A educação brasileira mostra suas chagas não é de hoje. No cotidiano das escolas ou nos resultados escancarados por avaliações nacionais, deficiências e desigualdades parecem registrar no quadro-negro traços tão marcantes quanto os de números e letras. Mas, agora, o Brasil se vê diante de um ultimato: seu desenvolvimento social e econômico no cenário pós-pandemia passa pela educação. Essa é umas conclusões de dois relatórios inéditos da Organização para a Co- operação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que mostram ainda que a COVID-19 deixará uma conta ainda mais cara a pagar se o problema não for enfrentado de frente.
Os documentos apresentam o panorama do ensino infantil ao superior no Brasil em uma perspectiva internacional. Com apoio técnico do Todos pela Educação e do Itaú Social, elencam prioridades e recomendações para as políticas educacionais. Segundo a OCDE, aumentar os níveis de escolaridade com qualidade e equidade será vital para que o país se junte a outras economias mais avançadas. Em 2018, quase metade das pessoas com idades entre 25 e 64 anos não havia concluído o ensino médio (47%), mais que o dobro da média da OCDE, de 22%.
A grande proporção de jovens que não concluem os estudos ou não o fazem dentro do tempo esperado é resultado de uma série de aspectos, incluindo a repetência e um currículo pouco engajador. A organização afirma ainda que outras causas de abandono dos estudos – procurar emprego ou assumir responsabilidades de sustento da casa – podem ter sido alimentadas ainda mais pelos efeitos da pandemia, especialmente entre os mais vulneráveis.
A equidade é tema abordado inúmeras vezes ao longo dos relatórios. A OCDE afirma que o contexto social e econômico do Brasil tem um impacto maior sobre a participação e os resultados de aprendizagem do que nos outros países da organização. Mesmo com o aumento das taxas de matrícula servindo para reduzir as lacunas no acesso à educação, as crianças começam a escola com níveis já bastante diferentes de desenvolvimento e “prontidão para aprender”.
“As desigualdades refletem ainda a maneira como a oferta escolar de baixa qualidade e contextos familiares socialmente mais vulneráveis se combinam para que as habilidades básicas não sejam adquiridas logo no início, colocando os alunos de nível socioeconômico mais baixo em uma trajetória que leva a um desempenho escolar fraco, altas taxas de evasão e oportunidades de vida limitadas”, ressalta a publicação. “Para conseguir oferecer qualidade e equidade, o Brasil precisará definir prioridades claras e garantir os recursos necessários para a educação”, afirma.
O diretor de Educação e assessor especial em Política Educacional da Secretaria-Geral da OCDE, Andreas Schleicher, afirma que os resultados da educação no Brasil ainda estão abaixo do que o país precisa atingir para aumentar seu desenvolvimento social e econômico. Ele ressalta que a Covid interrompeu o progresso feito nos últimos anos e que a pobreza e a desigualdade estão subindo. “Os dados são pré-Covid, ou seja, não foram causados pela pandemia, mas é algo que só a educação pode resolver. O maior esforço que uma sociedade pode fazer para diminuir a desigualdade é investir em educação”, destaca.
A presidente-executiva do Todos Pela Educação, Priscila Cruz, lembra que para a OCDE o momento atual é de mitigar os efeitos imediatos do prolongado período de fechamento das escolas e, em paralelo, retomar a visão de médio e longo prazos para as políticas educacionais do país. “E para avançarmos nesses dois caminhos, o relatório traz análises detalhadas e recomendações específicas, algo razoavelmente inédito nas publicações da OCDE para o Brasil”, diz.
Pisa
O relatório “A educação no Brasil: Uma perspectiva internacional” traz um olhar especial ao Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) em relação a países comparativamente relevantes, incluindo os da América Latina e os membros da OCDE. “Muitos jovens não atingem os níveis mais básicos de capacidade de leitura. O Pisa avaliou ainda um nível abaixo do que esperamos de proficiência para a faixa etária de alunos. Por exemplo, há uma taxa altíssima de estudantes com 15 anos com dificuldade de distinguir fatos de opiniões. É uma realidade que precisa mudar”, ressalta Andreas Schleicher.
De acordo com a OCDE, no Brasil, a reprovação é mais comum entre alunos de famílias mais pobres e rurais e entre alunos do sexo masculino. Essas disparidades são maiores no Brasil do que em muitos países comparáveis. Os alunos de nível socioeconômico mais baixo têm pelo menos duas vezes mais probabilidade de ter repetido pelo menos um dos anos finais do ensino fundamental do que os alunos de nível mais alto (28% em oposição a 13%, respectivamente). Já nos países da OCDE, a diferença absoluta é muito menor, em torno de 9% e 3%, respectivamente. Ainda segundo o relatório, uma das consequências da repetência é que os estudantes encerram a jornada escolar mais tarde do que o normal: 26% de todos os alunos do ensino médio, no Brasil, são dois ou mais anos mais velhos do que a idade esperada para seu ano escolar.
Já a publicação “Education policy outlook: Brazil” (“Panorama das políticas educacionais: Brasil”) traçou um panorama das respostas do sistema de ensino, incluindo ações do Ministério da Educação, sociedade civil e exemplos bem-sucedidos em estados. A superintendente do Itaú Social, Angela Dannemann, ressalta que o Brasil obteve muitas conquistas no campo da educação nas últimas décadas e suas políticas públicas foram exemplo para outras economias emergentes. “Mas, as taxas de realização do ensino médio e superior são insuficientes comparadas a outros países e metade dos jovens de 15 anos não têm nível básico de proficiência em leitura, segundo o Pisa. O aperfeiçoamento, continuidade e investimentos em políticas públicas são urgentes para oferecer qualidade e equidade aos estudantes brasileiros”, afirma.
Para o futuro, a OCDE sugere priorizar uma resposta nacional mais coerente de recuperação da aprendizagem; apoio a educadores no desenvolvimento de novas habilidades e conhecimentos; e tratamento das lacunas de aprendizagem com urgência para minimizar a interrupção das jornadas educacionais dos estudantes.
Previsão de retomada nas universidades
Depois de 15 meses sob os impactos da pandemia do novo coronavírus, o setor privado da educação superior, responsável por quase 90% das matrículas no país, começa a ver sua luz no fim do túnel. Sem saber ainda quantos alunos efetivamente perdeu e assistindo ao recuo de potenciais calouros nesse período, pesquisa divulgada ontem mostra o aumento de intenção de novas matrículas no primeiro semestre de 2022. A vacinação é o motor dessa engrenagem, que deverá encontrar ainda meios de garantir a permanência dos possíveis recém-chegados, face à falta de financiamento público estudantil.
Segundo a terceira edição da pesquisa “Observatório da educação superior: Análise dos desafios para 2021”, 39% dos entrevistados que tomaram pelo menos a primeira dose da vacina desejam começar a graduação neste segundo semestre e 41% no início de 2022. Em junho do ano passado, a pesquisa mostrou que 36% pensavam iniciar em fevereiro do ano que vem, enquanto 43% decidiriam apenas quando a situação normalizasse.
Entre os jovens que ainda não foram vacinados e participaram desta terceira fase da pesquisa, apenas 16% responderam que têm intenção de começar seus cursos no meio do ano e 43% vão aguardar o próximo ano letivo. Os não imunizados representam o público mais inseguro: 29% não se decidiram quando vão se matricular. Entre os vacinados, esse percentual é de 9% – 3,2 vezes menor.
O levantamento foi feito pela empresa de pesquisas educacionais Educa Insights, em parceria com a Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES). “É uma sinalização positiva da retomada do segmento, mesmo que não seja a plenitude e que não vá resolver o dilema enfrentado pelo setor durante a pandemia”, afirma o diretor e fundador da empresa, Daniel Infante.
A retomada se anuncia para o ano que vem, mas acompanhada de várias interrogações e desafios. A primeira é recuperar a base de alunos. A estimativa da Abmes é de que um dos resultados da pandemia seja a redução da ordem de 8% a 9% no número de matrículas no ensino presencial, números que deverão ainda ser confirmados pelo Censo da Educação Superior. “Esse impacto diz respeito não só ao ingresso (de novos alunos), mas àqueles estudantes que pararam de estudar por problemas financeiros ou de acesso tecnológico”, ressalta o diretor presidente da associação, Celso Niskier. “Em termos gerais, o que tornou esse efeito menor foi o crescimento da EAD (educação a distância), seja pela opção de menor custo diante da crise seja pela percepção maior da sociedade das possibilidades e qualidades desse tipo de ensino)”, acrescenta.
Financiamento
Nesse quebra-cabeça, entra ainda outro elemento: o suporte financeiro a alunos em condições socioeconômicas menos favorecidas. Por causa das regras mais recentes, de 100 mil vagas no Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), apenas 46 mil foram preenchidas, segundo levantamento das mantenedoras. “Para retomar, tem que mudar a forma (do Fies), porque cada alteração pela qual ele passou nos últimos anos piorou o critério de acesso. Deixou de ter cunho social para atender ao lado fiscal do governo. Observamos que outros tipos de financiamento ficaram mais atrativos. Hoje, o aluno prefere ter bolsa na instituição onde estuda e não contrair dívida”, diz o diretor-executivo da ABMES, Sólon Caldas.
O problema é que a demanda é maior que a oferta. As instituições afirmam não ter caixa para bancar e aquelas de pequeno e médio porte se encontram no lado delicado da balança. O setor defende o Fies emergencial para ajudar estudantes e linha de crédito para universidades e faculdades. “Nesta pandemia, elas cumpriram papel que deveria ser do governo, concedendo bolsas, descontos e atendendo às necessidades individuais dos alunos. Eles tiveram consequências financeiras, e para manter esse aluno matriculado foi preciso dar ainda mais descontos, senão a evasão tinha sido maior”, conclui o diretor.