O Conselho Nacional de Educação (CNE), por meio do Parecer CES/CNE n° 68/2017, cuja homologação pelo Ministério da Educação (MEC) encontra-se suspensa, deu provimento a recurso interposto por instituição de ensino superior para autorizar a oferta do Curso Superior de Tecnologia (CST) em Serviços Jurídicos, cuja portaria de autorização também restou suspensa.
Convém registrar, de início, que cursos semelhantes já são ofertados em outras instituições de ensino superior, as quais, no exercício de suas prerrogativas de autonomia universitária, não necessitaram pleitear autorização junto ao MEC para início da oferta dos cursos superiores de tecnologia.
Acontece que a oferta desse curso está gerando aceso controvertimento, sobretudo em virtude da manifestação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), contrária à sua oferta, tanto que a Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior do Ministério da Educação (Seres/MEC), por meio da Portaria n° 381/2017, instituiu Grupo de Trabalho com o objetivo de aperfeiçoar a política regulatória dos cursos superiores da área jurídica, além de suspender a tramitação dos pedidos de autorização dos CST em Serviços Jurídicos ou equivalentes, nos seguintes termos:
“Art. 1º Fica instituído Grupo de Trabalho, sob a coordenação da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior - SERES, com o objetivo de aperfeiçoar a política regulatória dos cursos superiores da área jurídica.
§1º O Grupo de Trabalho será constituído por representantes do Ministério da Educação, da Ordem dos Advogados do Brasil, das entidades representativas das instituições de educação superior, públicas e privadas e do Conselho Nacional de Educação.
§2º A SERES tornará pública a composição do Grupo de Trabalho, bem como o prazo para apresentação de suas conclusões, em até 15 dias da data de publicação desta Portaria.
Art. 2º Fica suspensa, por 120 dias, a tramitação dos pedidos de autorização de cursos superiores de tecnologia em serviços jurídicos ou equivalentes.”
Se, por um lado, se mostra absolutamente salutar a criação do Grupo de Trabalho em tela, por outro, fica o questionamento se não haveria, também, necessidade de serem criados outros tantos grupos para aperfeiçoar a política regulatória para os cursos das demais áreas do conhecimento, ou se estaria havendo algum tipo de tratamento privilegiado para a Ordem dos Advogados do Brasil.
Além disso, a suspensão da tramitação dos processos em andamento, segundo as normas em vigor, se mostra medida exagerada, ainda mais quando esta suspensão, com aplicação em caráter retroativo, atingiu a homologação do Parecer da CES/CNE acima mencionado e a portaria de autorização do CST em Serviços Jurídicos decorrente, com atingimento direto e descabido de ato jurídico perfeito, porquanto já devidamente publicados no Diário Oficial da União o Despacho homologatório e a Portaria de autorização dele decorrentes.
A polêmica em torno da oferta dos CST em Serviços Jurídicos, contudo, parece exagerada, sobretudo em virtude dos argumentos que vem sendo suscitados para obstar esta oferta, essencialmente lastreados na suposta confusão entre as atividades profissionais a serem desenvolvidas por esses tecnólogos e o receio de aproveitamento dos estudos realizados no âmbito do referido CST para “fragilizar” a formação a ser obtida nos cursos de Direito.
Ora, convenhamos que ambos argumentos mostram-se nitidamente frágeis.
A questão da definição da área de atuação profissional dos egressos do CST em Serviços Jurídicos, com delimitação de suas atividades, a princípio, não parece algo de maior complexidade, até porque sua análise efetiva depende, essencialmente, da análise do projeto pedagógico de cada curso pleiteado, no qual devem estar claramente identificados, além do perfil do egresso, as competências e habilidades a serem desenvolvidas durante seu processo formativo.
Convém ainda registrar que, nos termos do inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, é princípio fundamental o direito ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observada as qualificações profissionais estabelecidas em lei:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
.....
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;”.
Segundo consta do mencionado Parecer CES/CNE 68/2017, a manifestação contrária da OAB, relativamente ao pedido de autorização para oferta do CST em Serviços Judiciários, decorreu, entre outros motivos, à possiblidade de haver “um conflito profissional no que tange a exercer uma atividade sem regulamentação e fiscalização, podendo ainda ser confundido com o exercício da advocacia, principalmente nas causas de menor porte, onde a legislação dispensa, inicialmente, a presença de advogado”.
Neste ponto, entendo impositivo destacar o contido no artigo 1º da Lei n° 8.906/1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a OAB, no qual estão indicadas de forma expressa as atividades privativas da advocacia, verbis:
“Art. 1º São atividades privativas de advocacia:
I – a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais;
II – as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas.”
Ocorre, no entanto, que, a partir do disposto no acima transcrito inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que assegura o livre exercício de qualquer trabalho ou profissão, juntamente com o contido no artigo 1º da Lei n° 8.906/1994, parece não fazer muito sentido a manifestação da OAB no processo regulatório acima mencionado.
Com efeito, se a Constituição Federal assegura o livre exercício de qualquer trabalho ou profissão, observada as qualificações previstas em lei, e se o Estatuto da Advocacia estabelece claramente as atividades profissionais privativas dos advogados, força é admitir que toda e qualquer atividade de caráter jurídico não reservada legalmente aos advogados poderá ser legitimamente exercida pelos tecnólogos.
Outra conclusão não pode surgir da estrita aplicação do princípio constitucional da legalidade, segundo o qual ninguém poderá ser obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude de lei, nos exatos termos do inciso II do já mencionado artigo 5º da Constituição Federal de 1988:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
.....
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”.
Excluídas, portanto, as atividades privativas dos advogados, conforme expressamente apontadas no artigo 1º da Lei n° 8.906/1994, todas as demais atividades tidas como jurídicas podem ser livremente exercidas por qualquer cidadão, inclusive os tecnólogos em serviços jurídicos.
Também se mostra descabido o argumento de que poderia haver choque entre a atuação do tecnólogo em serviços jurídicos e do estagiário de Direito, haja vista a natureza das atividades de estágio, como expressamente lançado no artigo 1º da Lei n° 11.788/2008:
“Art. 1º Estágio é ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente de trabalho, que visa à preparação para o trabalho produtivo de educandos que estejam frequentando o ensino regular em instituições de educação superior, de educação profissional, de ensino médio, da educação especial e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos.
§ 1º O estágio faz parte do projeto pedagógico do curso, além de integrar o itinerário formativo do educando.
§ 2º O estágio visa ao aprendizado de competências próprias da atividade profissional e à contextualização curricular, objetivando o desenvolvimento do educando para a vida cidadã e para o trabalho.”
Evidente, portanto, que a atuação do estagiário, sempre sob supervisão, deverá estar ligada à preparação para o exercício das atividades privativas do advogado, conforme descritas, repita-se, no artigo 1° da Lei n° 8.906/1994, as quais, como já apontado acima, não podem ser exercidas pelo tecnólogo em comento.
O segundo argumento contrário suscitado, que seria a possibilidade de aproveitamento das disciplinas cursadas no âmbito do CST objeto deste texto para “abreviar” a duração de um curso de bacharelado em Direito.
Este aspecto sequer mereceria considerações, pois qualquer aproveitamento de estudos depende da observância da regulamentação interna de cada instituição de ensino, no exercício de suas atribuições de autonomia didático-científica, sendo usualmente requerida aprovação na matéria originalmente cursada, além de semelhança de carga horária e conteúdo com a disciplina a ser dispensada, bem como a atualidade do conhecimento obtido, conforme critérios objetivos, repita-se, definidos por cada instituição de ensino, não cabendo aos conselhos de fiscalização do exercício profissional, como já exposto em ocasiões anteriores, interferir na oferta de educação superior, atividade esta alheia à sua competência legal.
Apenas para demonstrar o descabimento desta suspeita, sem entrar no mérito da questão relativa ao aproveitamento de estudos, pois devemos presumir que as instituições de ensino superior credenciadas pautem suas condutas pelos princípios da ética e da boa-fé, bem como pelo compromisso com a qualidade, cumpre registrar que os cursos de bacharelado em Direito exigem, obrigatoriamente, a realização do estágio supervisionado e do trabalho de conclusão de curso, componentes curriculares não obrigatórios nos cursos superiores de tecnologia.
Assim, ainda que se admitisse, numa hipótese por si só exagerada e fora da realidade, que todas as disciplinas do CST em Serviços Jurídicos, ofertado normalmente em cinco semestres, fossem integralmente aproveitadas no acesso de seu egresso a um curso de bacharelado em Direito, seria necessário cursar, no mínimo, outros cinco períodos, incluindo a realização de todas as etapas do estágio obrigatório e da elaboração do trabalho de conclusão de curso.
Acredito, com base nessas considerações, que a polêmica em torno da oferta dos cursos superiores de tecnologia em Serviços Jurídicos se mostra exagerada, porquanto, além de sua área de atuação, como acima exposto, não se confundir com as atividades privativas dos advogados, a questão do aproveitamento de estudos deverá ser oportunamente apreciada pelas instituições de ensino superior no âmbito de suas normas internas.
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