O uso de uma tecnologia social é muito pouco determinado pelo próprio instrumento; quando usamos a rede, a maior vantagem que temos é acessar uns aos outros. Queremos estar conectados uns aos outros, um desejo que a televisão enquanto substituto social elimina mas que o uso da mídia social, na verdade, ativa. (Clay Shirky)Entre as lembranças mais fortes de minha infância estão os passeios que meu pai proporcionava a mim e aos meus irmãos com as caminhadas nas noites de verão pelos bairros próximos de onde morávamos. Conhecer novos lugares era instigante e agradável. Nunca me esquecerei das visitas ao “Bexiga”, bairro de operários italianos, com cadeiras nas calçadas em frente às casas que reuniam moradores nas rodas de conversas noite adentro. Vi também quando adulto a mesma cena no interior de São Paulo e no Nordeste. Havia nos bairros mais pobres das cidades a confraternização entre vizinhos para compartilhar os acontecimentos do dia, comentar e transmitir as experiências de vida de cada um. Com a chegada da televisão no fim de 1950, essa cultura foi destruída. Os hábitos foram mudando e a mídia converteu-se em uma força centrípeta sobre a sociedade. Assistir às novelas, aos seriados, aos noticiários e aos numerosos programas de entretenimento oferecidos pelos canais de televisão passaram a ocupar a maior parte do tempo das pessoas na nova sociedade que emergia. A partir daí, os conteúdos, as imagens e até algumas celebridades da mídia substituíram a família, a escola e a igreja como modeladores de gostos e comportamentos. Em consequência, as cadeiras voltaram para o interior das casas. Chico Buarque abordou o tema na canção “A televisão (1967)”: (...) O homem da rua/ Fica só por teimosia/ Não encontra companhia/ Mas pra casa não vai não/ Em casa a roda/ Já mudou, que a moda muda/ A roda é triste, a roda é muda/ Em volta lá da televisão (...). O tema foi ainda registrado por Chico e Vinicius de Moraes na canção “Gente Humilde”, por Mario Quintana no poema “Tempo Perdido”, entre outros tantos poetas e compositores brasileiros. De lá para cá, as transformações foram muito mais rápidas. De uma cultura da mídia, que não possibilitava uma participação efetiva — pela própria ausência de meios e oportunidades para tal —, passamos para uma cultura de participação proporcionada pelas novas tecnologias, sobretudo pela web.2 que reconfigurou as formas de comunicação e os processos de interação entre indivíduos e organizações. O crescimento urbano, acompanhado de um crescente nível educacional, aumentou o número de pessoas pagas para pensar e administrar, mais do que para produzir ou transportar objetos: a economia industrial foi cedendo espaço para a economia de serviços. E o mundo da economia pós-industrial deparou pela primeira vez com mais tempo livre, também chamado de “excedente cognitivo”. Esse é o tempo que destinamos para fazer coisas que vão além das nossas obrigações diárias. É o período que geralmente é preenchido com atividades de lazer e/ou de simples descanso. Até hoje, a tecnologia que mais influiu no excedente cognitivo da população e que mais dele se utilizou foi a televisão — entrava pelos olhos e ouvidos e “imobilizava” mesmo os usuários moderadamente atentos em cadeiras e poltronas como um pré-requisito de consumo. Clay Shirky trouxe à tona, em seu livro “A cultura da participação: criatividade e generosidade no mundo conectado”, (Zahar, 2011) aspectos que nos levam a refletir sobre a nova e a velha cultura. Segundo ele, a tecnologia que, durante décadas, encorajou as pessoas a desperdiçarem o seu tempo e intelecto como consumidores passivos, está hoje aproveitando grande parte desse imenso potencial humano, antes desperdiçado, como novo e potente capital social, permitindo o engajamento, o compromisso social e a melhor utilização do tempo em tarefas coletivas, que façam sentido a grupos de interesses antes confinados à clausura passiva da televisão. As ferramentas da internet permitiram maior participação das pessoas que deixaram de ser telespectadores sem voz para se tornarem usuários capazes de interagir diretamente com conteúdos ou até mesmo de criá-los. Saímos de uma era em que apenas recebíamos informação e éramos chamados de “massa” para uma era em que construímos informações e somos reconhecidos como público segmentado com interesses específicos. Isso mostra claramente que o excedente cognitivo — matéria-prima para a virada de paradigma — agora é gasto não só recebendo e acumulando informações como também compartilhando e formando todo o conteúdo existente. Hoje o consumidor pode efetivamente participar da criação de produtos e serviços e estabelecer seus fluxos de comunicação independentes e, especialmente, colaborativos. Shirky propõe tratar o tempo livre — o excedente cognitivo — dos cidadãos como um capital social geral, que pode ser direcionado a grandes projetos criados coletivamente, pois, para ele, a internet é a primeira mídia pública a ter uma economia pós-Gutenberg. Diferentemente de todas as outras mídias, a infraestrutura disponível nas mídias digitais não pertence aos produtores de conteúdo, mas é acessível a qualquer um que tenha acesso a ela. A cultura da participação transcende as relações comerciais do mercado e está transformando o próprio conceito de mídia. A comunicação contemporânea, marcada pela interatividade, permite que todos os envolvidos possam ser produtores, distribuidores e consumidores de comunicação e é muitas vezes entendida como um processo novo, resultante de uma ruptura com a cultura da mídia dos meios massivos, como a televisão de propriedade de minorias. Nesse cenário, o indivíduo passa a posicionar-se na sociedade de forma diferente, consumindo, produzindo e distribuindo a comunicação. Ou seja, o tempo, a dedicação, a energia e o talento das pessoas que estão conectadas somados às novas tecnologias proporcionam uma reconfiguração da nossa relação com os meios de comunicação, a ponto de deixarmos de ter uma cultura da mídia para assumirmos uma cultura da participação. Nesse contexto, consumidores passam a atuar e interferir diretamente no desenvolvimento e na elaboração de produtos e serviços oferecidos pelas empresas — seja opinando, colaborando e/ou mesmo manifestando a sua desaprovação em redes sociais, blogs e sites —, fazendo surgir um relacionamento mercadológico próprio da cibercultura. À medida que se fortalece a capacidade de determinados grupos de aprender e trabalhar juntos, as suas ações passam a atrair mais participantes, melhorando e disseminando as ideias. O ambiente efervescente de um círculo colaborativo pode fazer com que os projetos e as realizações dos participantes se desenvolvam mais depressa do que se estivessem buscando os mesmos objetivos isoladamente. Essa ampliação da nossa capacidade de criar coisas de forma conjunta, de doar nosso tempo livre e nossos talentos particulares a algo útil, é uma das grandes oportunidades atuais. Para Shirky, o excedente cognitivo é um potencial que pode viabilizar ações sociais significativas, pois os talentos, quando coletivos, tornam-se uma questão social e não apenas individual. Tal como uma nova geração de jovens está fazendo na economia criativa tendo como exemplo os modelos — crowdsourcing [1] e crowdfunding [2] —, é chegada a hora das instituições de ensino de todos os níveis se voltarem para a análise deste novo movimento, visando implementar estratégias para transformar o excedente cognitivo dos cidadãos em capital social que pode ser direcionado a grandes projetos de interesse coletivo. É hora de levar as cadeiras de volta, desta vez, às calçadas do mundo. [1] Crowdsourcing é o modelo de produção que utiliza a inteligência e os conhecimentos coletivos e voluntários, geralmente espalhados pela internet para resolver problemas, criar conteúdo e soluções ou desenvolver novas tecnologias, assim como para gerar fluxo de informação. [2] Crowdfunding (financiamento coletivo) consiste na obtenção de capital para iniciativas de interesse coletivo por meio da agregação de múltiplas fontes de financiamento, em geral pessoas físicas interessadas na iniciativa. O termo é muitas vezes usado para descrever especificamente ações na internet com o objetivo de arrecadar dinheiro para artistas, jornalismo cidadão, pequenos negócios e startups, campanhas políticas, iniciativas de software livre, filantropia e ajuda a regiões atingidas por desastres, entre outros.