Universidades privadas admitem que estão perdendo alunos na pandemia, mas garantem que a saída não será acatar os apelos por redução de mensalidades. Do outro lado do boleto, alunos ouvidos pelo G1 apontam insatisfação com as negociações entre empresas e famílias que perderam renda durante a pandemia. Os universitários relatam dívidas, planos para trancar a matrícula e recorrem a ações judiciais e a órgãos de proteção ao consumidor para evitar a evasão.
Com o aumento da inadimplência, as universidades particulares têm demitido professores para manter as contas em dia. Na Uninove, em São Paulo, os professores souberam da demissão quando acessaram as plataformas de aulas. Na Universidade São Judas, alunos lançaram a hashtag #RecuaÂnima contra os cortes no corpo docente do Grupo Ânima de Educação, que gere a instituição. A Cruzeiro do Sul Educacional afirma que também precisou demitir e o sindicato dos professores entrou com uma nova ação no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) contra os cortes.
Nesta reportagem você verá detalhes sobre cada um dos pontos do imbróglio. Eles serão contados pelas histórias e visões de alunos e representantes como:
Bruna Thaís Rubinato, de 21 anos, estudante de medicina na Universidade Anhembi Morumbi em Piracicaba; ela é um dos quase 600 estudantes que foram à Justiça por redução de mensalidades que podem custar até R$ 10.258,84. Com a renda familiar afetada pela pandemia, já pensa em trancar o terceiro ano de curso.
Thais Cristina Tavares, de 23 anos, estudante de direito que se juntou a colegas pedindo #ReduzMackenzie. Com os pais autônomos sem trabalho na pandemia, viu o débito com as mensalidades de R$ 2,4 mil acumular e agora busca alternativa para pagar os atrasados e ter permissão para fazer a matrícula.
Marcos (ele prefere não se identificar), de 22 anos, estudante do último ano de administração de empresas na PUC de São Paulo que foi ao Procon e obteve o parcelamento de atrasados de R$ 12 mil e ainda não sabe como vai pagar as mensalidades de R$ 3.022, de julho até dezembro.
Thiago Lins, advogado do grupo Laureate (Anhembi Morumbi), que diz que há abertura para negociação dentro da particularidade de cada aluno, mas que a empresa cumpre o contrato de ensino e vai repor aulas práticas perdidas.
Sólon Caldas, diretor-executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), que diz que a entidade é contrária ao desconto linear e horizontal nas mensalidades e que os custos das IES sofreram um aumento significativo na pandemia.
Evasão (e inadimplência) em crescimento
A estimativa do Instituto Semesp, mantido pelo Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo, é que a evasão do ensino superior cresceu 31,3% entre abril e maio. No mês em que o país terminou com 29 mil mortes por Covid e sem aulas presenciais, 265 mil universitários tinham desistido ou trancado o curso, 65 mil a mais do que no ano anterior. No Brasil, a estimativa é que o setor privado tenha mais de 6 milhões de matrículas em cursos presenciais e EAD.
A mesma pesquisa apontou que maio foi marcado por uma queda na inadimplência, que cresceu 72% em abril. "Os acordos firmados entre as IES e os alunos que comprovaram dificuldades para pagar as mensalidades, explica essa melhora na inadimplência", analisa a pesquisa do Instituto.
A queda na inadimplência foi baseada na principal estratégia construída pelas empresas, que fizeram pesquisas de mercado e viram que a pandemia afetou de forma distinta seus clientes. Pesquisa da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes) aponta que "a perda de renda entre os alunos é real", mas só 29% sofreu impacto classificado como alto (perda do emprego, contrato suspenso ou redução de 70% da jornada).
"Somos contrários a um desconto linear igual para todos, porque vai alcançar quem não precisa do desconto e prejudicar quem mais precisa de até mesmo um diferimento no pagamento." diretor-executivo da ABMES.
Alunos de medicina na Justiça
Os alunos e pais são contrários a esse posicionamento das empresas. Em diversos estados do país estudantes fizeram como Bruna Thaís, e outros quase 600 alunos de medicina da Universidade Anhembi Morumbi, em três cidades no estado de São Paulo.
Na Justiça, tentam um desconto de 50% no valor da mensalidade durante a pandemia. Após ter conseguido uma liminar, o grupo sofreu um revés e a tramitação foi paralisada e o mérito será julgado na 37ª Vara Cível do Foro Central junto com outro processo que lá tramita movido pela União Nacional dos Estudantes (UNE). Sem a perspectiva de um julgamento rápido, a preocupação é com a continuidade.
"Se a faculdade não conceder o desconto, talvez eu tenha que pedir trancamento. (...) Temos medo de perder a vaga na faculdade, se não conseguirmos pagar. Medo de deixar anos de estudo para trás." - Bruna Thaís
Bruna e outros estudantes tentam convencer a Universidade que não há como as famílias arcarem com as mensalidades. Segundo ela, há famílias que perderam toda a renda. Além disso, mesmo com aulas on-line, os alunos saem prejudicados ao não poderem cursar as disciplinas práticas — que, aliás, não têm previsão de volta em meio a tantas incertezas sobre o fim da pandemia.
"E as famílias não pagam só a mensalidade. A maior parte dos alunos não mora nas cidades [onde o curso é oferecido], então eles pagam também aluguel e outras contas", explica Bruna.
O advogado Olavo Leonel Ferreira, que representa o grupo de alunos, diz que houve tentativas de conciliação, mas nenhuma resultou em acordo. Segundo ele, a pendência na Justiça mantém famílias em ansiedade, sobretudo às vésperas do início de um novo período letivo.
"A situação está ficando muito difícil. Mesmo com a situação ainda pendente, a cobrança ainda liga para os pais, com ameaça de negativar os inadimplentes", conta o advogado.
Anhembi Morumbi diz estar 'sensível'
A defesa do grupo Laureate, ao qual pertence a Anhembi Morumbi, diz que a empresa está "aberta a negociação" e "não há nada fechado porque a ação é recente", mas destacou que o serviço vem sendo prestado, segundo Thiago Lins, sócio da Bichara Advogados, que representa a Laureate.
"Claro que a universidade está sensível a oferecer de acordo com a particularidade de cada aluno condições de pagamento, com dilatações de prazo para negociar mensalidades sem juros e sem multa" - Thiago Lins, advogado da Anhembi Morumbi.
Lins ainda acrescentou que a universidade está fechada por questões sanitárias, mas isso não quer dizer que as aulas práticas não serão oferecidas. "A gente precisa ver a mensalidade no período anual. Agora, assim que voltarem as aulas -- e o plano é anual -- não quer dizer que as aulas práticas não serão prestadas", afirma o advogado.
Manutenção do aluno
No embate entre as universidades que alegam também aumento de despesas e os alunos que relatam perda de renda, outro ponto monitorado no mercado é o de alunos beneficiados por descontos regulares por desempenho no Enem e pagamento dentro do prazo. A Quero Educação, empresa de tecnologia que oferece serviços para o mercado educacional e bolsas de estudo, afirma que tem sido recorrente os casos de alunos que não conseguem quitar a dívida no período.
"A instituição tem que trabalhar a manutenção dos alunos dando opção que realmente caiba no bolso do estudante, realmente negociar. Só simplesmente facilitar o pagamento do que está atrasado, talvez não resolva, porque vai ter a mensalidade do mês seguinte”, analisa Flávio Rabelo, diretor de Inteligência e Novos Negócios da Quero Educação.
É justamente da oferta de soluções insatisfatórias que reclamam alguns dos estudantes que foram ouvidos pelo G1 como Marcos, de 22 anos, estudante do último ano de administração de empresas na PUC de São Paulo.
Filho de empresário, a família do estudante tem duas empresas, mas uma delas está parada e a outra perdeu 80% dos rendimentos desde março por causa da pandemia. A dívida de Marcos com a PUC-SP é de pouco mais de R$12 mil e ele ainda precisa pagar as mensalidades de R$ 3.022, de julho até dezembro, para poder se formar no final do ano. Sem conseguir uma redução do valor da dívida, Marcos procurou o Procon.
“Após a reclamação no Procon, a Universidade ofereceu parcelar a dívida em 6 vezes sem juros, e não teve mais abertura para discussão. Eles já mandaram o contrato por e-mail para assinarmos”, conta o estudante, falando que, mesmo com o parcelamento, a família não sabe se terá dinheiro para pagar a dívida e as mensalidades até o final do ano.
Na realidade da estudante Thais Cristina Tavares, de 23 anos, as mensalidades de R$ 2,4 mil viraram um problema quando a única renda da casa virou a remuneração do estágio. A família pediu redução do valor da mensalidade à Universidade Presbiteriana Mackenzie, mas teve o pedido negado.
“A única oferta do Mackenzie foi parcelar o valor da mensalidade atrasada em 3 vezes. Parcelar o valor integral não resolve nosso problema”, diz a universitária.
Thais se uniu a colegas que estão na mesma situação de inadimplência e, no final de abril, lançaram a campanha nas redes sociais #ReduzMackenzie, em que alunos ou responsáveis financeiros pelos seus estudos enviam cartazes com a frase, pedindo a redução da mensalidade durante a pandemia.
Sem negociação e sem poder pagar a faculdade, Thais já soma três mensalidades atrasadas. Nesta semana, além da parcela de julho, ela também terá que pagar a rematrícula no curso, também no valor de R$ 2,4 mil.
“A universidade enviou uma carta explicando que, se não eu pagar tudo o que devo até o dia 10, não poderei fazer a rematrícula. (...) Meus pais pediram ajuda à família e ao meu irmão, que está trabalhando neste momento, para conseguir pagar a todo o valor atrasado até a data e eu conseguir continuar o curso” - Thais Cristina Tavares
Nesta semana, a universidade anunciou reajuste nas matrículas das turmas que foram aprovadas no vestibular do meio do ano. Em nota, o Instituto Presbiteriano Mackenzie, mantenedor da universidade, afirmou que está aberta a negociações com as famílias que estejam com dificuldade financeira, mas confirmou que somente os alunos sem atrasos poderão se matricular para o próximo semestre.
Sem emprego na pandemia
Também sem dinheiro para a rematrícula está a estudante de direito Regiane Alves, de 51 anos, aluna da Universidade São Judas Tadeu. Ela conta que perdeu o emprego no início da pandemia e já está com três mensalidades de R$1.200 atrasadas.
“Entrei em contato com a São Judas e pedi redução das mensalidades atrasadas. Eles ofereceram retirar a multa dos atrasos e parcelar o valor total, mas as parcelas terão mais de R$ 600 de juros. O valor das parcelas continuou muito alto”, conta Regiane.
“Agora tem a rematrícula, no valor da mensalidade. A universidade também não reduziu o valor. Vou ter que me virar, entrar em cheque especial. Falta só um ano e meio para eu me formar. Se parar de estudar agora, ficará mais difícil retomar”, diz a universitária.
Em nota, a assessoria de imprensa da Universidade São Judas Tadeu informou que trata cada solicitação financeira de forma individual e que tem canais oficiais para os alunos que precisam de soluções financeiras.
A universidade acrescentou que não teve diminuição dos custos desde o início da pandemia, “mas sim, um incremento decorrente do uso de alta tecnologia e adequações devido à nova logística de atendimentos home office”, informou.
“Aproveitamos para salientar que, neste contexto, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou uma nota técnica (14/2020) no sentido de que, havendo continuidade da prestação de serviço de forma alternativa com equivalente de qualidade, ‘os consumidores evitem o pedido de desconto de mensalidades, a fim de não causar um desarranjo de salário de professores, aluguel, entre outros’”, afirmou em nota a Universidade São Judas Tadeu.
Sem perspectivas imediatas, as universidades se preparam para um segundo semestre com menor captação de alunos e novos ajustes em custos. Uma expectativa do setor é que dois projetos de lei em tramitação no Congresso ajudem alunos que estão em dívidas com o Fies e também os demais estudantes.
"Não é possível nem viável "receita de bolo" única que atenda a todo o sistema. Essa é a razão pela qual cada instituição tem que agir no contexto de onde está inserida", diz Sólon Caldas, da ABMES.