Já foi abordada nesta coluna, a questão da manifesta ilegalidade da exigência de apresentação de certidões de regularidade fiscal como condição para a tramitação dos processos relativos às atividades de regulação e avaliação.
No longínquo ano de 2001, essa exigência teratológica já se fazia presente no há muito revogado Decreto n° 3.860/2001, cujo nefastamente famoso artigo 20 exigia a apresentação de certidões de regularidade fiscal perante as Fazendas Federal, Estadual e Municipal, além do INSS e FGTS, em processos relativos a pedidos de credenciamento ou recredenciamento institucional, bem como de autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos superiores, nos seguintes termos:
“Art. 20. Os pedidos de credenciamento e de recredenciamento de instituições de ensino superior e de autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos superiores serão formalizados pelas respectivas entidades mantenedoras, atendendo aos seguintes requisitos de habilitação:
(...)
III - prova de regularidade perante a Fazenda Federal, Estadual e Municipal;
IV - prova de regularidade relativa à Seguridade Social e ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço;”.
Já naquele tempo, diante do descabimento da exigência, diversas instituições de educação superior pleitearam, sempre com êxito, a obtenção de medidas judiciais que afastassem a ilegítima exigência e determinassem o regular prosseguimento dos processos regulatórios sem o atendimento ao disposto nos incisos III e IV do artigo 20 do Decreto n° 3.860/2001, como demonstram, a título meramente exemplificativo, os arestos adiante trazidos à colação:
“DECISÃO
1 - Agrava SOCIEDADE EDUCACIONAL TUIUTI LTDA contra r. decisão do MM. Juiz Federal da 4ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal que lhe indeferiu pedido de antecipação dos efeitos da tutela nos autos da Ação de Procedimento Judiciário (Processo nº 2005.34.00.010501-8), por não divisar como presentes os pré-requisitos ou pressupostos contidos no art. 273 do CPC.
2 - Alega, em síntese, a agravante, que a União (MEC) vincula, “como requisito de habilitação para proceder à análise da avaliação pedagógica e educacional da autora, a apresentação de certidões fiscais e para-fiscais, utilizando-se para tal fim o disposto no art. 20, III e IV, do Decreto nº 3.860/01 e na Portaria do Ministério da Educação n. 4.361, de 29.12.2004”.
3 - Ao entendimento de que tal exigência carece de amparo legal, requer provisão judicial no sentido de que “a União através dos órgãos descentralizados do Ministério da Educação (Secretaria de Ensino Superior - SESu, Conselho Nacional de Educação - CNE e o Instituto Nacional de Ensino e Pesquisa - INEP), abstenha-se de exigir da autora a comprovação de sua regularidade fiscal e parafiscal, mediante exibição de Certidão Negativa de Débito - CND”. É o que se tem, por ora, a decidir. Passa-se à decisão:
4 - De plano, registre-se que o código dos ritos civis admite a antecipação dos efeitos da tutela, diante de prova inequívoca, e em se convencendo o juiz da verossimilhança da alegação, e mais, quando haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação ou, ainda, em situação em que fique caracterizada o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu (q.v. art. 273, I e II do CPC). Por outro lado, o mesmo diploma de direito instrumental é expresso em que o relator “poderá atribuir efeito suspensivo ao recurso (art. 558), ou deferir, em antecipação de tutela, total ou parcialmente, a pretensão recursal, comunicando ao juiz sua decisão” (art. 527, III). Cumpre, pois, sob tal óptica, examinar o pedido que ora se deduz.
De pronto, observe-se que está inserido, dentre os direitos e garantias fundamentais (Constituição, art. 5º, III), que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Despiciendo o registro, por óbvio, de que tal garantia não alcança apenas a pessoas físicas.
Com efeito, assiste razão à ora agravante no que acentua inexistir qualquer lei (no estrito sentido material do termo) a amparar a exigência. Assinale-se, por oportuno, que a jurisprudência vem, de há muito, vedando quaisquer medidas coercitivas, sob a via oblíqua de exigência de ordem tributária.
Por ilustrativas, recordem-se as Súmulas nºs 70, 323 e 547 do eg. STF, que, mutatis mutandis, em essência ajustam-se à hipótese sub examine:
Súmula 70: Inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.
Súmula 323: É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.
Súmula 547: Ao contribuinte em débito, não é lícito à autoridade proibir que adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.
Destarte, quer parecer que se possa extrair a verossimilhança da alegação, de par com a caracterização de situação na qual observa-se mais do que fundado receio de dano irreparável, ao menos, de difícil reparação.
Naturalmente, a União pode, com apoio na legislação tributária, exigir débitos de natureza fiscal ou para-fiscal a que tem (ou que entende ter) direito. Isto, contudo, sem interferir nas atividades educacionais, que estão sujeitas, no particular, tão-só ao “cumprimento das normas gerais da educação nacional” e à “autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público” (art. 209, I e II da Constituição).
Com tais fundamentos, rogando vênias ao ilustre, zeloso e douto Juiz a quo, DEFIRO o pedido de antecipação dos efeitos da tutela, até o julgamento do agravo pela colenda 8º Turma. Ipso facto, fica, si et in quantum, determinado à União que se abstenha de exigir da ora agravante a regularidade fiscal e para-fiscal, para os efeitos da avaliação pedagógica e educacional da recorrente. Ainda que redundante, repita-se, que a União tem muitos meios, efetivamente legais, para exigir pagamentos de tributos e (ou) de contribuições para-fiscais.” (AGI N° 2005.01.00.029781-0/DF, Rel. Des. Federal Carlos Fernando Mathias, DJ TRF1, 24.5.2005, pág. 54).
“DECISÃO
Trata-se de Agravo de Instrumento, com pedido de efeito suspensivo, interposto contra decisão proferida pelo juízo da 6ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, que, nos autos da ação cautelar ajuizada pela União Brasileira de Educação e Participações Ltda - UNIBRAPAR (COLÉGIO E FACULDADE AD1), indeferiu o pedido de antecipação da tutela mandamental ali postulado, no sentido de lhe fosse assegurado o direito de serem processados e apreciados os requerimentos que formulou, na esfera administrativa, relativamente à concessão de reconhecimento e/ou recredenciamento de cursos, junto à Secretária de Ensino Superior do Ministério da Educação, independentemente da apresentação de certidões negativas de débito perante o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS.
.....
Em suas razões recursais, sustenta a autora recorrente, reiterando os fundamentos já deduzidos perante o juízo monocrático, a ilegitimidade da exigência questionada nos autos de origem, na linha do entendimento jurisprudencial já firmado em nossos tribunais, sobre a matéria. Requer, assim, a concessão de efeito suspensivo, para que lhe seja deferida a tutela almejada, até o pronunciamento definitivo da Turma julgadora (fls. 02/30).
Em que pesem os fundamentos contidos na decisão agravada, vejo presentes, na espécie, os pressupostos do art. 558 do CPC, a ensejar a concessão da almejada antecipação da tutela recursal, que se encontra em sintonia com o entendimento jurisprudencial já firmado em nossos tribunais, no sentido de que dispondo a União Federal de meios legais para a cobrança dos tributos que lhes são devidos, com observância do devido processo legal, afigura-se manifestamente abusiva a veiculação indireta dessa cobrança, mormente quando embasada por mero ato regulamentar, como no caso.
Com estas considerações e tendo em vista que a pretensão deduzida pela agravante enquadra-se nas comportas revisoras do art. 558 do CPC, defiro o pedido de antecipação da tutela recursal, sob a rubrica de efeito suspensivo, para assegurar a autora recorrente o direito ao processamento e à apreciação dos seus requerimentos formulados na esfera administrativa, relativamente à concessão de renovação e/ou recredenciamento de cursos junto à Secretaria de Ensino Superior do Ministério da Educação, independentemente da apresentação de certidões negativas de débito perante o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS.
Comunique-se, via FAX, ao Sr. Secretário de Ensino Superior do Ministério da Educação, para fins de ciência e imediato cumprimento, dando-se ciência, também, ao juízo a quo.” (AGI n° 2005.01.00.067115-0/DF, Rel. Des. Federal Souza Prudente, DJ TRF 1ª Região, 2.12.2005, pág. 219).
“EMENTA
ADMINISTRATIVO. ENSINO SUPERIOR. REQUERIMENTO DE RECONHECIMENTO E RENOVAÇÃO DE RECONHECIMENTO DE CURSO FORMULADO SOB A ÉGIDE DO DECRETO Nº. 3.860/2001. RECEBIMENTO E PROCESSAMENTO CONDICIONADOS À COMPROVAÇÃO DE REGULARIDADE FISCAL E PREVIDENCIÁRIA. ILEGALIDADE.
I - Afigura-se abusiva e ilegal a exigência de comprovação de regularidade fiscal e previdenciária, para recebimento e processamento de pedido de reconhecimento e de renovação de reconhecimento de curso superior, instituída mediante decreto, uma vez que extrapola os limites do seu poder regulamentar, a imposição de exigências não
prevista em lei, mormente quando utilizadas como modalidade de coação para o recebimento de tributos. Os eventuais débitos da instituição de ensino para com o Fisco devem ser cobrados por meios próprios, observando-se o devido processo legal.
II - Apelação e remessa oficial desprovidas. Sentença confirmada.” (AMS N° 2006.34.00.001421-7/DF, Sexta Turma do TRF da 1ª. Região, v.u., Rel. Des. Federal Souza Prudente, DJ do TRF da 1ª Região, 13.7.2007, pág. 52).
Com o impasse criado, no início dos anos 2000, com a pretendida Reforma Universitária, o Ministério da Educação optou por implantar sua visão de reforma por meio da edição de um Decreto, o que ocorreu em 2006.
Com efeito, naquela ocasião foi editado o Decreto n° 5.773/2006, na época chamado de Decreto-Ponte, repetindo, de forma praticamente, literal, a já declarada ilegal exigência de apresentação de certidões de regularidade fiscal, sendo certo que a única mudança foi a extinção de sua obrigatoriedade nos processos relativos aos cursos superiores (autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento), mantendo-se, contudo, a determinação de sua apresentação nos processos regulatórios institucionais (credenciamento e recredenciamento), nos termos de seu artigo 15, inciso I, alíneas “d” e “e”:
“Art. 15. O pedido de credenciamento deverá ser instruído com os seguintes documentos:
I - da mantenedora:
.....
d) certidões de regularidade fiscal perante as Fazendas Federal, Estadual e Municipal;
e) certidões de regularidade relativa à Seguridade Social e ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS;”.
Podemos constatar que foi repetida, praticamente em sua literalidade, a exigência já reiteradamente declarada ilegal pelo Poder Judiciário, simplesmente por ser absolutamente desprovida de qualquer amparo legal.
Não é demais lembrar que, consoante trazido pelo texto constitucional, nos termos da Seção I do Título III da Carta Magna de 1988, a educação tem como seu princípio basilar a “garantia de padrão de qualidade”, a partir do que o mais do que conhecido artigo 209 da CF/88, condicionou a atuação da livre iniciativa na seara educacional ao “cumprimento das normas gerais de educação nacional” (inciso I) e a “autorização e avaliação de qualidade do poder público” (inciso II).
A LDB, Lei n° 9.394/96, praticamente repete o texto constitucional em seu artigo 7º., acrescentando apenas como exigência, além daquelas já trazidas pelo acima mencionado artigo 209 da Constituição Federal, a necessidade de “capacidade de autofinanciamento” (inciso III).
No caso específico das instituições de educação superior, deve ainda ser aplicado o disposto no artigo 46 da Lei nº. 9.394/1996 relativamente aos processos de autorização e reconhecimento de cursos superiores, bem como de suas respectivas renovações, assim dispondo a mencionada norma legal:
“Art. 46. A autorização e o reconhecimento de cursos, bem como o credenciamento de instituições de educação superior, terão prazos limitados, sendo renovados, periodicamente, após processo regular de avaliação.”
Emerge, sem qualquer suspiro de dúvida, seja a partir da análise do texto constitucional (artigos 206 e 209), seja pelo disposto na LDB (artigos 7º e 46), a conclusão inafastável de que a premissa basilar de nosso contexto legal é a exigência de qualidade e sua efetiva manutenção como condicionante para a atuação da livre iniciativa na oferta educacional em qualquer nível ou modalidade, sendo certo, ainda, que este requisito indispensável – qualidade - deverá ser objeto de avaliação periódica pelo poder público, nos prazos e formas definidos no âmbito dos sistemas de ensino.
Evidente, ainda, que o exercício do poder regulamentar, deve observar os princípios fundamentais da razoabilidade e da finalidade, de modo a assegurar que o processo de avaliação deve cingir-se à apresentação de exigências que sejam estritamente vinculadas ao objetivo traçado pelas normas vigentes, qual seja, a aferição da qualidade da atividade educacional levada a efeito pelas instituições de educação.
Seria até desnecessário dizer que qualquer outra exigência formulada sem esta indispensável finalidade, desborda os estritos limites que emolduram o exercício do poder regulamentar do Estado, configurando, destarte, manifesta ilegalidade ou mesmo inconstitucionalidade.
Isenta de quaisquer dúvidas razoáveis, como apontado, a premissa de que a atuação do Estado como poder regulador está limitado, no caso da imposição de quaisquer obrigações às instituições de ensino, àquelas que tenham como finalidade evidente a avaliação de qualidade da atividade educacional levada a efeito.
O Poder Executivo, todavia, com sua manifesta sanha arrecadadora, tal como um vetusto Pantagruel, ao editar o Decreto nº. 3.860/2001 e, posteriormente, o Decreto n° 5.773/2006, fez em ambos constar a descabida exigência de apresentação de certidões de regularidade fiscal e parafiscal, com a indisfarçada intenção de compelir as mantenedoras das instituições de educação, ao recolhimento, sem questionamento, dos escorchantes impostos praticados no País e, com isso, inflar sua arrecadação.
Não há como negar a evidência de que as exigências ora abordadas não guardam a mínima compatibilidade com os preceitos dos artigos 206 e 209 da Constituição e nem com os artigos 7º. e 46 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, exatamente por não possuírem qualquer liame lógico, ainda que remoto, com a aferição da qualidade da atividade educacional desenvolvida pelas instituições, por dizerem respeito, unicamente, à situação fiscal e parafiscal de suas mantenedoras.
Vale dizer, o interesse indisfarçadamente tutelado no caso é a sanha arrecadatória do Estado, jamais a garantia de qualidade da atividade educacional.
A exigência de apresentação de certidões de regularidade fiscal e parafiscal, portanto, mostram-se flagrantemente inconstitucionais, à medida que lesam a liberdade de ensino conferida à iniciativa privada pelo art. 209 da Constituição Federal, por este dispositivo condicionada tão-somente à autorização e à avaliação permanente de qualidade pelo poder público, da mesma forma como restam nitidamente ilegais ao simples cotejo com o disposto na LDB, que não menciona, em momento algum, a exigência de regularidade fiscal ou parafiscal em análise.
Exigir a apresentação de certidões de regularidade, como feito outrora pelo Decreto nº. 3.860/2001 e reiterada pelo Decreto n° 5.773/2006, configura exigência desprovida de qualquer resquício de fundamento legal, porquanto a Constituição Federal e a LDB, em momento algum, apontam para a possibilidade de exigência de comprovação de regularidade fiscal, previdenciária ou fundiária como requisito para funcionamento das instituições educacionais.
O poder regulamentar, como é sabido, encontra limites intransponíveis, decorrentes do princípio constitucional da separação dos poderes. Estes limites, por certo, são os ditames da norma legal a ser regulamentada, que não pode ter seu objeto restringido ou elastecido pelo titular de tal poder, como já ensinado há muitíssimo tempo pelo sempre festejado Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, segundo a qual o poder regulamentar “não cria, nem modifica e sequer extingue direitos e obrigações, senão nos termos da lei, isso porque o inovar originalmente na ordem jurídica consiste em matéria reservada à lei” (in Princípios Gerais de Direito Administrativo, Vol. I, Ed. Forense, 1979, pág. 360 – grifou-se).
Evidente, portanto, que no caso dos referidos Decretos, decorrem ambos da atuação do Estado no exercício do poder regulamentar do qual somente poderia advir um “regulamento executivo”, posto que destinados a promover a “fiel execução da lei”, no caso a Lei nº. 9.394/1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de modo que são atos normativos derivados.
Não há, por mais que nos esforcemos, o mais remoto liame lógico entre o regular processo de avaliação de qualidade previsto normas legais que regem a educação superior e a exigência de apresentação de certidões de regularidade fiscal e parafiscal exigidas pelos referidos decretos, os quais, portanto, extrapolaram indevida seu legítimo escopo ato normativo derivado, afastando-se da premissa legal de sua validade e inovando para trazer exigências não previstas nas normas legais e incompatíveis com suas premissas essenciais.
Não é demais repetir que o “regular processo de avaliação” guarda relação única e exclusivamente com a aferição da qualidade do ensino ministrado, este sim o bem jurídico tutelado pela CF/88 e pela LDB, e não a sanha arrecadatória do Poder Executivo e seu interesse meramente financeiro.
Evidencia-se, em mais esta oportunidade, a desabrida intenção do Poder Executivo de se valer de uma prerrogativa legal, qual seja, exercer o poder de fiscalização e expedir os atos de credenciamento e recredenciamento das instituições de educação superior, para claramente coagir o contribuinte a promover o recolhimento de pesados tributos, como se não bastassem os inúmeros instrumentos legais já postos à sua disposição para tal finalidade, como, por exemplo, a Lei de Execução Fiscal e tantos outros.
Se esta desabrida intenção há muito já restou descortinada, também é certo que o Poder Judiciário, sempre atento à garantida da legalidade, vem reiteradamente declarando a ilegalidade da prática teratológica de condicionar o livre exercício da atividade econômica lícita, constitucionalmente assegurada e protegida, à comprovação do recolhimento de tributos, tanto que, já no longínquo ano de 1963, o Supremo Tribunal Federal, editou a Súmula nº. 70, que preceitua ser “inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para a cobrança de tributo”.
Neste mesmo passo, o Excelso STF reiterou este posicionamento em diversas outras ocasiões, exatamente como o fez ao editar a Súmula nº. 574, de 1969, segundo a qual “não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”, e também a Súmula nº. 323, que enuncia ser “inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”.
Caminhando sempre em conformidade com esse entendimento, os tribunais brasileiros entendem, de forma unânime, ser impositivo o afastamento da descabida exigência de apresentação de certidões negativas como condicionante para a tramitação dos processos de credenciamento e recredenciamento institucional, conforme demonstram, em caráter meramente exemplificativo, os acórdãos abaixo transcritos:
“EMENTA
AGRAVO LEGAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXIGÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE REGULARIDADE FISCAL PARA CREDENCIAMENTO DE INSTITUIÇÃO DE ENSINO. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL.” (e-DJ TRF 3ª Região, Agravo Legal em AGI n° 0024274-23.2011.4.03.0000/MS, Rel. Des. Federal Consuelo Yoshida, 19.4.2012, p. 1084).
“EMENTA
APELAÇÃO. CREDENCIAMENTO OU RECREDENCIAMENTO DE INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR. REGULARIDADE FISCAL. EXIGÊNCIA. DECRETO Nº 5.773/2006. RESERVA LEGAL. REGULAMENTO AUTÔNOMO. IMPOSSIBILIDADE.” (e-DJ TRF 5ª Região, AC n° 517377/PE, Rel. Des. Federal Edilson Pereira Nobre Júnior, 23.8.2012, p. 658).
“EMENTA
ADMINISTRATIVO. TRIBUTÁRIO. INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR. CREDENCIAMENTO. CDN. INEXIGÊNCIA DE APRESENTAÇÃO. REGULARIDADE FISCAL. COBRANÇA INDIRETA DE TRIBUTOS. IMPOSSIBILIDADE.” (e-DJ TRF 3ª Região, APC n° 0002667-87.2011.4.03.6002/MS, Rel. Des. Federal Consuelo Yoshida, 7.6.2013, p. 1338).
“EMENTA
APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO. ADMINISTRATIVO. DECRETO 5.773/06. EXIGÊNCIA DE CERTIDÕES DE REGULARIDADE FISCAL PARA CREDENCIAMENTO E RECREDENCIAMENTO DE INSTITUIÇÃO DE ENSINO. ABUSO DE PODER POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO. MEIO DE COERÇÃO AO PAGAMENTO DE TRIBUTOS. IMPOSSIBILIDADE. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS PROPORCIONAIS. DESPROVIMENTO.” (e-DJ TRF 2ª Região, Ap/Reexame Necessário n° 2006.51.01.015179-5, Rel. Des. Federal Aluísio Mendes, 24.7.2013, pág. 219).
“EMENTA
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. ENSINO SUPERIOR. PEDIDO DE CREDENCIAMENTO/RENOVAÇÃO DE RECONHECIMENTO DE CURSO SUPERIOR CONDICIONADO À PROVA DE REGULARIDADE FISCAL DA INSTITUIÇÃO DE ENSINO. IMPOSIÇÃO INSTITUÍDA POR NORMA INFRALEGAL. MEIO COERCITIVO DE PAGAMENTO DE TRIBUTOS. DESCABIMENTO.
1. A exigência de comprovação de regularidade fiscal e parafiscal como condição para recebimento e processamento dos pedidos de credenciamento/reconhecimento de cursos superiores, instituída pelo Decreto 3.860/2001, viola os limites do poder regulamentar em relação à Lei n. 9.394/1996, representando verdadeiro meio coercitivo de cobrança de tributos, o que é vedado, consoante orientação das Súmulas 70, 323 e 547 do Supremo Tribunal Federal. Precedentes.
2. Apelação da União e remessa oficial, não providas.”(e-DJ TRF 1ª Região, AP/Reexame Necessário n° 2009.38.01.001842-3/MG, 6ª. Turma, v.u., Rel. Des. Federal Daniel Paes Ribeiro, 2.5.2017, pág. 127).
“EMENTA
ADMINISTRATIVO. ENSINO SUPERIOR. RECREDENCIAMENTO DE CURSO. DECRETO Nº. 5.773/2006. EXIGÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE REGULARIDADE FISCAL E PARAFISCAL. ILEGALIDADE.
I – No caso em espécie, “afigura-se abusiva e ilegal a exigência de comprovação de regularidade fiscal e previdenciária, para recebimento e processamento de pedido de reconhecimento e de renovação de reconhecimento de curso superior, instituída mediante decreto, uma vez que extrapola os limites do seu poder regulamentar a imposição de exigências não previstas em lei, mormente quando utilizadas como modalidade de coação para o recebimento de tributos. Os eventuais débitos da instituição de ensino para com o Fisco devem ser cobrados por meios próprios, observando-se o devido processo legal” (Apelação Cível nº 0010846- 86.2006.4.01.3400/DF, Rel. Desembargador Federal Souza Prudente, Sexta Turma, e-DJF1, p.216, de 16/03/2009).
II – Remessa necessária e apelação desprovidas. Sentença confirmada.” (e-DJ TRF 1ª Região, AP/Reexame Necessário n° 0023925-59.2011.4.01.3400/DF, 5ª Turma, v.u., Rel. Des. Federal Souza Prudente, 22.6.2017, pág. 2856).
“EMENTA
ADMINISTRATIVO. CADASTRAMENTO DE INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR. DECRETO N. 5.773/2006. EXIGÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE REGULARIDADE FISCAL. ILEGALIDADE. MEIO INDIRETO DE COBRANÇA DE TRIBUTO. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA MANTIDA.
1. Agravo retido não conhecido, uma vez que não houve expresso pedido, quando da interposição do recurso de apelação.
2. É ilegal a exigência da regularidade fiscal da empresa de segurança privada – mediante ato normativo secundário – como pressuposto de credenciamento ou recredenciamento de curso superior, já que dessa forma consubstanciaria meio indireto e, portanto, indevido de cobrança de tributos. Precedentes.
3. "Afigura-se abusiva e ilegal a exigência de comprovação de regularidade fiscal e previdenciária, para recebimento e processamento de pedido de reconhecimento e de renovação de reconhecimento de curso superior, instituída mediante decreto, uma vez que extrapola os limites do seu poder regulamentar a imposição de exigências não previstas em lei, mormente quando utilizadas como modalidade de coação para o recebimento de tributos. Os eventuais débitos da instituição de ensino para com o Fisco devem ser cobrados por meios próprios, observando-se o devido processo legal " (Relator Desembargador Federal Souza Prudente, REOMS n. 0015914-17.2006.3.01.3400/DF, Quinta Turma, e-DFJ1 de 05/03/2015, p. 1389).
4. Recursos conhecidos e não providos.” (e-DJ TRF 1ª Região, AP/Reexame Necessário n° 2009.38.10.000663-7/MG, 6ª Turma, v.u., Rel. Des. Federal Kássio Marques, 1.2.2018, pág. 1172).
Quando as gestões mais recentes do MEC, com seu discurso de modernidade e evolução regulatória, apontaram para a revogação do antigo marco regulatório, acreditamos que esse tipo de entulho seria, enfim, removido.
Todavia, não foi isso que ocorreu, pois o Decreto n° 9.235/2017, nas alíneas “c” e “d” do inciso I de seu artigo 20, repetem a prática cuja ilegalidade já restou sobejamente declarada pelo Poder Judiciário, exigindo a apresentação de certidões de regularidade fiscal e parafiscal nos processos regulatórios de credenciamento e recredenciamento das instituições de educação superior:
“Art. 20. O pedido de credenciamento será instruído com os seguintes documentos:
I - da mantenedora:
.....
c) certidões de regularidade fiscal perante a Fazenda federal;
d) certidões de regularidade relativa à Seguridade Social e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS;”.
Essa recalcitrância até poderia ser entendida caso houvesse divergência nas decisões judiciais sobre a ilegalidade de tal exigência, ou seja, se existisse aceso controvertimento acerca do tema.
Todavia, não é isso que ocorre, pois, como demonstrando ao longo deste texto, as decisões judiciais sobre a questão são praticamente uníssonas, havendo manifesto consenso acerca da flagrante ilegalidade da exigência de apresentação de certidões de regularidade fiscal e parafiscal como requisito para credenciamento ou recredenciamento das instituições de educação superior.
Com efeito, a única coisa que vem sendo modificada na apresentação desta já decantada ilegal exigência é a numeração do decreto que a tenta impor, começando, no que interesse a esta coluna, pelo Decreto n° 3.860/2001, passando pelo Decreto n° 5.773/2006 e, finalmente, chegando ao Decreto n° 9.235/2017, todos trazendo em seu bojo uma manifesta ilegalidade.
A insistência na manutenção dessa exigência, além de afrontar o entendimento já consolidado nos tribunais pátrios, porquanto, como visto, pouco importa a numeração atribuída ao ato normativo, o resultado é sempre a declaração da ilegalidade da exigência das referidas certidões, é um manifesto estímulo à judicialização de uma questão que poderia ser resolvida com o mínimo de bom senso.
A reiteração de exigência já diversas vezes declarada ilegal trará, como resultado único, o aumento das demandas judiciais, prejudicando o andamento das lides efetivamente relevantes e entulhando o Poder Judiciário com pedidos análogos àqueles já decididos nos mais diferentes pretórios, sempre no mesmo sentido, como apresentado neste texto.
Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade deveriam ser levados em consideração pelos gestores públicos na elaboração de atos normativos derivados, evitando impor exigências já reiteradamente declaradas ilegais pelo Poder Judiciário com o mero disfarce da edição de novo decreto, como ocorre no caso sob análise.
Naturalmente, alternativa não resta aos agentes públicos responsáveis pela atuação nos campos da regulação, supervisão e avaliação senão promover o cumprimento dos dispositivos legais vigentes, sendo certo que a crítica deve ser endereçada aos responsáveis por sua elaboração, não por seu cumprimento.
Desse modo, embora recomendando que as instituições mantenham, sempre, a sua regularidade contributiva, entendemos necessário registrar que, na hipótese de eventual indisponibilidade de alguma das certidões negativas exigidas pelas alíneas “c” e “d” do inciso I do artigo 20 do Decreto n° 9.235/2017, não é legítimo que o MEC imponha obstáculos à regular tramitação e conclusão dos processos de credenciamento e recredenciamento institucional.
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