do ensino médio com relação ao retorno que o ensino superior pode trazer é causada pelas mudanças nas condições econômicas do país, especialmente porque elas refletem na empregabilidade. Outros fatores para isso são o aumento do custo da educação superior e das dívidas estudantis. “O Brasil passa por uma das maiores crises da história, apresentando índice de desemprego altíssimo, ainda mais entre jovens. O financiamento estudantil escasso torna o emprego mais importante visto que, em muitos casos, é preciso ter um trabalho para investir em educação. As IES precisam potencializar as chances de empregabilidade dos alunos”, defende.
 
A afirmação é condizente com a pesquisa Processo decisório para o acesso à educação superior, feita pela Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES). “Foram entrevistados 1,2 mil alunos e concluintes do ensino médio e pais, que afirmaram que a motivação financeira é a maior barreira para não ingressar no ensino superior. Apenas 62% revelam desejo de fazer faculdade logo após sair da escola e 70% confirmam que não se graduarão por não terem recursos financeiros”, declara José Janguiê Bezerra Diniz, diretor presidente da ABMES e presidente do Fórum das Entidades Representativas do Ensino Superior Particular. “Dessa forma, o Brasil está longe de atingir a meta do Plano Nacional de Educação que estabelece que o país alcance, até 2024, pelo menos 33% da população matriculada no ensino superior. Até o momento, o número é de apenas 17%”, afirma.

Atrair e reter

A tecnologia pode ser ferramenta para tratar de outra barreira que as IES enfrentam: a desistência dos alunos. Segundo dados da empresa de sistemas de gestão TOTVS, a taxa média de evasão dos universitários brasileiros é de 63,1%. O grupo com mais desistentes tem mais de 24 anos. O levantamento constatou ainda que 47% dos jovens de 18 a 24 anos sonham com um diploma de ensino superior. Os motivos para o abandono são diversos: inadaptação ao curso, dificuldade com o turno das aulas, desnivelamento, desafeto com professores, problemas de pagamento ou financiamento, perda de emprego e localização do câmpus. A expectativa é que programas de inteligência artificial sejam usados para prevenir evasões no futuro. “Assim, é possível descobrir padrões de comportamento analisando grupos de alunos que evadiram ou se formaram”, diz Marcelo Cosentino, líder dos segmentos de serviços da TOTVS. Dessa forma, daria para identificar tendências, classificar alunos em grupos de riscos, antecipar e direcionar ações de retenção.

Graduação atual

A pesquisa da Canvas também revelou o desejo dos entrevistados de ter um ensino customizado, com integração dos formatos presencial e a distância. O interesse acompanha a tendência global de transformação de estruturas tradicionais. De acordo com o diretor de Inovação e Internacionalização da Anima Educação, Gustavo Hoffman, há três características centrais nas mudanças que devem ocorrer no ensino superior. A primeira é a adaptação das aulas, que deixam de ser meramente expositivas, a fim de priorizar o aprendizado no ritmo do aluno e o foco em uma prática monitorada pelo professor. “O estudante aprenderá mais se estudar em casa, a partir de um material completo, e for à faculdade somente para debater e praticar”, diz o fisioterapeuta com MBA em gestão de instituições educacionais. O ensino híbrido é o segundo elemento de transformação, mesclando, de maneira equilibrada, flexível e inteligente, o ensino presencial e o on-line.

“Ainda separamos muito e fazemos distinção. É preciso investir em um modelo que seja suportado por tecnologias e dê autonomia ao universitário”, afirma. O terceiro fator de mudança é ter universidades com currículos em que o conhecimento seja oferecido para solucionar problemas atuais (seria o formato “just in time”). “No modelo de agora (‘just in case’), são oferecidas matérias que não fazem sentido, então o aluno esquece o que aprendeu dali um ano”, diz. O papel da universidade é preparar profissionais para as mudanças que virão, mas sem deixar de lado um elemento importante: a humanidade. É o que aponta o consultor e pesquisador de inteligência artificial da Google Moacyr Galo. “De 70% a 80% dos empregos podem ser profundamente alterados nos próximos 20 anos. Não quer dizer que as profissões serão extintas, mas elas serão atualizadas. Trabalhos de rotina, como checar contratos jurídicos, serão feitos por máquinas, o que reduzirá a quantidade de pessoas em um escritório, assim prevalecerão especialistas na área”, afirma.

Além de conhecimento específico, competências pessoais também ganharão cada vez mais destaque. “Com a inovação, as habilidades individuais serão supervalorizadas. Máquinas são muito boas em simular, mas não em ser. Então, é preciso formar profissionais criativos, com imaginação, intuição, emoção e ética”, diz. As alterações afetarão inclusive a carreira de educador. “As universidades de Stanford e de Washington desenvolveram um sistema de tutoria baseado em inteligência artificial, que mapeia a eficiência da grade curricular e as possíveis mudanças a serem feitas. Stanford prevê que, nos próximos 15 anos, o uso das tecnologias para auxiliar professores crescerá significativamente, mas não substituirá completamente os humanos ensinando nas salas de aula”, conta Moacyr Galo.

Para chegar lá

Gustavo Hoffman, da Anima Educação, pondera que é possível modernizar e adaptar as instituições de ensino superior às demandas atuais e futuras. “Temos tecnologia para fazer isso, temos o modelo ideal para a mudança (ensino híbrido), o que nos falta é iniciativa para fazer e espero que daqui a uns anos isto não falte mais”, considera. Para Fábio Reis, diretor de Inovação e Redes do Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior (Semesp), as mudanças devem ser feitas com redes de cooperação, a partir de alianças integradas com outras instituições. “Trazer a universidade para o século 21 depende da boa governança do sistema. A transformação deve nascer de uma política de Estado e não de governo”, declara o especialista em gestão universitária pela Universidade de Montreal e Toronto.
 
Experiências universitárias 

Conheça pessoas que começaram ou terminaram uma graduação e a opinião delas sobre a capacidade de a universidade capacitar para o mercado de trabalho:

Faltou atualização

Carlos Menezes, 22 anos, começou a estudar ciência da computação na Universidade de Brasília (UnB) em 2013. Depois de seis semestres de estudo e experiências universitárias, como o Movimento Empresa Júnior e estágios, ele tomou a decisão de abandonar a graduação. “Entendi que o que eu via no curso não me preparava para o mercado. A UnB estava mais atrás. Percebi que o tempo gasto no estágio era muito mais produtivo em aprendizado do que o passado na universidade”, relata. Na época, ele consultou profissionais e concluiu que o ensino superior não era essencial para a carreira. “Todo mundo dizia para eu me formar primeiro, pois, mesmo sem precisar do diploma, seria bom ter essa segurança. Tomei a decisão por conta própria. O fato de não ter interesse no serviço público foi outro motivo”, diz. Depois disso, Carlos foi efetivado na startup onde atuava como estagiário.

Tempos depois, fundou o próprio negócio: a Ribon, startup que desenvolve um aplicativo para doações geradas a partir de propagandas recebidas no celular. O jovem garante não se arrepender da escolha, pois acredita que ela permitiu acelerar a carreira. “Se continuasse no curso, eu teria que entrar como desenvolvedor júnior depois de formado e aprender as coisas do zero numa empresa.” Para ele, um fator que precisa ser melhorado no sistema de ensino superior brasileiro é adotar uma abordagem que acompanhe as tendências sociais.

“No primeiro semestre, fiz história da computação e os slides paravam de falar da trajetória da área em 1980. Deve haver um esforço para atualizar e entender o fluxo de mercado, onde as coisas andam muito mais rápido do que a academia”, opina. No entanto, Carlos pondera que largar o curso pode não ser a melhor decisão para todos: depende da área e dos objetivos da pessoa. “A universidade existe para certificar um conhecimento, mas se ela não passa o que é cobrado pelo mercado, não vale a pena”, conclui.
 
Mudança de carreira

“Eu acredito que a faculdade deveria dividir mais a grade horária com a parte prática. Oferecer aula de campo desde o começo para ver se o aluno se identifica e ver se é isso mesmo que quer”, opina Michael Marques, 29. Graduado em turismo pelo Centro Universitário Iesb, ele nunca trabalhou na área de formação e ganha a vida como designer e pigmentador de sobrancelhas há cinco anos. Ele tem um curso profissionalizante na área e abriu o próprio negócio, chamado Olhar Perfeito NG, há três meses no Novo Gama (GO). O profissional da beleza atribui a mudança de ramo ao fato de não ter se identificado com a carreira da graduação.

“Atuei só na época do estágio, mas, quando eu me vi dentro de um escritório, percebi que não era o que eu queria para a minha vida”, explica. Após a formatura, Michael começou a trabalhar em uma loja de perfumes, cosméticos e maquiagens, onde se interessou por sobrancelhas e decidiu investir profissionalmente no novo campo. O jovem está satisfeito com o nicho de mercado em que atua, mas não se arrepende de ter feito faculdade. “O curso superior é bom, amplia horizontes, mas não traz garantia de sucesso profissional”, diz. Para ele, o ideal é aliar o ensino superior a formações complementares. Michael deixa uma orientação: “você tem que se dedicar e fazer o que gosta”.
 
Capacitação não apenas profissional

“A faculdade me criou como ser social, uma pessoa que convive em sociedade, que entende seu papel e seus deveres”, relata Tatyane Ribeiro, 27 anos, consultora numa agência de intercâmbios. Graduada em relações internacionais pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), ela fez parte da primeira turma do curso na instituição. A convivência no ambiente universitário possibilitou uma formação além da estritamente necessária para o mercado de trabalho. Entretanto, ela também aponta lacunas que impossibilitaram uma capacitação menos teórica. “O método foi muito tradicional: com livros, xerox, debates”, lembra. Ela acredita que o uso de outros recursos poderia ter ajudado a desenvolver um perfil mais completo.

“Há universidades estrangeiras onde os cursos de direito e psicologia, por exemplo, têm softwares que simulam júri ou atendimentos, para preparar melhor o aluno. Hoje em dia existem jogos que simulam conflitos mundiais e o moderador propõe soluções”, compara. Como passou por estágios que não eram diretamente relacionados à área de formação, pela falta de oportunidades na cidade, no Mato Grosso do Sul, Tatyane decidiu fazer um intercâmbio: ela atuou numa ONG de educação em Giza, no Egito. “Na ONG, eu ajudei com pesquisas, escrevi projetos de financiamento, fiz apresentações. Toda a base para isso foi a faculdade”, conta. “No meu trabalho, aplico o conhecimento do curso ao analisar um processo de visto, por exemplo. Sei a base teórica, conheço acordos... Por isso, consigo passar mais segurança ao cliente, porque não apresento conteúdos superficiais”, explica. 
 
Falta aproximação com o mercado

Luís Felipe Vilela, 23, estuda engenharia de redes de comunicação na UnB desde 2011. Ele participou de projetos de pesquisa e fez estágios até começar a trabalhar com suporte de redes no centro de monitoramento da Telebras. Depois de seis meses no emprego, decidiu pedir demissão para poder se dedicar mais à universidade. “Para se dar bem profissionalmente, é preciso ter mais tempo para os estudos. Percebi que, para continuar a competir no mercado, precisava me esforçar mais para concluir a faculdade. As duas coisas andam juntas”, diz. O jovem considera a metodologia muito ampla, pois tange superficialmente diversos assuntos. Na opinião dele, porém, os ensinamentos seriam mais eficazes se houvesse mais estudos aprofundados em ramos específicos.

“A gente chega ao mercado com um leque gigantesco de conteúdos, mas sem especialização e isso ninguém quer comprar. Acredito que a UnB poderia ser feito como o MIT (Massachusetts Institute of Technology), nos Estados Unidos, por exemplo, em que os dois anos iniciais são mais básicos e os outros mais específicos”, sugere. Outro ponto a ser melhorado é a aproximação entre academia e empregadores. “Para o aluno, é complicado juntar isso”, pondera. “Para complementar competências, busquei habilidades fora em vez de esperar a faculdade me mostrar”, explica. O objetivo de Luís Felipe, agora, é se formar e fazer uma pós-graduação. “Quem entra no mercado com uma especialização tem um diferencial de verdade.” Ele acredita que o ensino superior é uma etapa fundamental para formar um bom profissional. “A graduação traz amadurecimento pessoal e base técnica”, acredita.


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