O sonho do diploma universitário para parte das famílias brasileiras virou pesadelo. Dívidas de quase R$ 100 mil, cartão bloqueado, parentes com nome sujo e problemas psicológicos fazem parte da rotina dos jovens que se formaram na faculdade com ajuda do Fies, do governo federal, mas hoje sofrem para pagar débitos e juros. Pelos cálculos do governo, há cerca de 1,2 milhão de brasileiros que entraram no programa até o 2.º semestre de 2017 e estão com dívida atrasada há mais de 90 dias – grande parte prejudicada pelo desemprego e pela pandemia.
O programa de financiamento estudantil teve ápice em 2014. Foi apresentado como opção para ampliar o acesso de jovens de baixa renda ao ensino superior, mas, enquanto o orçamento do Fies inchava, o ritmo de aumento de matrículas perdeu força. Com as restrições orçamentárias do governo, o Fies diminui de tamanho desde 2015. Por outro lado, cresce a inadimplência, fatura pendente da época da explosão de contratos.
O governo federal, no fim de dezembro, editou medida provisória (MP) com a promessa de renegociação de dívida, mas a nova regra ainda não é aplicada na prática. Na terça-feira, 1.º, em discurso em rede nacional, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, incluiu o perdão a dívidas do Fies como uma realização do governo federal e uma das “grandes homenagens que o governo do presidente Bolsonaro” presta a estudantes e à educação. A renegociação é prometida para quem firmou contrato até o 2.º semestre de 2017 e tem inadimplência superior a 90 dias. O total de 1,2 milhão corresponde a cerca de metade dos contratos na fase de quitação.
Renata Costa, de 26 anos, sente um misto de gratidão e arrependimento. Ela trocou Pinheiro, no interior do Maranhão, por São Luís para realizar o desejo de estudar Psicologia em 2014. Até conseguiu emprego logo após se formar, quatro anos depois, mas nunca com carteira assinada.
Renata divide a casa com uma amiga e recebe ajuda da mãe. Em 2020, estava sem trabalho e precisou recorrer ao auxílio emergencial. Em março, o contrato entrou na fase de amortização (quitação da dívida). Pelas regras do programa, o estudante recebe financiamento do governo para pagar parte ou toda a mensalidade do curso e depois, devolve esse dinheiro ao governo, com juros abaixo do mercado. “Não paguei nenhuma parcela”, confessa. O saldo devedor, segundo ela, supera R$ 91 mil. “Me sinto inútil, tendo estudado tanto, concluído graduação, especialização, já vou entrar no mestrado e trabalhar sem receber nem salário mínimo. Tenho tido crises de ansiedade.”
Nayara Batista, de 24 anos, fez Cinema e Audiovisual em Belo Horizonte. Quando começou o curso, em 2015, o pai era fiador. Após a morte dele, dois anos depois, o irmão e a cunhada assumiram essa função. Quando a dívida começou a ser cobrada, ela deu conta. “Às vezes abdicando de muita coisa, atrasando aluguel, para não sujar o nome dos meus fiadores”, diz. Mas no meio de 2021 Nayara perdeu o emprego – em que gerenciava mídias sociais – e se juntou a outros 4,1 milhões no Brasil – um em cada quatro na faixa entre 18 e 24 anos não tem trabalho. Pouco depois, já não conseguiu mais pagar parcelas: irmão e cunhada ficaram com o nome sujo.
Para não ficar negativado, o irmão de Nayara saldou as parcelas atrasadas, mas para pagar a próxima fatura a mineira ainda não sabe como fazer e cogita pedir empréstimo a outra irmã. “Isso na esperança de conseguir emprego”, continua. “É um setor (audiovisual) que está parado”, lamenta.
Conforme a medida provisória, contratos com parcelas atrasadas entre 90 e 360 dias, podem ter 12% de desconto sobre a dívida ao pagarem à vista. É possível ainda parcelar em até 150 meses, com isenção de juros e multas. Para aqueles com mais de 360 dias de atraso que estão no Cadastro Único (CadÚnico) ou receberam auxílio emergencial, a anistia vai até 92%. Para os demais com atraso superior a 360 dias, a taxa é de 86,5%.
A advogada Luiza Galvão relata alta na procura de clientes, interessados sobre os novos critérios – mas também ouviu críticas. “Pessoas que fizeram a adesão após o 2.º semestre de 2017 e também as que estão com pagamento em dia que se sentiram lesadas”, diz ela, do escritório L. Galvão Advogados. Para grande parte dos devedores, porém, falta também dinheiro para bancar honorários e acionar a Justiça.
O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão do Ministério da Educação responsável pelo programa, disse que a resolução do conselho gestor do Fies “está em fase final de análise pelas áreas técnicas e, em breve, deverá ser publicada”. O prazo de validade de uma medida provisória é de 120 dias, a contar da publicação. Assim que for regulamentada, acrescenta o FNDE, “haverá ampla divulgação dos prazos para a adesão” e “comparecimento dos estudantes inadimplentes ao agente financeiro”.
O jornalista Lucas Polinário, de 25 anos, é um dos ansiosos para saber as regras. Quando perdeu o emprego, em setembro, ele parou de pagar as parcelas do Fies para dar conta dos gastos básicos, como comida e energia elétrica. Ainda ficou pior: ele contraiu covid-19 e gastou com o tratamento.
Imerso em dívidas, ele já teve o cartão de crédito suspenso e o primeiro salário, quando conseguiu novo emprego, foi bloqueado para pagar dívidas. “Entrei em desespero. E agora, o que vou comer”, relembrou o jovem de Goiânia, sobre sua reação ao ver o saldo no banco. “A alternativa do pobre é fazer o Fies, porque a universidade pública não é acessível. A ideia do Fies é linda, mas o estudante já começa a vida profissional endividado”, comenta.
Segundo Wilson Mesquita, professor de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC), problemas de inadimplência ligados ao financiamento universitário no Brasil são históricos, desde o crédito educativo, dos anos 1970. Muitos alunos, diz, também desconhecem as condições de pagamento e depois são surpreendidos por cobranças e juros.
Sobre o plano de renegociação, o governo afirma que não há impacto fiscal, uma vez que os débitos são considerados irrecuperáveis. O saldo devedor de quem tem mais de 12 meses de atraso é de cerca de R$ 31, 6 bilhões. Como as faculdades receberam do governo o pagamento enquanto os alunos estavam no curso, o risco do prejuízo ficou com o poder público, e não para as escolas.
Mesquita sugere opções aos estudantes. “Serviço comunitário para devolver o valor que consumiu.” A Lei 10.260/01, que regulamentou o Fies, abre a possibilidade de abater dívida para profissionais em serviços ligados ao governo, como professores, médicos da Saúde da Família ou das Forças Armadas, com atuação em áreas pobres. Outra lei, de 2020, estendeu o direito a médicos, enfermeiros e demais profissionais da saúde que atuem no SUS na pandemia.
Para Sólon Caldas, diretor executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes), o Fies precisa atender mais às necessidades dos estudantes. “O aluno está inadimplente não porque quer, é uma situação conjuntural”, diz. “Desde 2015, deixou de ser um programa social e passou a ser programa puramente financeiro, para atender às necessidades fiscais do governo. Por isso as vagas não são todas preenchidas.”
Desde 2015, o MEC tem apertado critérios para o acesso ao Fies, como a criação de teto de renda dos candidatos e a restrição dos cursos elegíveis, o que motivou críticas de entidades do ensino superior privado. O total de contratos foi de 732,6 mil em 2014 para 45,8 mil no ano passado. Apesar da explosão de contratos na 1ª metade da década passada, isso não foi capaz de acelerar o ritmo de aumento de matrículas no ensino superior – muitas faculdades incentivaram a inclusão no Fies de alunos já matriculados.
Entenda o avanço da crise ano a ano
2010
É o ano da “popularização” do Fies. A operacionalização dessa opção se tornou responsabilidade do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) – antes somente efetuada pela Caixa Econômica Federal. Houve redução dos juros de 9% para 3,4% ao ano, a criação e o alargamento do período de carência de 6 meses para 18 meses, bem como do período de amortização para três vezes o período financiado acrescido de 12 meses. O Fies passou também a operar em fluxo contínuo, permitindo novos pedidos de financiamento em qualquer período do ano.
2014
Foi o ápice do programa, quando mais de 732 mil contratos foram firmados.
2015 a 2017
Com a crise econômica, critérios foram “endurecidos”. O governo passou a limitar o número de contratos ao ano. A nota do Enem passou a ser uma exigência para contratar o financiamento. A renda per capita máxima exigida passou de 20 para 2,5 salários mínimos por mês. O processo seletivo passou a ter prazos definidos. Fixou-se a taxa de juros em 6,5% ao ano.
2018
Ano marcado pelo início do chamado “Novo Fies”. Extinguiu o prazo de carência. Assim, o estudante deve iniciar o pagamento no mês seguinte ao término do curso, desde que esteja empregado. O prazo máximo para pagamento é de 14 anos. A renda mínima subiu para 5 salários, mas com juros distintos que variam de zero até 6,5%.
2019
Já com expectativa de ter em 2020 o recorde de inadimplência no Fies, o Ministério da Educação (MEC) mudou regras do programa para poder cobrar na Justiça cerca de 584 mil estudantes com prestações atrasadas há mais de um ano. O rombo à época já atingia R$ 12 bilhões.