Depois de aumentar oportunidade para mais de 1,2 milhão de brasileiros entrarem na universidade nos últimos anos, o país corre o risco de regredir a patamar pior que o de 10 anos atrás, quando apenas um quarto da população em geral e 13% dos jovens entre 18 e 24 anos tinham acesso ao ensino superior.
A reforma tributária (Projeto de Lei 3.887/2020), em tramitação em Brasília, pode decretar o fim do maior programa educacional do país, o Universidade para Todos (ProUni), voltado para quem não tem condições de pagar os estudos. Além do risco de onerar o setor, com provável aumento de mensalidades.
Somado à falta do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), que também depois de viver seus dias de glória está agora à míngua, o setor privado, responsável por nada menos que três quartos das matrículas nessa fase do ensino, prevê a debandada de 1,6 milhão de estudantes da graduação nos próximos 10 anos. Em Minas, somente no ano que vem, cerca de 346 mil estudantes devem pleitear uma cadeira em universidades particulares.
A educação particular no país concentra 15,5 milhões de alunos, sendo 9,1 milhões no ensino básico (20% do total do país) e 6,5 milhões no superior (75% do total). Na base de cálculo dos tributos das instituições privadas do ensino básico ao superior estão o PIS (Programa de Integração Social), Cofins (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social), CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e imposto de renda de pessoa jurídica.
Na matemática atual, estão isentas desse bloco de tributos parte das instituições que oferecem bolsas do Prouni, no caso do ensino superior. O PL 3.887/2020 faz cair por terra esse acordo, ao retirar da cesta o PIS/Cofins, cuja alíquota varia de 0% a 3,65%, e substituí-lo por uma nova contribuição sobre bens e serviço, a CBS, de 12% (o que atinge todo o setor de educação privada).
Com isso, calculam as instituições, quem não pagava os 3,65% terá que arcar com 12% (inclusive as classificadas como “sem fins lucrativos”), a serem prontamente repassados para as mensalidades. “Não será interessante oferecer as bolsas sem a contrapartida”, avisa o diretor-executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), Sólon Caldas. “Instituições sem finalidade lucrativa que não pagam impostos vão passar a pagar a CBS. Antes, ofereciam bolsa, mas não tinham o peso do tributo. Agora, terão incentivo zero. E as com fim lucrativo que pagavam 3,65% com as bolsas, pagarão agora 12%”, explica.
A previsão de impacto é de aumento de até 11% em mensalidades de escolas e faculdades. De acordo com o setor privado, o peso da Reforma Tributária recai especialmente sobre as classes média e baixa, com renda familiar per capta de até R$ 3.145. Tanto no ensino superior quanto no básico, 89,6% dos alunos têm renda familiar per capta inferior a esse valor, sendo que 47,3% do total têm vencimentos de até R$ 1.045.
Na graduação, as instituições oferecem hoje 532,3 mil bolsas do Prouni, sendo 412,7 mil integrais e 119,6 mil parciais. “Enquanto um estudante do ensino superior público gera um ‘gasto orçamentário’ de R$ 28,6 mil por ano, o estudante do Prouni representa um ‘gasto tributário’ de R$ 4,6 mil por ano (valor que se deixa de arrecadar em impostos). Por 16% do custo, forma-se pelo Prouni um estudante com índices de performance equivalente no Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes)”, afirma nota técnica produzida pela Abmes, Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep) e outras instituições do setor.
A estimativa é de que, se aprovada a reforma nos moldes propostos, faculdades, universidades e centros universitários percam, de imediato, 322.282 alunos – 161.465 deles por causa de reajustes e outros 160.816 que abandonariam o sonho do diploma sem o benefício do ProUni. Nos próximos 10 anos, levantamento aponta que 1,3 milhão de brasileiros deixariam de ingressar na graduação em instituições privadas, totalizando 1,6 milhão de pessoas privadas de acesso ao diploma de ensino superior. “O ProUni é a oportunidade para os menos favorecidos cursarem uma medicina, por exemplo, cuja mensalidade pode chegar aos R$ 10 mil”, afirma Sólon Caldas.
Fies
Aos desajustes do Prouni se soma um outro fator-chave para o ingresso no ensino superior: o Fundo de Financiamento Estudantil, fadado a fechar apenas 54 mil contratos a partir do ano que vem, conforme normatização do Planalto. O Fies teve seu auge em 2014, quando alcançou 731 mil contratos. Em franco declínio, chegou ao patamar de 85 mil ano passado e, para este ano, não deve passar dos 80 mil.
“São 100 mil vagas oferecidas com recurso público, mas 20% ficam sem preenchimento devido às condições de acesso”, afirma o diretor da ABMES. “Quem paga mensalidade no limite financeiro não vai suportar, vai evadir e, com isso, cada vez mais o país aumenta sua desigualdade social, que já é absurda. As únicas portas de entrada da população de menor renda (à universidade) são Prouni e Fies. São duas políticas de sucesso que democratizaram o acesso ao ensino superior. Sem eles, a graduação voltará a ser algo só de classe rica”, diz.
A quantidade de brasileiros a cursar a graduação saiu do patamar de 26%, em 2010, para 37,4% nove anos depois, conforme dados do Censo da Educação Superior. No mesmo período, o número de universitários entre 18 e 24 anos (idade correta para essa etapa acadêmica) subiu de 13% para 21,4%.
De acordo com o Plano Nacional de Educação (PNE), o Brasil deveria ter 50% de sua população total nas universidades até 2024 e 33% dos jovens com até 24 anos. Com o golpe duplo no Prouni e no Fies, levantamento feito pela Abmes em parceria com a empresa de estudos educacionais Educa Insight projeta que as metas só possam ser cumpridas quase duas décadas depois, em 2041.
Problema para as próximas gerações
“Se não tivesse o Prouni, provavelmente eu não estaria estudando”, afirma a estudante do 6º período de jornalismo Luana Ferreira Silva Souza, de 19 anos. “Procurei o ProUni porque eu não queria fazer UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), mas também não tinha condição alguma de pagar pela graduação em nenhuma universidade, muito menos na PUC Minas, que escolhi. Estudei muito durante o ensino médio, porque dinheiro para cursinho também não tinha. Era eu por mim mesma e se não desse conta, ficaria sem estudar.”
Luana é a primeira de uma família simples de um distrito de Governador Valadares, no Leste de Minas, a fazer curso superior. A mãe, auxiliar de serviços gerais numa escola estadual, terminou o ensino médio apenas em 2013. O pai, com o mesmo nível de escolaridade, é funcionário do serviço de zoonoses. Foi na localidade de 2 mil habitantes que ela também concluiu a última etapa da educação básica e estudou muito para ter boa nota no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e pleitear a bolsa integral do Prouni.
“Em Belo Horizonte, tenho que arcar com aluguel, gasto de casa e as outras despesas da universidade. Se ainda tivesse de pagar a mensalidade, não daria conta”, relata. Ela diz que desde a mudança de governo teme o futuro de programas como o ProUni e o Fies. “Há um medo constante (dos alunos) de perder essas portas de acesso (à graduação) e quando vemos certas medidas sendo tomadas, percebemos que o temor não é infundado”, diz.
Para a jovem universitária, o futuro das próximas gerações é incerto. “Acredito que mesmo a reforma sendo aprovada rápido não haverá consequências para quem já está terminando o curso. Mas minha irmã, que está no ensino médio, e tantos outros que precisam desse tipo de apoio não vão conseguir”, afirma. “Meus pais fizeram de tudo para me incentivar e, não fosse por esse caminho, sabem que não conseguiriam me bancar numa faculdade.”
O temor da universitária está em sintonia com as estimativas das mantenedoras de instituições privadas, segundo as quais não só não haverá ingresso de alunos, como deve haver uma evasão em massa dos já matriculados. E o baque no bolso dos estudantes poderá ter consequências mais amplas, se o cenário imposto pela reforma tributária se configurar, com instituições de pequeno porte, que atendem a determinadas regiões, correndo risco de fechar as portas.
Em 2018, o Censo da Educação Superior contabilizou 229 instituições públicas e 2.238 privadas no país. Em Minas, universidades, faculdades e centros universitários particulares somam mais de 300. O grande erro, na opinião do direto-executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), Sólon Caldas, é o Brasil passar a enxergar o financiamento estudantil como rombo fiscal, como despesa.
“Em um país em que o ensino superior é eminentemente privado, o governo tem que ter uma política pública de financiamento que atenda às necessidades. A Constituição diz que educação é dever do estado e direito de todos, mas o Ministério da Economia passou a tratá-la como rombo e adotou o discurso da inadimplência no Fies”, relata.
“O Serasa anunciou antes da pandemia 63 milhões de brasileiros inadimplentes. Não era por causa do Fies, mas da conjuntura, dos 12 milhões de desempregados”. afirma. “O aluno contraiu o financiamento, mas não tinha emprego, não tinha condição de pagar. Não pagava financiamento, nem água nem luz. Mas o governo preferiu adotar o discurso de que o Fies era o culpado do rombo que existia no país.”
Escolas falam em risco de “apagão”
Sólon Caldas ressalta que, com a reforma proposta, o governo põe em xeque a estrutura educacional do país. “A estrutura do ensino superior é sobretudo privada. Se a põem em xeque, acaba com a educação. Como o brasileiro vai estudar, se o governo não tem capacidade de absorver esse contingente?”, questiona.
A educação básica e a superior privada desoneram o governo em R$ 225 bilhões por ano, de acordo com o setor. “Se todo mundo que estuda nas particulares fosse para as públicas, o Estado teria que arcar com esse valor. No ensino básico, há possibilidade de deixar a escola particular e passar para a pública. No ensino superior, não. Ou o aluno permanece e arca, ou evade, porque na universidade pública não tem vaga suficiente.”
Ele lista ainda o risco de um “apagão” de mão de obra. “Quem perde com tudo isso é o país. Hoje, o governo não sente o impacto, mas daqui cinco anos, tempo médio de formação da graduação, haverá falta de profissionais qualificados no país, porque não tem alunos ingressando. Logo, haverá impacto grande no desenvolvimento.”
O Estado de Minas questionou o Ministério da Educação sobre os argumentos das mantenedoras da educação privada mas, até o fechamento desta edição, apesar de vários pedidos, não houve retorno. Em coletiva sobre o Censo da Educação Superior, o secretário de Educação Superior do MEC, Wagner Vilas Boas, argumentou que outras formas de financiamento estão em vigor e “compensam” a redução do Fies a partir de 2014. De acordo com o Censo, 61% dos suportes hoje aos estudantes são financiamentos e bolsas concedidas pelas próprias instituições de ensino. O secretário informou ainda que na semana passada foi publicada resolução com programa de refinanciamento da dívida do Fies, em até 174 vezes, para alunos que estão com o “nome sujo”.