A trajetória de um estudante é bastante previsível: ensino fundamental, ensino médio e, em seguida, faculdade. Certo? Nem sempre! Nos Estados Unidos, em alguns países da Europa e na Austrália, por exemplo, é muito comum que o jovem, ao sair do ensino médio, dê uma pausa nos estudos formais para viver alguma experiência de desenvolvimento pessoal, como um intercâmbio, um curso extracurricular, trabalho voluntário ou até um emprego temporário. É o chamado “gap year”, que em tradução literal seria ano de intervalo, mas costuma ser mais traduzido como ano sabático.
No Brasil, a prática não é tão comum, principalmente porque a pressão para o jovem encadear a faculdade com o ensino médio é muito grande. Mesmo assim, Gabriela Catuyama decidiu adiar o ingresso no ensino superior por um ano para se dedicar à sua religião, participando do Curso de Liderança e Discipulado oferecido pelo Seminário Palavra da Vida. “Deus me deu uma vida e o mínimo que eu posso dar é um ano para servir a ele, conhecer mais da Palavra e aprender como servir melhor a ele”, explica a estudante, que mora em Brasília, mas mudou-se para Atibaia, em São Paulo, para participar do curso em 2013. Atualmente, ela cursa Ciências Sociais na Universidade de Brasília (UnB).
No seminário, além dos estudos bíblicos, os jovens realizam atividades para manutenção do espaço da escola, como limpeza e organização, e trabalhos voluntários, como aulas para crianças e a realização de melhorias em bairros da cidade. “Influenciou muito na minha vida porque aprendi a aplicar na prática o que a Bíblia diz. E me ajudou a entender que as outras pessoas também têm necessidades e que as minhas necessidades não são maiores nem melhores que a dos outros”, lembra Gabriela.
O autoconhecimento é um dos benefícios apontados por grande parte dos jovens que optam pelo ano sabático, de acordo com uma pesquisa realizada pela American Gap Association – instituição americana sem fins lucrativos que visa a promoção dessa prática no país. O estudo revelou que os jovens americanos definem como principais benefícios o desenvolvimento pessoal, o aumento da maturidade, a interação com pessoas de diferentes culturas e o desenvolvimento de habilidades comunicacionais.
Também foram citados benefícios mais relacionados ao desempenho profissional, como uma clareza maior sobre os rumos da carreira. De acordo com o estudo, 81% dos participantes recomendariam a prática para outras pessoas. A associação destaca ainda que 90% dos estudantes que aderem ao intervalo retornam para os estudos dentro de um ano.
Vaga garantida e gap year mais tranquilo
Os estudantes americanos muitas vezes contam com o apoio da própria universidade para o ano sabático. Muitas instituições de ensino superior têm políticas de adiamento do início do curso para estudantes que foram admitidos mas desejam ingressar posteriormente. É o caso de Harvard, Yale e do MIT, entre muitas outras, que garantem a vaga do novo aluno durante o período do gap year. Segundo a universidade de Harvard, todos os anos, entre 80 e 110 calouros pedem adiamento de matrícula na instituição.
No Brasil, a maioria das universidades, principalmente as públicas, exigem que o jovem tenha cursado um semestre para que possa solicitar o trancamento da matrícula. Foi o que fez a estudante de jornalismo Julyana Néris, que desejava sair do ensino médio e participar do Curso de Liderança e Discipulado, o mesmo que Gabriela fez em 2013. Por pressão familiar, entretanto, ela precisou primeiro passar no vestibular e cursar um ano da graduação para, então, trancar a matrícula e participar do seminário, em 2015.
Apesar de já ter iniciado o curso de jornalismo antes de seu ano sabático, Julyana acredita que a experiência foi fundamental para consolidar a escolha pela carreira. “Foi muito bom para mim porque eu tive que ter responsabilidade sobre mim mesma. Eu acho que amadureci muito e foi uma oportunidade boa para saber o que eu queria fazer da minha vida mesmo”, conta.
Durante o seminário, ela pôde desenvolver atividades da área de comunicação e perceber, na prática, com o que se identificava: “Eu fui para lá pensando em desistir do curso e voltei mais tranquila de que era aquilo que eu devia fazer mesmo. Não tem aquela pressão de ter que escolher alguma coisa que vai definir o resto da sua vida. Você vê que o mundo é bem mais amplo do que imagina. Nesse sentido, abriu muito a minha cabeça”, afirma Julyana.
Fernanda Gorsky teve uma experiência diferente. Aprovada em uma das instituições brasileiras que permitem o adiamento do início do curso, ela participou de um intercâmbio de cinco meses assim que concluiu o ensino médio. “Eu sei que o gap year no Brasil não é tão comum, mas eu escolhi porque eu sempre quis sair do colegial e fazer um intercâmbio. Viajar poderia me dar um conhecimento maior de mim e do que eu iria querer fazer para a vida”, explica.
Ela aproveitou o intercâmbio na Inglaterra para estudar inglês e fazer também um curso de design. Quando retornou ao Brasil, pôde iniciar a graduação em relações públicas na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado) sem ter de prestar um novo vestibular. "Isso foi ótimo. Acho que se eu tivesse que voltar para o cursinho seria muito difícil porque já teria esquecido a maioria das coisas", complementa Fernanda.
Intervalo deve ser bem planejado
Apesar de pouco usual no Brasil, adiar o ingresso no ensino superior é visto com bons olhos por especialistas em educação, profissionais que trabalham com orientação vocacional e até pelas instituições de ensino superior, principalmente porque o intervalo entre o ensino médio e o curso universitário pode levar o jovem a uma decisão mais madura em relação a que carreira seguir.
Uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), em parceria com a Educa-Insights, avaliou o perfil dos egressos da educação superior no Brasil entre os anos de 2015 e 2016 e constatou que, entre os alunos concluintes, 75% levaram mais de um ano para iniciar uma graduação. Entre os alunos que estão nos períodos iniciais, essa taxa é um pouco menor, de 63%.
Para a ABMES, o maior percentual entre os alunos concluintes pode ser explicado pela tomada de decisão do curso e instituição de ensino de forma mais madura pelo aluno que levou mais tempo para ingressar – mesmo que a demora não tenha sido planejada.
O mesmo estudo apontou que, de 2010 a 2015, apenas 42% dos ingressantes finalizaram seus cursos. “Vários motivos podem interferir nesse número. Entre eles, o fato de fazerem uma escolha de curso precipitada”, destaca o diretor executivo da ABMES, Sólon Caldas.
Para Remi Castioni, professor da Universidade de Brasília e doutor em educação e formação profissional, o ingresso precoce dos jovens no ensino superior de fato pode contribuir para a desistência do aluno. “Às vezes, por pressão, eles escolhem qualquer coisa e isso ocasiona um abandono do curso. Nós temos uma alta evasão no ensino superior, o que acaba tirando a vaga de quem está querendo estudar. Deveríamos estimular os jovens a retardarem o ingresso na universidade”.
Remi ainda pontua que o sistema de seleção utilizado no Brasil colabora para essa situação. “Esse formato de ingresso na universidade é do século 19. Hoje, quando as pessoas se formam em uma área do conhecimento, vão desenvolver várias profissões ao longo da vida. Nós deveríamos ter um ingresso mais aberto na universidade, por grandes áreas de conhecimento, e depois o aluno poderia decidir em qual quer se especializar”, destaca o professor.
A psicóloga Maísa Roberta, especialista em avaliação psicológica e orientação vocacional, concorda que o intervalo proposto pelo ano sabático pode trazer benefícios na escolha da carreira que o jovem pretende seguir. “Hoje não se trabalha a escolha profissional desde cedo com o jovem. A vida inteira, os pais fizeram escolhas por eles e, de repente, eles têm que fazer uma escolha para a vida. Essa parada pode ser benéfica porque pode diminuir a ansiedade do jovem”, reflete Maísa.
Quem viveu essa experiência defende que o gap year seja mais incentivado no Brasil. “Eu recomendaria para qualquer um. As pessoas podem entrar no curso com uma definição mais clara do que elas querem para a vida, de como elas são, de como que elas gostam de agir e do que elas gostam nelas mesmas”, conclui Fernanda.