A pobreza, nas suas múltiplas dimensões — econômica, educacional, habitacional e simbólica — permanece como um dos maiores desafios das sociedades contemporâneas. A superação desse problema demanda esforços coordenados de diferentes setores, e entre eles, as universidades têm um papel estratégico. Abraham Kuyper, ex-primeiro-ministro dos Países Baixos e fundador de uma universidade que priorizava o serviço público, já no século XIX defendia que as instituições de ensino superior não poderiam se isentar de responsabilidade diante das desigualdades sociais. Embora formulada em outro tempo, sua visão permanece extremamente atual.
Hoje, espera-se que a universidade vá além da formação técnica de profissionais. Ela deve assumir uma postura ativa na transformação da realidade social, atuando como um agente catalisador de justiça social. Isso envolve tanto o modo como forma seus estudantes quanto os tipos de conhecimento que produz e como se relaciona com a comunidade ao redor. O combate à pobreza, nesse sentido, não é uma pauta externa à universidade, mas uma de suas mais legítimas missões públicas.
A universidade como formadora de consciência social
A formação universitária precisa ir além da técnica. Um bom engenheiro, advogado ou administrador não deve apenas dominar ferramentas da sua área, mas também entender o contexto social em que essas ferramentas são aplicadas. Uma engenharia que ignora as desigualdades urbanas, um direito que desconsidera os vazios de acesso à justiça ou uma administração alheia ao impacto social de decisões econômicas perpetuadesigualdades.
Por isso, universidades comprometidas com a transformação social devem integrar nos currículos conteúdos que formem uma consciência crítica e empática, habilitando os futuros profissionais a tomar decisões responsáveis diante das disparidades sociais. Isso inclui disciplinas sobre responsabilidade social, economia solidária, políticas públicas, sustentabilidade e inovação inclusiva.
A produção do conhecimento a serviço da equidade
A produção científica não pode se limitar ao acúmulo de publicações ou rankings internacionais. Universidades devem direcionar parte significativa de sua pesquisa para o enfrentamento de problemas concretos, como a pobreza. Isso significa apoiar pesquisas interdisciplinares que envolvam políticas de habitação, mobilidade, segurança alimentar, educação básica e acesso à saúde, por exemplo.
É necessário ainda romper com o modelo de pesquisa isolado das demandas populares. As universidades devem ouvir as comunidades, identificar necessidades reais e trabalhar colaborativamente em soluções. O conhecimento deve ser colocado a serviço da equidade — e não apenas da inovação comercial.
Extensão universitária: para além da assistência
A atuação das universidades fora do campus não deve se reduzir a ações pontuais de filantropia. Projetos de extensão precisam ser pensados como processos contínuos de troca e construção conjunta com as comunidades, respeitando saberes locais e promovendo o desenvolvimento de capacidades mútuas.
Mais do que "levar conhecimento", a extensão deve fomentar redes de colaboração, incubação de iniciativas sociais, estímulo ao cooperativismo, formação política e promoção de protagonismo cidadão. Isso contribui não apenas para a melhoria da qualidade de vida das comunidades, mas também para uma formação mais completa e sensível dos estudantes.
O papel da tecnologia no enfrentamento da pobreza
A tecnologia pode ser uma poderosa aliada na redução das desigualdades, desde que utilizada de forma intencional e acessível. Universidades têm o potencial de liderar esse movimento ao integrar inovação tecnológica e compromisso social.
Plataformas digitais podem, por exemplo, viabilizar o acesso gratuito a cursos de qualificação para populações em situação de vulnerabilidade. Ferramentas de análise de dados podem mapear desigualdades e orientar políticas públicas mais eficazes. Aplicativos podem conectar produtores locais a mercados consumidores, gerando renda e autonomia econômica.
Além disso, programas de incentivo ao empreendedorismo digital e à inclusão produtiva podem ser desenvolvidos dentro dos laboratórios universitários, criando oportunidades para jovens periféricos, mulheres em situação de risco e outros grupos historicamente excluídos. Para isso, é essencial que as universidades atuem com parcerias públicas e privadas, redes de inovação social e movimentos comunitários.
Financiamento e redes de impacto
Para concretizar essas iniciativas, as universidades precisam buscar fontes diversificadas de financiamento, incluindo editais de fomento à pesquisa aplicada, fundos de impacto social e colaborações com organizações da sociedade civil. A criação de núcleos de inovação com foco em justiça social pode atrair tanto investidores públicos quanto privados comprometidos com o impacto positivo.
Além disso, a universidade não deve agir sozinha. É essencial integrar redes interinstitucionais que conectem pesquisadores, lideranças comunitárias, gestores públicos e atores do setor privado. Essa articulação amplia a escala e a eficácia das ações e evita duplicidade de esforços.
Métricas de impacto e prestação de contas
Por fim, o envolvimento das universidades com a agenda da pobreza deve vir acompanhado de métricas claras de impacto social. Quantas famílias foram beneficiadas? Quantos estudantes participaram de projetos transformadores? Quais mudanças concretas ocorreram em determinada comunidade após a atuação universitária? Essas perguntas precisam ser respondidas de forma transparente.
A adoção de indicadores de impacto social nas universidades é não apenas uma ferramenta de gestão, mas uma forma de prestar contas à sociedade que financia a educação superior — seja por meio de tributos ou mensalidades.
Conclusão: da neutralidade à responsabilidade
A universidade do século XXI não pode se esconder atrás de uma suposta neutralidade científica enquanto a pobreza segue crescendo diante dos seus portões. Sua legitimidade pública depende cada vez mais da sua capacidade de contribuir com soluções justas, sustentáveis e inclusivas. Ao assumir o combate à pobreza como missão estruturante — e não como projeto periférico —, a universidade reafirma sua razão de existir: ser um motor de desenvolvimento humano em seu sentido mais pleno.
Inspiradas por visões como a de Abraham Kuyper — que já em 1891 advertia que a questão social não poderia ser ignorada pelas instituições formadoras —, as universidades podem e devem se tornar protagonistas na construção de um futuro mais justo. Um futuro onde tecnologia, conhecimento e ação se unem para eliminar a pobreza, não como caridade, mas como dever cívico.