Educação Superior Comentada | A possibilidade de ampliação das ações de responsabilidade social

Ano 5 - Nº 16 - 7 de junho de 2017

Na edição desta semana, o consultor jurídico da ABMES, Gustavo Fagundes, discorre sobre o PLS nº 124/2016 que visa à alteração do artigo 3º da Lei do Sinaes. O objetivo é impor a obrigatoriedade de realização de ações de alfabetização de jovens e adultos como componente da responsabilidade social das IES. Para o especialista, essa pretensão fere o princípio constitucional da livre iniciativa na educação

07/06/2017 | Por: Gustavo Fagundes | 5292

Encontra-se em tramitação perante a Comissão de Educação do Senado Federal o PLS n° 124/2016 que tem como objeto a alteração do artigo 3º da Lei n° 10.861/2004, a Lei do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes).

Com efeito, o projeto de lei pretende alterar o inciso III do referido artigo para impor a obrigatoriedade de realização de ações de alfabetização de jovens e adultos como componente da responsabilidade social das instituições de ensino superior, de modo que o referido dispositivo passaria a ter a seguinte redação:

“Art. 3º. .....

III – a responsabilidade social da instituição, considerada especialmente no que se refere à sua contribuição em relação à inclusão social, à alfabetização de jovens e adultos, ao desenvolvimento econômico e social, à defesa do meio ambiente, da memória cultural, da produção artística e do patrimônio cultural;”.

Entendo que essa pretensão, como tratarei de demonstrar adiante, fere o princípio constitucional da livre iniciativa na educação e, sobretudo, despreza pressupostos essenciais do Sinaes.

Para melhor demonstrar meu entendimento sobre a questão, julgo conveniente, neste momento, relembrar o texto original do dispositivo da Lei do Sinaes objeto da proposta de alteração, qual seja, o inciso III de seu artigo 3º:

“Art. 3º A avaliação das instituições de educação superior terá por objetivo identificar o seu perfil e o significado de sua atuação, por meio de suas atividades, cursos, programas, projetos e setores, considerando as diferentes dimensões institucionais, dentre elas obrigatoriamente as seguintes:

...

III - a responsabilidade social da instituição, considerada especialmente no que se refere à sua contribuição em relação à inclusão social, ao desenvolvimento econômico e social, à defesa do meio ambiente, da memória cultural, da produção artística e do patrimônio cultural;”.

A primeira questão a considerar, portanto, é o contexto em que se enquadra a proposta contida no prefalado PLS n° 124/2014, qual seja a avaliação das instituições de educação superior, ou seja, os critérios a serem observados para a realização das atividades avaliativas institucionais.

A proposta apresentada pelo Senador Cristovam Buarque (PPS-DF), ex-ministro da Educação, pretende impor a todas as instituições de ensino superior, indistintamente, a obrigação de atuar na alfabetização de jovens e adultos.

Como já manifestei em outras oportunidades, entendo, a partir dos princípios da livre iniciativa e da legalidade, que o Estado não pode impor às instituições de ensino a atuação nesta ou naquela área do conhecimento ou seara da atividade educacional.

Já havia exposto este entendimento ao demonstrar o descabimento da imposição, por exemplo, da Lei n° 13.174/2015, que inclui entre as finalidades de atuação da educação superior seu envolvimento para a universalização e o aprimoramento da educação básica, por meio da inclusão do inciso VIII ao teor do artigo 43 da Lei n° 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB).

Argumentei naquela ocasião, e reitero agora, o entendimento de que tal finalidade, assim como a atuação impositiva na alfabetização de jovens e adultos, não pode ser imposta, indistintamente, a todas as instituições de ensino superior, ignorando, assim, sua missão institucional, bem como seus valores, metas e objetivos, como definidos em seus respectivos Planos de Desenvolvimento Institucional.

Admitir entendimento contrário é negar eficácia a princípio essencial do Sinaes, qual seja, o respeito à diferença e à diversidade, bem como à afirmação da autonomia e da identidade institucional, como claramente esculpido no § 1º do artigo 1º da já mencionada Lei n° 10.861/2004:

“Art. 1º Fica instituído o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior - SINAES, com o objetivo de assegurar processo nacional de avaliação das instituições de educação superior, dos cursos de graduação e do desempenho acadêmico de seus estudantes, nos termos do art. 9º, VI, VIII e IX, da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

§ 1º O SINAES tem por finalidades a melhoria da qualidade da educação superior, a orientação da expansão da sua oferta, o aumento permanente da sua eficácia institucional e efetividade acadêmica e social e, especialmente, a promoção do aprofundamento dos compromissos e responsabilidades sociais das instituições de educação superior, por meio da valorização de sua missão pública, da promoção dos valores democráticos, do respeito à diferença e à diversidade, da afirmação da autonomia e da identidade institucional.”

O respeito à diferença e à diversidade, aliado à afirmação da autonomia e da identidade institucional, é princípio essencial do Sinaes, tanto que deve ser inafastavelmente observado na promoção de todas as modalidades de avaliação de instituições, cursos e mesmo desempenho dos estudantes, nos exatos termos do artigo 2º do prefalado diploma legal, especialmente em seu inciso III:

“Art. 2º O SINAES, ao promover a avaliação de instituições, de cursos e de desempenho dos estudantes, deverá assegurar:

I - avaliação institucional, interna e externa, contemplando a análise global e integrada das dimensões, estruturas, relações, compromisso social, atividades, finalidades e responsabilidades sociais das instituições de educação superior e de seus cursos;

II - o caráter público de todos os procedimentos, dados e resultados dos processos avaliativos;

III - o respeito à identidade e à diversidade de instituições e de cursos;

IV - a participação do corpo discente, docente e técnico administrativo das instituições de educação superior, e da sociedade civil, por meio de suas representações.”

Delimitar, exatamente da mesma forma, o conceito de responsabilidade social para todas as instituições de ensino superior, sobretudo com a imposição de realização de um tipo específico de atividade, como pretende o PLS n° 124/2016, configura desrespeito aos princípios norteadores do Sinaes, porquanto, ao deixar de considerar o contexto educacional em que estão inseridas as instituições de ensino superior e, por conseguinte, as demandas e anseios da comunidade na qual estão enraizadas, deixa de respeitar a identidade e diversidade dessas instituições e, com isso, desrespeita também sua autonomia e identidade institucional.

A atividade que o mencionado projeto de lei pretende impor de forma indistinta até poderia, não de forma impositiva, mas sob a forma de atividade recomendada e valorizada, estar inserida na atuação das instituições de ensino que ofertem programas de licenciatura, mas não caberia, sobretudo como atividade imposta pelo Estado, no espectro das atividades de responsabilidade social das instituições que, diante de sua identidade institucional, tenham legalmente optado por não ofertar esses tipos de programa.

Reitero, como já fiz anteriormente, que entenda que as atividades de alfabetização de jovens e adultos não possam ser desempenhadas com qualidade pelas instituições que não ofertam cursos de licenciatura, mas registro, novamente, o entendimento de que essas instituições, haja vista os princípios constitucionais e legais acima mencionados, não podem ser compelidas a atuar nesta seara.

Com efeito, essas instituições podem, e, se assim preconizarem sua missão, objetivos e valores institucionais, devem participar de ações de alfabetização de jovens e adultos, bem como de quaisquer outros participarem de programas e ações que tenham como objetivo promover a universalização e o aprimoramento da educação básica, haja vista que essas atividades têm, indiscutivelmente, o sentido de assegurar a cidadania e dignidade de pessoa humana, dois fundamentos da República Federativa do Brasil, como expressamente lançados nos incisos II e III do artigo inaugural da Constituição Federal de 1988:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

.....

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;”.

Podemos afirmar, com isso, que a atuação de qualquer instituição de ensino superior, mesmo aquelas que não ofertem cursos de licenciatura, em programas e ações que tenham como objetivo incrementar e universalizar a alfabetização de jovens e adultos é, evidentemente, a efetivação de seu compromisso com sua responsabilidade social.

Vale dizer, as instituições de ensino superior podem e, quando possível e compatível com sua formatação institucional, devem promover ações de alfabetização de jovens e adultos, mas não me parece legítimo que isso lhes seja imposto, indistintamente, por norma legal que desconsidere a identidade e diversidade das instituições, pressuposto essencial do Sinaes.

Desse modo, as instituições podem criar seus programas e ações próprios para atuar na alfabetização de jovens e adultos, mas entendo ser descabido incluir esse tipo de atividade obrigatoriamente como integrante de suas ações de responsabilidade social, como pretende fazer o PLS n° 124/2016.

Não cabe ao Poder Público, portanto, negando o impositivo respeito à identidade e diversidade das instituições de ensino superior, como claramente exigido pelos artigos 1º e 2º da Lei n° 10.861/2004, impor uma determinada atividade como parte obrigatória da caracterização de sua atuação no campo da responsabilidade social.

Qualquer crítica, dúvida ou correções, por favor, entre em contato com a Coluna Educação Superior Comentada, por Gustavo Fagundes, que também está à disposição para sugestão de temas a serem tratados nas próximas edições.

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Legislação

LEI Nº 10.861, DE 14 DE ABRIL DE 2004

Institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior - SINAES e dá outras Providências
DOU nº 72, Seção 1, de 15/4/2004