Gabriel Mario Rodrigues
Presidente do Conselho de Administração da ABMES
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“Embora a discriminação racial seja proibida por lei, os critérios de aprovação por meio de entrevista de emprego têm uma carga subjetiva muito maior.” (Márcia Lima)[1]
Recentemente fiz uma pesquisa para ver a representatividade do universitário negro no mercado de trabalho brasileiro e, por incrível que pareça, há muito pouca informação a respeito.
Escrevo apoiado numa matéria publicada pelo jornal Valor Econômico em dezembro de 2017, que trouxe como título de capa do caderno Eu & Fim de Semana a reportagem “Alunos da primeira classe”, de Maria Cristina Fernandes. Nela, a jornalista, por ocasião dos dez anos de formatura da primeira turma da Faculdade Zumbi dos Palmares, situada na capital paulista, faz um raio X do destino dos egressos. Como ela mesma diz: “Valor reconstitui a trajetória de ascensão, frustração e resistência dos ex-alunos a voltar para o gueto”.
A expressão é forte, se os guetos, durante a Segunda Guerra Mundial, eram bairros em geral cercados, onde os alemães concentravam a população judaica local, muitas vezes de outras regiões, e a forçava a viver sob condições miseráveis, hoje é tudo igual: são regiões/bairros de uma cidade onde vivem os membros de uma etnia ou outro grupo minoritário, frequentemente devido a injunções, pressões ou circunstâncias econômicas ou sociais.
É esse o destino de significativa parcela da população dos grandes centros urbanos brasileiros que hoje, mercê de programas de incentivo à educação como ProUni e Fies, ou das polêmicas cotas, tem acesso à universidade.
O acesso ao Ensino Superior sempre foi maior nos estratos mais abastados da sociedade. Foi só no início deste milênio que, com o avanço de ações afirmativas[2] e programas de inclusão, as classes mais pobres e intermediárias da sociedade entraram no vagão universitário, beneficiando-se da ampliação de vagas das universidades públicas e privadas.
Ainda assim, as universidades, sobretudo as públicas, dão uma amostra embranquecida da população, muito embora a reportagem cite os números que Márcia Lima e Ian Prates no capítulo “Desigualdades raciais no Brasil: um desafio persistente” (Trajetórias das desigualdades, Marta Arretche (org.), Unesp, 2015) apresentam: “Entre 1980 e 2010, a quantidade de brancos com ensino superior completo duplicou (102%) e a de negros quadruplicou (290%)”.
Esses números, à primeira vista, são alentadores, mas, quando se analisa sobre que bases foram medidos, a realidade é bem triste. O IBGE nos dá uma pista.
Os negros não perdem em acesso à universidade para os brancos apenas na sua faixa de renda: eles também perdem para brancos consideravelmente mais pobres. A chance de um negro que está no quintil intermediário entrar na faculdade é igual a de um branco entre os 20% mais pobres. Um negro do segundo quintil tem quase metade das chances de um branco do quintil abaixo (mais pobre).
Quintil de renda é a faixa econômica em que uma pessoa se encontra: se ela está no primeiro quintil, isso significa que ela está entre os 20% mais pobres da sociedade; se ela está no quinto, então ela está entre os 20% mais ricos. Os quintis intermediários representam faixas intermediárias. Só para exemplificar, outra tabela do IBGE:
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Renda | 1991 | 2000 | 2010 |
1º quintil | 0.5% | 1.7% | 13.5% |
2º quintil | 0.8% | 3.4% | 21.6% |
3º quintil | 1.9% | 9.1% | 41.2% |
4º quintil | 5.2% | 24.8% | 63.0% |
5º quintil | 15.2% | 61.3% | 83.5% |
O sistema de cotas para negros foi adotado, pela primeira vez, em 2004, como uma medida governamental que criou uma reserva de vagas em instituições públicas ou privadas para classes sociais mais desfavorecidas. Ao criá-lo, o governo procurou adotar práticas que previam a melhoria do ensino fundamental e médio, dando condições para que o aluno carente, negro ou indígena concorresse em pé de igualdade com alunos da rede particular de ensino.
Mas essas políticas de inclusão só obtêm êxito se permitirem o acesso, a permanência e o sucesso, essa trilogia é imperativa quando se fala em cotas para afrodescendentes (e não só para eles, mas também para indígenas, egressos de escola pública, estudantes de baixa renda, portadores de necessidades especiais, dentre outros) em universidades.
Para garantir a efetividade do processo de inclusão é necessário o desenvolvimento de assistência estudantil, acompanhamento pedagógico, avaliação e (re)avaliação da política ao longo da implantação, para os devidos ajustes e intervenções, já que as desigualdades para essa parcela da população se fazem constantes, desde a infância, acompanhando-os em seu acesso e durante a permanência na universidade. O ensino ao qual tiveram acesso é de baixa qualidade e, depois que conseguem ingressar na universidade, necessitam conjugar trabalho e estudos, o que prejudica sua progressão escolar, se comparado aos estudantes que tiveram acesso a um ensino de melhor qualidade e não necessitam trabalhar para sustentar-se e ajudar no orçamento familiar.
Mesmo transpondo todas essas barreiras, o egresso negro encontra outra (introduzida na sociedade): o preconceito. “Os relatos dos egressos da Zumbi têm em comum histórias de como o negro tem que provar competência em dobro”, diz a jornalista na reportagem, na qual relata casos, no mercado de trabalho, de preconceito explícito ou, no mais das vezes, velado e sutil.
No capítulo já citado, Márcia Lima e Ian Prates resgatam a projeção do Ipea de que, se a diminuição das desigualdades raciais de renda entre 2001 e 2007 mantivesse o mesmo ritmo, seriam necessários 30 anos para pretos e pardos alcançarem a mesma renda que os brancos. Essa projeção é contestada pelo Relatório das Nações Unidas do ano passado, que alertou para a ameaça de que essas três décadas se transformem num prazo sem fim, diz Maria Cristina Fernandes na reportagem. Acrescento que o mesmo se pode dizer em relação ao preconceito.
Estamos nós, como universidade, preparados para mudar esse quadro?
Mas isso não é tudo. Resta saber, ignorando-se todas as considerações acima, se a empregabilidade, a cognição de saberes propiciados pela universidade pode ser considerada (des)igual para todos os universitários, independente de cotas e que tais. Ou seja, será que a universidade está ofertando habilidades e competências ideais não importando a cor da pele para a plenitude da realização profissional de seus egressos?
A grita é geral, sabidamente, entre os mercados de trabalho, a universidade e os estudantes, cada um procurando “o culpado” no processo.
[1] Coordenadora do Projeto "Desigualdades raciais no Brasil: mudanças, persistências e desafios" no Centro de Estudo da Metrópole (CEM). É Professora Doutora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo. Em termos de pesquisa atua nos temas: a) desigualdades raciais e relações raciais com ênfase nos estudos sobre gênero e raça; b) desigualdades e estratificação social com ênfase nos estudos sobre mercado de trabalho.
[2] Ações afirmativas são, segundo a Wikipédia, atos ou medidas especiais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo Estado, espontânea ou compulsoriamente, com os objetivos de eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantir a igualdade de oportunidades e tratamento, compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização decorrentes de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros.