Todo início de período letivo é a mesma coisa: surgem diversas denúncias de trotes violentos e humilhantes, em instituições de ensino superior públicas e privadas.
Os ingressantes são submetidos a tratamento vexatório e a práticas violentas, quando o momento de ingresso na educação superior deveria ser uma oportunidade de acolhimento e introdução à nova etapa na caminhada dos estudantes.
Infelizmente, como regra geral, não é isso que vem acontecendo.
Marginais, travestidos de estudantes universitários, aproveitam o momento de insegurança dos ingressantes, tímidos diante de uma nova e reconhecida realidade, para externar seus mais reprováveis instintos, impondo aos “calouros” toda sorte de humilhação e até mesmo violência.
Acompanhamos, rotineiramente, notícia de ingressantes espancados, queimados com substâncias químicas e tintas impróprias para uso humano, obrigados a ingerir quantidades brutais de bebidas alcóolicas ou outras drogas ilícitas, pedindo dinheiro em semáforos para que os “veteranos” possam custear aquisição de álcool, além de diversas outras situações vexatórias e violentas.
Registramos que a imposição desse tipo de situação aos ingressantes é conduta que pode, facilmente, ser tipificada como crime, nos termos os seguintes artigos do Código Penal, citados de forma exemplificativa:
“Lesão corporal - Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem.”
“Omissão de socorro - Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública.”
“Constrangimento ilegal - Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda.”
“Ameaça - Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave.”
Não bastasse a gravidade desta conduta, que, além de manifestamente criminosa, demonstra, ainda, a existência de lacunas extensas na formação dos profissionais e cidadãos que a academia pretende entregar para a sociedade, há que se registrar ainda a inequívoca responsabilidade dos gestores acadêmicos por estas injustificáveis condutas.
Os estudantes que aplicam esse tipo de trote, apesar de, usualmente, estarem simplesmente repetindo uma situação com a qual se defrontaram no momento de ingresso na vida acadêmica, parecem demonstrar a incapacidade de nossas instituições de ensino de incutir-lhes um mínimo de noção de ética, decência e humanidade.
Trata-se, em essência, da repetição quase automática de um comportamento que, se aceitável quando estiveram na condição de vítimas, mostrar-se-ia também legítimo quando atingissem a posição de autores, contribuindo, com isso, para a manutenção dessa “tradição” espúria.
A interrupção desse ciclo vicioso e infame somente se mostra possível com a atuação efetiva dos gestores acadêmicos, em algumas frentes de trabalho facilmente identificáveis.
A primeira e mais visível é a atuação firme na aplicação das regras que integram o regime disciplinar das instituições de ensino, atuando de forma eficaz na sensibilização de toda a comunidade acadêmica para o descabimento da adoção de trotes com qualquer tipo de violência ou humilhação.
Na condição de responsáveis legais pela aplicação e cumprimento das normas que regulamentam o regime disciplinar no âmbito das instituições de ensino, não há como se afastar a responsabilidade dos gestores acadêmicos pela realização dos malsinados trotes acadêmicos, especialmente quando realizados, integral ou parcialmente, nas instalações das instituições de ensino superior.
Como se a responsabilidade pela aplicação e cumprimento do regime disciplinar não fosse suficiente, há que se registrar, ainda, a responsabilidade penal dos gestores acadêmicos pela prática dos atos criminosos usualmente verificados nas situações de trotes acadêmicos, como deixa claro o teor do artigo 29 do Código Penal, verbis:
“Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.”
Vale dizer, a conduta, ainda que omissiva, dos gestores acadêmicos, configura a situação acima tipificada, porquanto, ao permitir nos ambientes sob sua responsabilidade a prática desses atos de selvageria, concorreram para a prática dos atos criminosos.
Não basta, contudo, atuar firmemente para coibir a realização dos trotes humilhantes, violentos e, certamente, injustificáveis.
É fundamental que os gestores acadêmicos das instituições de ensino superior que ainda apresentam esta conduta bárbara e reprovável atuem de forma incisiva na formação de seus acadêmicos, reforçando as noções e valores relativos à ética, cidadania e à educação ambiental, em sua forma mais ampla, por representar a relação do homem com tudo e todos que o cercam.
É necessário rever e, certamente, reforçar as políticas de acolhimento, de forma a tornar o momento de ingresso no ensino superior a efetiva abertura de novas portas e oportunidades, apresentando ao ingressante as imensas possibilidades que se descortinam à sua frente a partir do início de sua vida acadêmica.
Não é admissível continuar permitindo que esse momento, de importância ímpar, seja substituído pelo show de horrores que temos habitualmente acompanhado pelos meios de comunicação.
Muitas instituições já conseguiram dar este “passo de civilidade”, transformando a tradição dos trotes universitários em momentos de sadia integração entre todos os integrantes do corpo discente, gerando práticas de convivência e responsabilidade social absolutamente produtivas e harmônicas com as finalidades da educação superior.
É certo que esse passo fundamental somente foi possível a partir da atuação efetiva de seus gestores acadêmicos, seja coibindo os trotes violentos e humilhantes, seja intensificando a atenção para a formação de valores relativos à ética, à cidadania e à humanização das relações.
Precisamos, com urgência, da adoção de postura semelhante pelos gestores acadêmicos das instituições, públicas ou privadas, que ainda conservam, ou mesmo toleram, essas práticas abomináveis de impor aos ingressantes um tratamento violento, humilhante e desumano, sob a justificativa da tradição dos trotes acadêmicos.
Já passou da hora de nossas instituições de ensino superior darem esse passo evolutivo, substituindo as tradições nefastas por práticas realmente coerentes com suas missões, valores e metas institucionais.
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