Educação Superior Comentada | A cobrança pela prestação de serviços educacionais especializados

Ano 3 • Nº 3 • 02 de março de 2016

Nesta semana, a Coluna Educação Superior Comentada aborda a cobrança pela prestação de serviços educacionais especializados

02/03/2016 | Por: Gustavo Fagundes | 4196

Foi publicada, no Diário Oficial da União do último dia 7 de julho, a Lei n°. 13.146/2015, instituindo a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – Estatuto da Pessoa com Deficiência sendo certo que a mencionada lei tem como objetivo assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.

Embora já tenha abordado o conteúdo do Estatuto em coluna oportunamente publicada, peço a paciência do leitor para voltar ao tema, com o único intuito de contextualizar, adequadamente, a abordagem do tema principal desta edição, qual seja, a questão da cobrança pela prestação de serviços educacionais especializados.

O Estatuto possui um título dedicado aos direitos fundamentais das pessoas com deficiência, contemplando capítulo exclusivamente destinado à regulamentação do direito à educação, cujo artigo 27 prevê que a educação constitui “direito da pessoa com deficiência”, devendo ser assegurado “sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais”, de acordo com suas “características, interesses e necessidades de aprendizagem”.

Além disso, o § 1º do prefalado dispositivo preconiza ser dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade, “assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e discriminação”.

Logo adiante, o artigo 28 estabelece as obrigações a serem cumpridas pelo poder público na oferta de educação à pessoa com deficiência, sendo certo, ainda, que o seu parágrafo 1º estende, para as instituições de ensino privadas de qualquer nível ou modalidade, as seguintes obrigações”

“Art. 28. Incumbe ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar:

I - sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida;

II - aprimoramento dos sistemas educacionais, visando a garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena;

III - projeto pedagógico que institucionalize o atendimento educacional especializado, assim como os demais serviços e adaptações razoáveis, para atender às características dos estudantes com deficiência e garantir o seu pleno acesso ao currículo em condições de igualdade, promovendo a conquista e o exercício de sua autonomia;

.....

V - adoção de medidas individualizadas e coletivas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social dos estudantes com deficiência, favorecendo o acesso, a permanência, a participação e a aprendizagem em instituições de ensino;

.....

VII - planejamento de estudo de caso, de elaboração de plano de atendimento educacional especializado, de organização de recursos e serviços de acessibilidade e de disponibilização e usabilidade pedagógica de recursos de tecnologia assistiva;

VIII - participação dos estudantes com deficiência e de suas famílias nas diversas instâncias de atuação da comunidade escolar;

IX - adoção de medidas de apoio que favoreçam o desenvolvimento dos aspectos linguísticos, culturais, vocacionais e profissionais, levando-se em conta o talento, a criatividade, as habilidades e os interesses do estudante com deficiência;

X - adoção de práticas pedagógicas inclusivas pelos programas de formação inicial e continuada de professores e oferta de formação continuada para o atendimento educacional especializado;

XI - formação e disponibilização de professores para o atendimento educacional especializado, de tradutores e intérpretes da Libras, de guias intérpretes e de profissionais de apoio;

XII - oferta de ensino da Libras, do Sistema Braille e de uso de recursos de tecnologia assistiva, de forma a ampliar habilidades funcionais dos estudantes, promovendo sua autonomia e participação;

XIII - acesso à educação superior e à educação profissional e tecnológica em igualdade de oportunidades e condições com as demais pessoas;

XIV - inclusão em conteúdos curriculares, em cursos de nível superior e de educação profissional técnica e tecnológica, de temas relacionados à pessoa com deficiência nos respectivos campos de conhecimento;

XV - acesso da pessoa com deficiência, em igualdade de condições, a jogos e a atividades recreativas, esportivas e de lazer, no sistema escolar;

XVI - acessibilidade para todos os estudantes, trabalhadores da educação e demais integrantes da comunidade escolar às edificações, aos ambientes e às atividades concernentes a todas as modalidades, etapas e níveis de ensino;

XVII - oferta de profissionais de apoio escolar;

XVIII - articulação intersetorial na implementação de políticas públicas.”

Impositivo registrar, ainda, que o parágrafo segundo do mesmo artigo 28 estabelece a qualificação exigida para os tradutores e intérpretes de Libras na educação superior, os quais, para atuação nas salas de aula dos cursos de graduação e de pós-graduação, devem possuir “nível superior, com habilitação, prioritariamente, em Tradução e Interpretação em Libras”.

Ainda relativamente às instituições de educação superior e de educação profissional e tecnológica públicas e privadas, o artigo 30 da Lei n° 13.146/2015 estabelece diversas medidas a serem adotadas nos processos seletivos, nos seguintes termos:

“Art. 30. Nos processos seletivos para ingresso e permanência nos cursos oferecidos pelas instituições de ensino superior e de educação profissional e tecnológica, públicas e privadas, devem ser adotadas as seguintes medidas:

I - atendimento preferencial à pessoa com deficiência nas dependências das Instituições de Ensino Superior (IES) e nos serviços;

II - disponibilização de formulário de inscrição de exames com campos específicos para que o candidato com deficiência informe os recursos de acessibilidade e de tecnologia assistiva necessários para sua participação;

III - disponibilização de provas em formatos acessíveis para atendimento às necessidades específicas do candidato com deficiência;

IV - disponibilização de recursos de acessibilidade e de tecnologia assistiva adequados, previamente solicitados e escolhidos pelo candidato com deficiência;

V - dilação de tempo, conforme demanda apresentada pelo candidato com deficiência, tanto na realização de exame para seleção quanto nas atividades acadêmicas, mediante prévia solicitação e comprovação da necessidade;

VI - adoção de critérios de avaliação das provas escritas, discursivas ou de redação que considerem a singularidade linguística da pessoa com deficiência, no domínio da modalidade escrita da língua portuguesa;

VII - tradução completa do edital e de suas retificações em Libras.”

Outro dispositivo de fundamental importância para as instituições de ensino privadas é a alteração do artigo 8º da Lei n° 7.853/1989, para prever a tipificação, como crime punível com pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa, a conduta caracterizada por “recusar, cobrar valores adicionais, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, em razão de sua deficiência”.

Vale dizer, a norma legal em comento pretende impor aos estabelecimentos particulares de ensino que realizem todas as adaptações, inclusive no que pertine à qualificação especial de seus profissionais, para o atendimento às pessoas com deficiência, sem contudo, permitir-lhe cobrar por este serviço excepcional a ser oferecido, chegando, ainda, a tipificar criminalmente esta cobrança.

O grande controvertimento acerca do Estatuto da Pessoa com Deficiência, no que pertine ao aspecto educacional, reside justamente na imposição da obrigatoriedade de atendimento educacional especializado sem a cobrança de qualquer valor adicional por este serviço a mais a ser disponibilizado pelas instituições de ensino particulares.

Em relação a esta previsão, entendemos ser inconstitucional a imposição de uma obrigação às instituições privadas sem a possibilidade de cobrança pela prestação de um serviço educacional especializado, seja pela transferência indevida de um encargo imposto ao Estado, seja pela exigência de prestação de serviços especializados com vedação expressa de cobrança por tais serviços.

Este entendimento decorre, essencialmente, da análise do teor do disposto nos artigos 205, 208 e 209 da Constituição Federal.

Inicialmente, cumpre registrar o conteúdo exato do artigo 205 do texto constitucional, que estabelece, de forma absolutamente cristalina, ser a educação “dever do Estado e da família”, nos seguintes termos:

“Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

O artigo 208, por seu turno, assegura, em seu inciso III, é de clareza angular ao estipular que o dever do Estado com a educação deve, entre outros aspectos, ser efetivado mediante a garantia de “atendimento educacional especializado”:

“Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

...

III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;”.

Inquestionavelmente, o legislador constitucional atribuiu ao Estado a obrigatoriedade de oferta do atendimento educacional especializado, preferencialmente em suas unidades de ensino regular.

Destarte, resta inconteste a premissa de que a obrigação de oferta da educação com garantia de atendimento educacional especializado às pessoas com deficiência é do Estado, não sendo legítima a transferência deste encargo constitucionalmente imposto ao poder público, para os ombros da iniciativa privada.

Neste sentido, pacífica a jurisprudência dos tribunais pátrios, como demonstram os arestos ora colacionados a título exemplificativo:

            “EMENTA

 

OBRIGAÇÃO DE FAZER. EDUCAÇÃO. DIREITO E GARANTIA CONSTITUCIONAIS. ALUNO PORTADOR DE NECESSIDADES ESPECIAIS. ATENDIMENTO ESPECIALIZADO NA REDE PÚBLICA DE ENSINO. MONITOR ESPECIALIZADO. DEVER DO ESTADO.” (TJDFT, Acórdão n° 736972, Rel. Des. Silva Lemos, DJ-TJDFT, 29.11.2013, pág. 119).

“EMENTA

 

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. ALUNOS COM NECESSIDADE EDUCACIONAL ESPECIAL. ATENDIMENTO ESPECIALIZADO NA REDE PÚBLICA DE ENSINO. MONITOR ESPECIALIZADO. DIREITO E GARANTIA CONSTITUCIONAIS. INCLUSÃO NO PROCESSO EDUCACIONAL. DEVER DO ESTADO. DECISÃO A QUO MANTIDA.” (TJDFT, Acórdão n° 807815, Rel. Des. Alfeu Machado, DJ-TJDFT, 4.8.2014, pág. 157).

“EMENTA

 

PROCESSUAL CIVIL, ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO À EDUCAÇÃO. ALUNO PORTADOR DE NECESSIDADES ESPECIAIS. DIFICULDADE COGNITIVA. MONITOR ESPECIALIZADO. NECESSIDADE URGENTE. DISPONIBILIZAÇÃO. VIABILIZAÇÃO OU OFERECIMENTO DE VAGA EM CENTRO DE ENSINO ESPECIAL. OBRIGAÇÃO DO ESTADO. OMISSÃO. DEVER CONSTITUCIONAL. MATERIALIZAÇÃO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. REQUISITOS. PRESENÇA. CONCESSÃO. RATIFICAÇÃO. AGRAVO. PROVIMENTO.” (TJDFT, Acórdão n° 841155, Rel. Des. Teófilo Caetano, DJ-TJDFT, 26.1.2015, pág. 345).

“EMENTA

 

PROCESSO CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. REMESSA NECESSÁRIA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. ALUNA PORTADORA DE NECESSIDADES ESPECIAIS. AUTISMO. MONITOR ESPECIALIZADO INDISPENSÁVEL. DEVER DO ESTADO. SENTENÇA MANTIDA.” (TJDFT, Acórdão n° 867602, Rel. Desª. Fátima Rafael, DJ-TJDFT, 21.5.2015, pág. 200).

 

Evidente, portanto, a premissa de que é obrigação inafastável do Estado a oferta de atendimento educacional especializado, conforme estipulam claramente os artigos 205 e 208, III, da Constituição Federal.

Não obstante seja o fornecimento de atendimento educacional especializado obrigação inafastável do Estado, como acima demonstrado à sobeja, é certo que, ao assegurar a atuação da livre iniciativa na educação, o artigo 209 da Constituição Federal permite que os estabelecimentos particulares de ensino também ofereçam tal atendimento, desde, é claro, que mediante a justa e devida contraprestação.

Com efeito, a Lei n° 9.8709/99, que dispõe sobre a fixação dos valores das anualidades escolares não exige a prestação de serviços educacionais gratuitos por parte das instituições particulares de ensino, exigindo, apenas a divulgação em tempo hábil das informações acerca da composição dos valores de suas anualidades ou semestralidades.

Evidente, portanto, que todos os encargos que integram a composição das planilhas de custos das instituições particulares de ensino podem, legitimamente, ser incorporados aos valores das anualidades e semestralidades praticadas, sendo absolutamente inconstitucional que lhes seja imposta a prestação de serviços educacionais especializados de forma gratuita, sobretudo quando esses serviços sejam, como anteriormente demonstrado, obrigação constitucionalmente imposta ao Estado.

Desse modo, ainda que se admita a premissa de que não é permitida a cobrança individualizada pela prestação de serviços educacionais especializados, força é admitir que seu custo será, então, incluído na planilha de custos das instituições de ensino privadas e, assim, suportado por todos os estudantes, mesmo aqueles não beneficiados pelo atendimento especializado.

Qualquer crítica, dúvida ou correções, por favor, entre em contato com a Coluna Educação Superior Comentada, por Gustavo Fagundes, que também está à disposição para sugestão de temas a serem tratados nas próximas edições.

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