Gabriel Mario Rodrigues
Presidente do Conselho de Administração da ABMES
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“Clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.” (Italo Calvino)
Lúcido, apesar de seus 98 anos completados em 8 de julho, o visionário Edgar Morin não se cansa de debater a relação entre a razão e a emoção no pensamento complexo. Ele, que é um dos maiores sociólogos vivos, esteve no Brasil em junho deste ano para o 3º Congresso Socioemocional Liv, espaço para formação e aprimoramento de boas práticas em educação socioemocional.
Em 1999, a Unesco solicitou que o filósofo francês sistematizasse um conjunto de reflexões para repensar a educação para este século. O resultado foi o livro clássico, no sentido da epígrafe apresentada neste artigo, “Os sete saberes necessários à educação do futuro”[1]. Segundo Morin, esses pontos deveriam ser tratados em “toda sociedade e em toda cultura, sem exclusividade nem rejeição, segundo modelos e regras próprias a cada sociedade e a cada cultura”. Seria uma forma de, preservando nossa humanidade, nos posicionarmos frente aos avanços inexoráveis das tecnologias digitais, da realidade virtual e da inteligência artificial. Essas reflexões, por sua atemporalidade, continuam, quase vinte anos depois, ditando a tônica para uma sociedade e educação 5.0.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, em 24 de junho (Seguimos como sonâmbulos e estamos indo rumo ao desastre, diz Edgar Morin), ele diz:
“Não ensinamos a compreensão do outro, que é fundamental nos nossos dias, não ensinamos a incerteza, o que é o ser humano, como se nossa identidade humana não fosse de nenhum interesse. As coisas mais importantes a saber não se ensinam”.
Se a educação 4.0 traz a ideia de promover a integração entre o mundo digital e a tecnologia com a sala de aula, visando preparar os jovens para o mercado que irão enfrentar daqui para frente, a educação 5.0 une essa integração entre os dois mundos e conceitos de habilidades cognitivas à consciência socioambiental e à empatia (terceiro, quarto, sexto e sétimo saberes do visionário Morin).
Nunca é demais analisar esses saberes para verificar se estão válidos vinte anos depois, num mundo onde as tecnologias desenvolvem-se exponencialmente e o futuro é sempre um enigma. Por esta razão, pensamos que quem trabalha com educação precisa ter este livro como apoio paradigmático.
O primeiro deles – as cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão – são erros mentais, intelectuais, da razão, cegueiras paradigmáticas que impedem de distinguir o real do ilusório, o objetivo do subjetivo, uma vez que se está, a todo o momento, exposto a erros de percepção ou de julgamento em relação à realidade exterior e em relação a nós mesmos. A educação do futuro deverá estar consciente da possibilidade do erro nos processos do conhecimento e elaborar saberes capazes de nos preparar para enfrentar as incertezas e as cegueiras.
Os princípios do conhecimento pertinente representam o segundo saber. Em face da imensa massa de informações que nos chega pelos mais diversos canais de comunicação neste mundo globalizado, é preciso sermos capazes de discernir quais são os problemas-chave, as informações-chave, os conceitos-mestres para que o conhecimento seja pertinente, capaz de promover uma relação entre o particular e o geral, a parte e o todo. Para isso, é necessária uma educação apta para lidar com realidades e problemas multidisciplinares, multidimensionais, transversais, globais, planetários, que promova a “inteligência geral”, as várias inteligências.
A educação do futuro formará o cidadão e o profissional apto a pensar e a trabalhar com o todo (que é mais do que a simples soma das partes, mas sua integração num todo dinâmico).
“A educação deve favorecer a aptidão natural da mente em formular e resolver problemas essenciais e, de forma correlata, estimular o uso total da inteligência geral. Este uso total pede o livre exercício da curiosidade, a faculdade mais expandida e a mais viva durante a infância e a adolescência, que com frequência a instrução extingue e que, ao contrário se trata de estimular ou, caso esteja adormecida, de despertar”, sentencia Morin.
O terceiro saber: ensinar a condição humana. A humanidade é una e diversa: traços da espécie nos unem; diferenças históricas e culturais nos diferenciam. Somos indivíduo/sociedade/espécie, somos razão/afeto/pulsão e somos também cérebro/mente/cultura, somos três relações simultaneamente. A educação do futuro deverá conscientizar as novas gerações de que devemos conservar a unidade, respeitando a diversidade humana.
Ensinar a identidade terrena é o quarto saber. Morin propõe que a educação do futuro ensine uma ética da compreensão planetária. Somos todos originários da mesma espécie, possuímos as mesmas características fundamentalmente humanas. A educação do futuro deverá ampliar os aspectos do processo inevitável de globalização e introduzir uma noção mundial mais poderosa: o desenvolvimento de nossas faculdades afetivas, morais e intelectuais em escala terrestre. Deveremos despertar e cultivar nas futuras gerações um sentimento de desvelo e pertencimento à terra, se não quisermos enfrentar a hecatombe previstas em tantos filmes de “ficção” científica.
“O surgimento do novo não pode ser previsto, senão não seria novo. O surgimento de uma criação não pode ser conhecido por antecipação, senão não haveria criação”, diz Morin, a respeito do quinto saber: enfrentar as incertezas.
Eduardo Benzatti, em seu artigo “A educação e os educadores do futuro”, apresenta, de forma resumida e comentada, a posição Morin e destaca:
“A educação do futuro ensinará que toda a ação é um jogo de inter-retro-ações entre o sujeito e o contexto, o sujeito e outros sujeitos, assim como ensinará que para jogarmos esse jogo, com suas probabilidades e improbabilidades, deveremos desenvolver habilidades cognitivas que possibilitem um pensamento criador de estratégias. Devemos renunciar ao programa fechado e privilegiar a estratégia que analisa as condições de cada situação e possibilita a flexibilidade para mudanças e correções de curso durante as ações empreendidas”.
Ensinar a compreensão é o sexto saber, a missão espiritual da educação. A educação do futuro deverá ensinar a compreensão mútua como condição e garantia da solidariedade humana. A educação do futuro deverá ensinar a ética da compreensão e assumir um compromisso total com o espírito democrático e aberto, para que a compreensão entre os indivíduos, os povos e as culturas possa florescer.
A ética do gênero humano (antropoética) é o sétimo e último saber, que deverá perpassar toda a cadeia complexa responsável pela nossa essência humana: indivíduo/sociedade/espécie. Ela implica assumir a consciência e a condição humana, assumir o destino humano como incerto, trabalhar para a humanização da humanidade, alcançar a unidade na diversidade planetária, respeitar o outro na sua plenitude e humanidade, desenvolver a ética da solidariedade, da compreensão e do gênero humano.
Em suas conferências sobre o tema, Morin sugere que as universidades deveriam dedicar um tempo de seus cursos (dízimo epistemológico ou transdisciplinar) para refletir sobre a real pertinência e valor do que ensinam, e do conhecimento que propagam.
Esse dízimo usaria 10% do tempo de duração de cada curso para ministrar um ensino comum “orientado para o pressuposto dos diferentes saberes e para as possibilidades de torná-los comunicantes (...) ele [o dízimo] elaboraria os dispositivos que iriam permitir a comunicação entre as ciências antropossociais e as ciências da natureza”, explica Morin.
Essa, talvez, seja uma maneira de questionar constantemente nossos hábitos, nossas práticas educacionais – dentre elas, a formação de professores –, nossas atitudes enquanto educadores e mesmo o conhecimento que veiculamos ou julgamos ensinar.
A BNCC foi toda construída baseada nestes saberes. Acredito que cabe às instituições de educação superior, e em especial àquelas que formarão os educadores do futuro, refletirem sobre essas ideias. Já é um bom começo.
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[1] MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez/Unesco, 1999.
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