“As frases que hão de salvar a humanidade já foram, há muito, extensamente escritas; só falta agora uma coisa — salvar a humanidade”. (Almada Negreiros)Como mantenedor e gestor, trabalho há mais de quarenta anos na educação superior. Em todo esse tempo, constato que as instituições de ensino superior (IES) enfatizam e divulgam nas suas peças promocionais e nos seus portais a excelência do ensino que oferecem. Todas se apresentam como sendo de excelente qualidade, como se tal adjetivação fosse um condão mágico. Percebe-se nesses casos que o conceito “qualidade” é quase sempre utilizado de forma banal em todas as áreas de produtos e serviços, como atributo caído dos céus e sem relação alguma com outro modelo que lhe sirva de espelho e de comparação. Assistimos a um aumento extraordinário do número de alunos frequentando o ensino superior, fato que comprova a democratização do acesso a um nível de formação que durante séculos foi orientado para as elites sociais. A multiplicação dos alunos e docentes deveria resultar, no entanto, na preocupação com o real aprendizado dos estudantes. E, nesse contexto, se impõe uma reflexão sobre a própria existência da IES e sobre a forma de compreender e de dimensionar as ideias básicas e os conceitos de qualidade de ensino. Em seu artigo “Para um ensino superior com qualidade”, Rui Proença Garcia, professor da Universidade do Porto, Portugal, cita Almada Negreiros, que em outro contexto e sobre outro assunto, afirma: “as frases que hão de salvar a humanidade já foram, há muito, extensamente escritas; só falta agora uma coisa — salvar a humanidade”. Em outras palavras, quase tudo já se pensou, se analisou e se escreveu sobre qualidade educacional. Falta apenas fazer e demonstrar. Segundo a perspectiva de Negreiros, será preciso agora “salvar as universidades das tentações nem sempre assumidas daqueles que têm responsabilidades, dotando-as dos meios e dos recursos humanos indispensáveis, para garantir uma formação de qualidade”. De um ensino para as elites — cujo rigor da seleção facilitava a perpetuação do patrimônio do saber, por estar ligado ao poder —, passou-se para um outro estágio, no qual o aumento do número de alunos provocou uma autêntica revolução da própria missão das IES. O processo ensino-aprendizagem num ambiente de massa, até pouco tempo, era questionado e considerado provavelmente mais pobre e menos eficaz do que aquele outro destinado a um pequeno número de estudantes. Mas hoje, graças ao uso das tecnologias de comunicação e de informação, esta questão deve ser refletida e apurada para ver se persiste e procede tal questionamento. As novas tecnologias, sem dúvida alguma, podem colaborar imensamente para a entrega de um melhor produto educacional. Vai e volta, vira e mexe, este assunto vem à tona. Realmente não existe no sistema universitário, como na empresa, a preocupação de verificar se o produto almejado foi realmente entregue ou se as competências profissionais prometidas no ato da matrícula realmente aconteceram após a integralização do curso, isto é, se o formando realmente aprendeu. Medir a qualidade de ensino que está sendo oferecido nas IES brasileiras por meio do modelo preconizado pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Lei do Sinaes) seria a única maneira de induzir o sistema educacional a um modelo de qualidade perceptível e mensurável. Mas a realidade é outra. A adoção de fórmulas matemáticas para aferir conceitos para avaliar a qualidade — o Conceito Preliminar de Curso (CPC) e o Índice Geral de Cursos (IGC), este construído com base na média ponderada das notas dos cursos de graduação e pós-graduação de cada instituição — é um grande equívoco técnico. A educação é um processo dinâmico, no qual a qualidade não pode ser medida num único momento. Reside exatamente nisso o perigo de se obter uma fotografia estática, sob uma só medida. Na avaliação de instituições e/ou de cursos é de se supor que os instrumentos utilizados já tenham sido testados, discutidos e analisados de forma a permitir assertividade nos resultados. É possível afirmar também que as pessoas nem sempre buscam uma instituição pela sua qualidade. A maioria preocupa-se, primordialmente, com o preço das mensalidades, com a proximidade da escola dos locais onde residem ou trabalham, com as poucas exigências em relação aos trabalhos acadêmicos. Os jovens também desconhecem o modelo de avaliação das IES pelos órgãos oficiais. Nesse particular aspecto, pode ser até que conheçam as “notas das IES” divulgadas pela mídia que, na verdade, não refletem a realidade das IES. Além disso, os alunos inscritos no processo seletivo da IES, aprovados e matriculados, se apresentam para o início das aulas sem jamais ter procurado conhecer a proposta pedagógica do curso, e, por esse motivo, eles avançarão como se estivessem em um voo cego. Não passa pela cabeça dos alunos fazer qualquer verificação sobre os índices de repetência e evasão dos cursos que são indicadores claros da qualidade do ensino oferecido. Não se interessam em saber se as IES investem na capacitação dos docentes, aspecto essencial para o processo ensino-aprendizagem e cuja dinâmica exige constante atualização e formação continuada. As pesquisas revelam — e esse é um fato preocupante — a baixa qualidade do ensino superior. Segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), divulgado recentemente pelo Instituto Paulo Montenegro (IPM), 38% dos estudantes das IES não dominam as habilidades básicas de leitura e escrita e não conseguem interpretar e associar informações. O aumento de escolarização no país não foi suficiente para assegurar o domínio das habilidades que devem ser adquiridas na educação básica. O governo priorizou a quantidade, com a inclusão de mais alunos nas escolas, sem investir em processos de formação de qualidade. E a tendência é piorar se não houver investimentos no ensino básico. Entre os brasileiros de 50 a 64 anos — cerca de 60 milhões de pessoas —, 52%m ainda que tenham completado o ensino fundamental, são considerados analfabetos funcionais. Sob outro ângulo de análise, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), composto pelos fatores educação, renda e longevidade (saúde), mostrou em 29 de julho de 2013 que a educação, apesar dos avanços, ainda ficou abaixo dos outros subíndices. Para os pesquisadores, o fato se deu em decorrência da ausência de patamares adequados de qualidade na educação. Simon Schwartzman[1], pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), observa que o principal problema da educação brasileira é a qualidade, que no ensino médio se soma à falta de alternativas. "Uma população muito grande chega ao ensino médio com formação precária. Não se pode ter um modelo de formação única. Você tem o jovem se preparando para a universidade, mas também tem o adulto de olho no mercado de trabalho". Adriana Momma-Bardela[2], da Faculdade de Educação da Universidade de Campinas (Unicamp), aponta como saída uma reforma urgente nos cursos de formação inicial de professores de educação básica — Pedagogia e licenciaturas. Para ela, "é imprescindível que os professores em formação inicial aprendam e saibam efetivamente como se ensina, como se aprende, como se acompanha o aprendizado, o que e quem fundamenta o conjunto de suas ações e propostas formativas". Como se vê, ao analisar e discutir a questão da “qualidade” é preciso situar em qual margem se vai aportar. Sabe-se que os verbetes “ensino” e “educação”, embora complementares, são distintos. A escolha por um estabelecimento de ensino é fator decisivo no bom desempenho dos alunos. O efeito da educação tem como causa o ensino. Ensino de qualidade é uma coisa; educação de qualidade é outra. Faltando qualidade no ensino jamais se terá educação de qualidade. Assim também, quando se imprime qualidade aos métodos de ministrar o ensino, busca-se a educação plena. O ensino de qualidade tem por escopo consumar a educação como aquisição de cabedal científico para o aperfeiçoamento integral das faculdades humanas. Qualidade é o diferencial de uma coisa comparada com outra. Sem comparação, ou sem a possibilidade de comparar, nada é melhor nem pior. Seja quanto ao ensino ou quanto à educação. Por sua vez, o sistema de avaliação atual usa os mesmos instrumentos para avaliar as IES que, pelas suas histórias e diferentes estágios de desenvolvimento, são totalmente diferentes. Uma avaliação que não observa essas características transforma-se em um grande fantasma que assombra os dirigentes das IES. Como comparar por meio de uma mesma metodologia uma Universidade com um Centro Universitário? Como comparar um Centro com as pequenas e médias IES (PMIES)? Como comparar as PMIES situadas na capital com as do grande sertão brasileiro? Finalizando, a filosofia da “qualidade total” e títulos assemelhados é um mantra que há décadas vem sendo objeto de discussões em congressos, seminários e fóruns como único mecanismo de salvaguardar a educação brasileira. Corroborando o pensamento de Negreiros — “tudo já foi falado, escrito e digitado a respeito. Agora só falta fazer”—, Garcia observa nas suas conclusões: “Temos a plena consciência que o aumento da qualidade passa primeiro por todos nós e só depois pelos outros. Aguardar que alguém decrete a qualidade é uma espera inútil e desesperante.” Para ele, as IES precisam oferecer um ensino de qualidade e não temer aqueles que têm o poder de avaliar e de controlar a vida institucional. Nesse sentido, a qualidade será tanto maior quanto maior for a capacidade das IES de formar profissionais capazes de entender e transformar a realidade; de atuar como cidadãos e como profissionais e realizar os seus projetos de vida. [1] http://liagenor.blogspot.com.br/2013_07_01_archive.html [2] Ibid.