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O Fies encolheu para os pobres

21/07/2017 | Por: Época | 2852
Rogério Cassimiro/ÉPOCA

Quando Bruna Firmino, então com 23 anos, teve a confirmação de que todos os seus documentos estavam aprovados, os ombros afrouxaram em um respiro de alívio. Era o segundo semestre de 2014 quando, após cinco anos do término do ensino médio, começava a vislumbrar o caminho para o sonhado diploma de arquitetura. Bruna conseguira 75% da mensalidade de R$ 900 cobertos pelo Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) na Universidade Nove de Julho, a Uninove, em São Paulo. “A única pessoa que fez faculdade na minha família foi meu tio por parte de pai, o mais novo dos oito irmãos”, diz. Antes de conseguir o financiamento, Bruna tentara, em 2013, estudar arquitetura, mas perdeu o emprego antes de concluir o semestre. Com o Fies, sua segunda tentativa na graduação parecia mais segura. A insistência compensou. Logo se apaixonou pelas aulas, principalmente as que envolviam artes e trabalhos manuais.

No ano passado, ao fazer a renovação do quarto semestral do Fies, Bruna levou um susto. Ela demorou para conseguir atualizar a situação no sistema on-line, que estava inoperante. “Quando finalmente consegui, descobri que precisava ir ao banco com meu pai, que era meu fiador”, diz. Lá, descobriu que, por descuido, o pai, Roberto Firmino, deixara de pagar uma conta de telefone e seu nome constava num sistema de inadimplentes. Para fazer a rematrícula de Bruna, o pai precisava quitar a dívida e aguardar até que o status de fiador fosse regularizado, o que ultrapassaria o prazo de renovação do Fies. A saída era arrumar outro fiador, alguém que pudesse comprovar renda mensal 100% superior ao valor da mensalidade oficial. Bruna não conseguiu. Procurou o SisFies (sistema de  atendimento do governo) para explicar a situação, mas não houve negociação. “Eles não me deram nenhuma possibilidade. O atendimento foi péssimo. Me disseram que não tinha como continuar usando Fies por ter perdido o prazo e que eu perderia a bolsa”, diz.

Além da decepção por ter sido obrigada a interromper o curso mais uma vez, Bruna ainda tem de lidar com a dívida de R$ 8 mil ao Fies e mais cinco mensalidades em aberto na faculdade. A dívida, hoje, é um problema insolúvel para Bruna e seu marido, Daniel, de 29 anos. Daniel se formou em história com o auxílio do Fies, mas ainda não tem emprego fixo. Trabalha como professor substituto esporadicamente, quando um de seus colegas precisa faltar na escola, e faz bicos dirigindo Uber com o carro da mãe. Bruna é assistente de relacionamentos numa editora. Juntos, Daniel e Bruna tiram cerca de R$ 1.600 por mês. “Sinto que sou capaz de muito mais. Quero voltar a estudar, mas precisaria de uma bolsa integral, e nem sei como quitarei a dívida que tenho hoje”, diz ela. “Antes, tinha a perspectiva de ganhar mais, pois estava estudando para isso. Agora, estou parada com a dívida.”

Há duas semanas, o governo federal baixou a Medida Provisória 785, que muda as regras pelas quais os estudantes universitários poderão pleitear financiamento do Fies, que hoje beneficia mais de 117 mil estudantes universitários. A MP 785 tenta corrigir situações de estudantes, como Bruna, que não conseguem prosseguir na universidade por conta de endividamento, mas o foco principal é dar sustentabilidade financeira ao programa. Um diagnóstico do programa feito em junho deste ano pelo Ministério da Fazenda calculou em R$ 3,1 bilhões o rombo nas contas  do Fies por causa da distribuição indiscriminada de bolsas promovidas até 2015 pelo governo Dilma Rousseff.

Para tentar cobrir esse buraco e evitar o aumento da inadimplência, que está na casa dos 46%, a MP propõe as seguintes mudanças. Ela divide o Fies em três modalidades. O governo passa a ser diretamente responsável pelo subsídio apenas dos estudantes com renda familiar de até três salários mínimos – é o caso de Bruna. A quantidade de beneficiários nessa faixa será limitada a 100 mil estudantes por ano. Antes, o número de vagas para os estudantes de baixíssima renda chegava a 300 mil por ano. 

A maior inovação da MP se dará nas duas modalidades desenhadas para estudantes com renda de até cinco salários mínimos. Pela primeira vez, o governo transferirá para instituições financeiras a concessão do crédito e a análise de risco. Nessas duas modalidades, serão 210 mil vagas. Ao todo, haverá 310 mil vagas do Fies em todo o país a partir de 2018. Oficialmente, todos os estudantes, mais ricos ou mais pobres, terão chance de disputar todas as vagas. Na prática, não é segredo que levarão vantagem os primeiros que têm notas mais altas e perfil socioeconômico mais alinhado com o tipo de cliente a quem um banco normalmente concede crédito. 

“É comum famílias com renda total de até três salários mínimos terem dificuldade para comprovar seus ganhos por conta da informalidade”, diz Sólon Caldas, diretor executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES). O próprio governo admite que os estudantes mais vulneráveis não conseguirão passar pelo crivo dos bancos para obter crédito. “Sabemos que alguns alunos mais pobres ficarão de fora, mas tínhamos de garantir a sustentabilidade do programa”, diz Pedro Pedrosa, diretor de gestão de fundos e benefícios do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) do Ministério da Educação.

As duas modalidades do programa de financiamento desenhadas para estudantes com até cinco salários mínimos de renda total são as que ainda carecem de definições sobre taxas de juros e tempo de carência para devolução do empréstimo. Tudo isso ainda terá de ser negociado com os bancos. De acordo com o governo, os bancos terão acesso a fundos constitucionais das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste para oferecer crédito para estudantes dessas regiões. No caso do Sul e do Sudeste, o governo diz que o recurso virá do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Encontrar um jeito de dividir o risco da alta inadimplência do Fies com instituições faz todo o sentido para as contas públicas. Resta saber o que o governo terá de dar em troca para que os bancos aceitem abraçar esse ônus. Salvo bancos públicos, nenhuma instituição financeira jamais concedeu crédito por filantropia, muito menos aos milhares. Por isso, é natural que a análise de crédito dos bancos privados seja mais rigorosa que a do governo na concessão do financiamento, mesmo para aqueles de maior renda. Os analistas acreditam que o número de vagas oferecidas e não preenchidas pelo Fies será alto, como ocorre hoje desde que o Ministério da Educação, ainda no governo de Dilma, mudou as regras do programa para tornar mais rigorosa a concessão das bolsas. “Nossa expectativa é que muitas vagas, mesmo entre os de renda maior, não sejam preenchidas por conta da análise de crédito”, diz William Klein, presidente da consultoria educacional Hoper. O número de vagas remanescentes entre o segundo semestre de 2015 e o primeiro semestre de 2017 chegou a 155 mil, quase um terço do total de vagas ofertadas nesse período.

A inadimplência na concessão de crédito estudantil é um problema que muitos países enfrentam. Nos Estados Unidos, é uma bolha maior do que a dívida do cartão de crédito. Análises internacionais mostram que uma das razões para o alto número de devedores é o fato de os alunos terem de começar a pagar pelo financiamento antes de terem colhido o benefício do investimento em educação em suas rendas. “O jovem tem de começar a pagar quando ainda se debate com os mesmos problemas financeiros que o levaram a procurar um financiamento para ascender na carreira”, diz Paulo Meyer Nascimento, economista e analista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

 

Nascimento é um defensor do sistema de amortizações contingentes à renda. Nesse sistema, o aluno passa a pagar pelo financiamento quando atinge um determinado patamar de renda, aferido pela Receita Federal na cobrança do Imposto de Renda. Pela MP 785, o governo propõe um meio-termo para que situações de endividamento como a de Bruna não se repitam. O estudante pagará pelo financiamento um valor equivalente a 10% de sua renda pelo prazo máximo de 15 anos. O dinheiro será descontado pelo próprio empregador por meio do sistema eSocial. Mesmo com esse alívio, o mecanismo embute riscos de calote. Analistas avaliam que esse modelo poderá incentivar a informalidade dos estudantes na tentativa de postergar o início do pagamento. Nascimento, do Ipea, diz que o calote poderá ser evitado se o governo estender o prazo de carência.

Em duas semanas de tramitação no Congresso Nacional, foram apresentadas 278 propostas de emendas à MP 785. Ainda é cedo para dizer se o que sairá do Congresso será um Frankenstein. Mas já há alguns consensos em relação a alguns méritos da proposta do governo e a alguns ajustes que precisam ser feitos. O principal acerto da medida é a decisão do governo de dividir com as faculdades privadas e as instituições financeiras uma parcela maior do risco de inadimplência. As faculdades com maior número de alunos inadimplentes terão de contribuir com mais dinheiro para o fundo garantidor do Fies. Pelo modelo atual, as faculdades arcam com apenas 6,5% do débito dos estudantes. No novo modelo, poderão responder por até 23%.

O principal aspecto negativo da MP é a diminuição de vagas para os estudantes mais pobres, como Bruna, cheios de vontade de estudar e pouco dinheiro. A esperança é que governo e Congresso estudem com cuidado as emendas propostas e os riscos de cada uma delas para a vida dos estudantes e para o país. Ajustes finos em concessão de crédito podem representar milhões de reais a menos de déficit e infindáveis oportunidades a mais para a população.


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Legislação

MEDIDA PROVISÓRIA Nº 785, DE 06 DE JULHO DE 2017

Altera a Lei nº 10.260, de 12 de julho de 2001, a Lei Complementar nº 129, de 8 de janeiro de 2009, a Medida Provisória nº 2.156-5, de 24 de agosto de 2001, a Medida Provisória nº 2.157-5, de 24 de agosto de 2001, a Lei nº 7.827, de 27 de setembro de 1989, a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a Lei nº 8.958, de 20 de dezembro de 1994, e dá outras providências. 


Notícias

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