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A quem prejudica formar mais médicos?

07/10/2025 | Por: ABMES | 1276

Janguiê Diniz*

Apesar do papel central que exercem na formação profissional e no desenvolvimento econômico do Brasil, as instituições privadas de educação superior parecem não ter direito a um minuto de paz. Frequentemente, o setor é submetido a posicionamentos e questionamentos que em nada dialogam com a realidade. O episódio mais recente consiste em um levantamento feito pela Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), e publicado na Folha de S. Paulo, que se desdobra em uma crítica contundente à abertura de 77 novos cursos de Medicina nos últimos dois anos.

Com base em dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), o estudo mapeou as autorizações de abertura de processos de novos cursos de Medicina concedidas por decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). A judicialização foi o recurso encontrado pelas instituições privadas de educação superior tendo em vista que, desde 2018, novas autorizações (já restritas a editais do Programa Mais Médicos) foram submetidas à moratória pelo Ministério da Educação (MEC). Mesmo com o fim da suspensão, em 2023, até hoje nenhuma nova graduação foi liberada pelo trâmite regular da pasta.

Neste período, que contemplou uma epidemia de proporções catastróficas (com mais de 700 mil mortos só no Brasil), o STF não se omitiu e, em um claro sinal de consciência da urgência de suprir a carência de médicos no sistema de saúde, autorizou a abertura de processos para pedido de novos cursos de Medicina; decisão que coube ao MEC acatar.

Essa judicialização consiste em um indicativo claro de que o atual mecanismo de autorização de novos cursos de Medicina não está funcionando por uma série de fatores, inclusive pela ausência de uma política pública capaz de responder às demandas do sistema de saúde. Portanto, falar em “expansão desordenada” das vagas ofertadas pelas instituições privadas em função daquelas garantidas por meio de decisões judiciais não só desconsidera a realidade como mostra a necessidade de o Estado retomar seu papel de regulador da política educacional, em vez de se manter paralisado.

Neste sentido, quero aproveitar este espaço para, mais uma vez, combater uma premissa equivocada: a de que expandir a formação médica é, em si, um problema. Ora, a pergunta que se impõe é simples e objetiva: a quem interessa limitar a formação de novos médicos no Brasil?

O estudo da FMUSP projeta que, em 2030, o Brasil terá 5,3 médicos por mil habitantes, e sinaliza o número como se fosse desproporcional às necessidades do país. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), em 2023, o Brasil contava com 2,2 médicos por mil habitantes, quantidade que nos colocava nas últimas posições do ranking global, à frente apenas de Índia, África do Sul e Indonésia. Nesse sentido, caso a projeção esteja correta, trata-se de uma correção mais do que necessária.

Outro ponto pouco debatido é o de que a população não busca simplesmente “médicos” em número absoluto, mas especialistas: ginecologistas, oftalmologistas, cardiologistas, cirurgiões. Ao medir apenas a razão médicos/habitantes, sem distinguir a oferta de especialistas, a análise se torna incompleta. Mesmo que alcancemos a projeção de 5,3 médicos por mil habitantes, continuaremos com índices muito baixos quando recortados por especialidades estratégicas. Isso, sem falar nas micro especialidades, que vêm tomando conta das consultas pelo país. É justamente aí que reside o verdadeiro gargalo do sistema.

A Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), vinculada ao Ministério da Educação (MEC), enfrenta há anos o desafio de expandir vagas de maneira equilibrada, considerando especialidades e regiões. Hoje, a oferta é insuficiente, mal distribuída e com taxas relevantes de ociosidade em áreas menos atrativas. Mais egressos da graduação pressionam o sistema a abrir mais vagas de residência, o que deveria ser visto como positivo.

Além disso, a crítica recorrente de que os novos cursos seriam precários não se sustenta diante dos dados oficiais. Em 2023, o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) mostrou equilíbrio entre estudantes de instituições públicas e privadas, e os cinco melhores conceitos foram de cursos privados. Além disso, o MEC já implementa instrumentos de controle robustos: supervisão in loco, suspensão de Fies e Prouni para cursos mal avaliados, limitação de vagas e, agora, o Enamed, exame nacional anual para medir a qualidade da formação médica. Ou seja, não há espaço para generalizações depreciativas contra a iniciativa privada.

Cabe ressaltar, ainda, que a expansão de cursos de Medicina no interior não é mero resultado de lobby, como alguns querem fazer crer. Esse crescimento resulta, sobretudo, da política instituída no âmbito do Programa Mais Médicos. A interiorização é um dos elementos centrais da política, exatamente com o objetivo de levar saúde, educação e desenvolvimento econômico para regiões historicamente negligenciadas.

É inegável que formar mais médicos também tem efeitos sobre o mercado: aumenta a concorrência e reduz barreiras de reserva profissional. Para a população, isso se traduz em mais opções de atendimento, preços mais acessíveis e maior capilaridade da assistência. Em um país desigual como o Brasil, isso é um ganho social inquestionável.

Em síntese, é evidente que a expansão dos cursos de Medicina não é um problema, mas uma oportunidade de democratizar o acesso à saúde. O que precisa ser fortalecido é o eixo da residência médica, a regulação da qualidade e a indução de políticas que promovam especialistas nas áreas e regiões mais carentes.

O Brasil não pode se dar ao luxo de frear a formação de profissionais em nome da manutenção de privilégios corporativos. Assim, retomo a pergunta inicial: quem perde com a formação de mais médicos? Certamente não é a população brasileira.

*Diretor-presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), secretário-executivo do Brasil Educação - Fórum Brasileiro da Educação Particular, fundador e controlador do grupo Ser Educacional, e presidente do Instituto Êxito de Empreendedorismo.