Historicamente, os conselhos de fiscalização profissional buscam ampliar sua participação, indevida, registre-se, nas atividades ligadas à regulação, supervisão e avaliação das instituições de ensino superior e seus cursos de graduação.
Essa interferência vem ocorrendo, basicamente, em duas questões distintas, cuja conexão se funda na ilegalidade da atuação desses conselhos em atividades estranhas às suas atribuições legais.
Com efeito, é importante registrar que os conselhos de fiscalização do exercício profissional são, inquestionavelmente, autarquias criadas por lei específica, a qual traz em seu bojo a exata delimitação de sua competência, nos exatos termos do disposto no inciso XIX do artigo 37 da Constituição Federal, com a redação que dada pela Emenda Constitucional n° 19, de 1998, verbis:
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
.....
XIX - somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação;”.
Na condição de autarquia, portanto, somente seria legítima a atuação dos conselhos de fiscalização profissional nas questões atinentes à educação superior mediante expressa previsão legal em sua lei de criação, como ocorre exclusivamente no caso da OAB.
Uma das tradicionais formas de intervenção dessas autarquias na educação superior ocorre por meio de resoluções internas que buscam, indevidamente, impor restrições ao exercício da docência no magistério superior, exigindo a inscrição em conselho de fiscalização profissional para docentes que ministrem determinados conteúdos ou mesmo para atuação como coordenador de curso superior.
Podemos apresentar como exemplo dessa prática descabida as Resoluções Normativas n° 300 e n° 301 do Conselho Federal de Administração, que podem ser resumidas nas seguintes exigências:
- Somente o Administrador com registro profissional em Conselho Regional de Administração poderá exercer as atribuições do cargo de Coordenador de Curso de Administração – Bacharelado (Resolução Normativa/CFA n° 300, de 10 de janeiro de 2005); e
- Somente o Administrador com registro profissional em Conselho Regional de Administração poderá exercer o magistério das matérias técnicas dos campos de Administração e Organização, existentes nos currículos dos Cursos de Graduação (Bacharelado), tanto em Administração como em currículos de cursos referentes a outros campos de conhecimento relacionados com as áreas específicas e que envolvam teorias da administração e das organizações e a administração de recursos humanos, mercadologia e marketing, materiais, produção e logística, administração financeira e orçamentária, sistemas de informações, planejamento estratégico e serviços (Resolução Normativa/CFA n° 301, de 10 de janeiro de 2005).
Outro exemplo desta interferência descabida, esta mais recente, vem do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR), cuja Resolução n° 51, de 12 de julho de 2013, em inaceitável elastecimento do contido na Lei n° 12.378/2010, estabelece, em ato interna corporis, que o exercício das atividades de “coordenação de curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo” passa a ser especificada como atividade privativa dos arquitetos e urbanistas.
Isenta de dúvidas a premissa de que o exercício das atividades de magistério superior não está sujeito à ingerência dos conselhos de fiscalização profissional, exceto naqueles casos muito específicos, nos quais a lei que regulamenta o exercício da profissão estabelece que a transmissão de determinado conteúdo seja ato privativo do profissional devidamente inscrito em órgão de classe.
Registre-se, por necessário, que esta previsão não pode ser veiculada por meio de mero ato interna corporis, como as resoluções acima mencionadas, emanadas do CFA e do CAU/BR, devendo, por força do princípio constitucional da legalidade, estar contidas em lei no sentido estrito, que contenha a regulamentação da atividade profissional e defina seus atos privativos.
Com efeito, vale lembrar que a preparação para o exercício do magistério superior deve ser feita em nível de pós-graduação, nos termos do artigo 66 da LDB:
“Art. 66. A preparação para o exercício do magistério superior far-se-á em nível de pós-graduação, prioritariamente em programas de mestrado e doutorado.
Parágrafo único. O notório saber, reconhecido por universidade com curso de doutorado em área afim, poderá suprir a exigência de título acadêmico.”
Além disso, o Decreto n° 5.773/2006 é absolutamente cristalino ao estipular, em seu artigo 69, que o exercício da atividade docente na educação superior não está condicionado à inscrição do docente em órgão de classe:
“Art. 69. O exercício de atividade docente na educação superior não se sujeita à inscrição do professor em órgão de regulamentação profissional.”
Também é forma corrente desta tentativa de ingerência dos órgãos de fiscalização do exercício profissional o hábito de pressionar o Ministério da Educação para suspender o protocolo de pedidos de autorização de determinados cursos superiores, como ocorria até recentemente com os cursos de Direito e vem, agora, acontecendo com os cursos de Medicina.
Aproveitando a recente divulgação nos meios de comunicação de suposta decisão do Ministério da Educação de suspender, por 5 anos, os pedidos de autorização dos cursos de Medicina, o Conselho Federal de Odontologia encaminhou ao MEC o Ofício n° 1573/2017, elogiando tal medida e solicitando idêntico tratamento para os cursos de Odontologia.
Além disso, o chamado Fórum Permanente sobre o Ensino Superior na Visão dos Conselhos Federais de Profissões Regulamentadas, composto por diversos órgãos de classe, divulgou uma Nota Oficial solicitando ao Ministério da Educação, entre outras questões, as seguintes solicitações:
- Requerer ao Ministério da Educação o envio das senhas de acesso ao Sistema e-MEC para todos os Conselhos Federais de Profissões Regulamentadas opinarem no processo de autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento dos cursos superiores.
- Solicitar ao Ministério da Educação o cruzamento de todos os dados em cadastros oficiais do governo para averiguar possíveis indícios de irregularidades nas informações prestadas pelas IES sobre o regime de contratação dos docentes.
- Requerer a manutenção do prazo de 60 (sessenta) dias para manifestação dos Conselhos Profissionais, presente no § 2º, §3º e §4º do Art. 28º e §1º do art. 29 do Decreto Presidencial nº 5.773 de 2006.
- Solicitar ao Ministério da Educação o quantitativo de vagas nos cursos superiores e os critérios adotados para autorização em razão do alto índice de vagas ociosas no cenário educacional superior.
- Requerer ao Ministério da Educação a disponibilização da íntegra dos instrumentos de avaliação dos cursos superiores, conforme divulgação do D.O.U. no dia 1º de novembro de 2017 seção n. 1, pág. 14.
- Enviar ofício ao Ministério da Educação com a sugestão de mudança dos instrumentos de avaliação dos cursos superiores a fim de tornar obrigatória a participação de um representante dos Conselhos Profissionais nas comissões de avaliadores de Instituições de Ensino Superior e cursos presenciais e à distância.
- Reivindicar ao Ministro da Educação e ao Conselho Nacional de Educação a criação de um assento rotativo permanente destinado a representantes dos Conselhos Profissionais a fim de opinar e acompanhar as matérias afetas a cada profissão regulamentada.
-Coibir a abertura de cursos superiores em municípios sem condições mínimas de fornecer formação de qualidade e que também não atendam aos requisitos da necessidade social local.
Curioso é que o argumento para essa pressão é, basicamente, o mesmo: falta de qualidade dos cursos ofertados e excesso de egressos no mercado de trabalho, o qual mal consegue encobrir o verdadeiro objetivo, qual seja, alargar a sua indevida interferência nas questões relativas à avaliação e regulação da educação superior.
Outro aspecto contumaz presente nas manifestações dos órgãos de classe é a insistência na configuração da “necessidade social”, parecendo desconhecer que o texto constitucional é absolutamente claro ao estabelecer como exigência para a atuação da livre iniciativa na educação, inclusive superior, a avaliação de qualidade pelo poder público, sem exigir análise de conveniência ou necessidade social.
Em diversas ocasiões, externei o entendimento acerca da fragilidade desses argumentos, assim como do conteúdo falacioso de que a interrupção da emissão de atos autorizativos seja forma adequada para resolver o alegado problema de qualidade dos cursos existentes.
Ora, desde quando estabelecer uma reserva de mercado para os cursos supostamente sem qualidade é capaz de impor a implantação de medidas de melhoria?
A solução para esse problema é a intensificação da ação do Ministério da Educação nas atividades de regulação, supervisão e avaliação, única forma efetiva e legítima permitir que o joio seja separado do trigo.
Com efeito, à medida em que o Ministério da Educação cede a este tipo de argumento e suspende as autorizações para oferta de determinados cursos superiores, está, na verdade, passando para a sociedade a impressão de que não consegue desempenhar, a contento, suas atribuições ligadas à regulação, supervisão e avaliação, porquanto não demonstra, efetivamente, a capacidade de adotar providências efetivas em relação aos cursos que não apresentem o perfil de qualidade exigido pelas normas vigentes.
A outra forma de interferência dos conselhos profissionais na educação superior decorre da permissividade do próprio Ministério da Educação, que, mais uma vez cedendo à pressão das corporações (ressalvada a competência legal da OAB), estabeleceu, por meio dos artigos 28 e 29 do Decreto n° 5.773/2006, a possibilidade de manifestação desses entes nos processos de autorização de funcionamento de cursos superiores:
“Art. 28. As universidades e centros universitários, nos limites de sua autonomia, observado o disposto nos § § 2o e 3o deste artigo, independem de autorização para funcionamento de curso superior, devendo informar à Secretaria competente os cursos abertos para fins de supervisão, avaliação e posterior reconhecimento, no prazo de sessenta dias.
.....
2º A oferta de cursos de graduação em Direito, Medicina, Odontologia, Psicologia e Enfermagem, inclusive em universidades e centros universitários, depende de autorização do Ministério da Educação, após prévia manifestação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e do Conselho Nacional de Saúde, respectivamente.
§ 3º O aumento de vagas em cursos de graduação em Direito, Medicina, Odontologia, Psicologia e Enfermagem, inclusive em universidades e centros universitários, depende de autorização do Ministério da Educação, conforme regulamento.
§ 4º O prazo para a manifestação dos Conselhos prevista no § 2º é de sessenta dias, prorrogável por igual período, a requerimento do Conselho interessado, e terá caráter opinativo.”
“Art. 29. São fases do processo de autorização:
.....
§ 1º No caso de curso correspondente a profissão regulamentada, a Secretaria abrirá prazo para que o órgão de regulamentação profissional, de âmbito nacional, possa oferecer subsídios à decisão do Ministério da Educação, em caráter opinativo, no prazo de sessenta dias.”
Outro aspecto dessa participação é o excessivo prazo concedido para apresentação do parecer opinativo por parte dos conselhos profissionais, estipulado em até 120 dias para os casos do artigo 28 e em até 60 dias para os casos do artigo 29, ambos acima transcritos.
Este prazo precisa ser revisto, de modo a assegurar a efetividade do princípio constitucional da celeridade processual, de modo que me parece que seria bastante razoável a limitação deste prazo para algo em torno de 30 dias.
Aliás, como o Ministério da Educação está em processo de reformulação do contexto regulatório, a oportunidade permitiria a recondução da atuação dos conselhos profissionais aos estritos ditames da legalidade, mantendo a previsão de manifestação exclusivamente para as hipóteses expressamente previstas na legislação em vigor.
Seria, também, ocasião ideal para, atendendo ao princípio constitucional da celeridade processual, limitar o prazo dessa manifestação para o máximo de 30 dias, improrrogável.
Necessário, e mais do que oportuno, restabelecer os ditames da legalidade, permitindo aos órgãos de fiscalização profissional a atuação em estrita conformidade com as competências expressamente previstas nas leis que criaram tais autarquias.
Esperamos que a atual gestão do Ministério da Educação atue com a necessária firmeza, ausente em gestões anteriores na relação com os órgãos de classe, de modo a restabelecer o exato atendimento aos ditames constitucionais, assegurando a avaliação de qualidade nos termos previstos na Lei n° 10.861/2004 e não de “necessidade social” ou de oportunidade como exigência para abertura de cursos superiores, bem como permitindo a atuação das corporações nos exatos limites trazidos pelo artigo 37 da CF e das respectivas leis de criação de tais autarquias.
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